sábado, 20 de novembro de 2021

PONTA DELGADA EM FOTOGRAFIA


Sebastião Salgado, consagrado fotógrafo brasileiro, afirmava que as suas «fotografias são um vetor entre o que acontece no mundo e as pessoas que não têm como presenciar o que acontece». Dito de outra forma, certamente mais tosca e simplista, uma das conveniências da fotografia passará pela representação de pontes, de travessias que nos permitem chegar até realidades distintas e, muitas vezes, inalcançáveis, seja pela acentuada lonjura geográfica, ou pela eternização de um rasgo histórico temporalmente distante. É precisamente o que acontece na obra em apreço. Num livro-objeto de qualidade superior e graficamente muito bonito são-nos oferecidas perspetivas sobre urbe de Ponta Delgada, desde 1860 até 1960, melhor dito, são-nos dadas a conhecer as diversas reconfigurações da cidade de Ponta Delgada, que se compreendem entre meados do século XIX, até meados do século XX, ou como previne o autor, será um trabalho «balizado por dois eventos marcantes na memória da cidade: primeiro a construção do porto artificial, cuja pedra inicial foi lançada em Setembro de 1860, e, segundo, a obra da Avenida Infante Dom Henrique, cujos trabalhos, iniciados em 1948, se prolongaram por toda a década de 1950-1960».

O lançamento deste álbum de memória ocorreu recentemente na Igreja de Todos-os-Santos, reconhecida por muitos como Igreja do Colégio dos Jesuítas, um espaço singular, carregado de história e que, curiosamente, surge também retratado em algumas das composições que integram o livro. Segundo Pedro Pascoal de Melo, o autor, em nota preliminar, a obra «Ponta Delgada: Memórias Fotográficas (1860-1960) pretende consubstanciar, em papel e de forma perene, a exposição com o mesmo nome – inserida nas comemorações do 475º aniversário da elevação de Ponta Delgada a cidade (…) numa organização conjunta da Câmara Municipal de Ponta Delgada e do Instituto Cultural de Ponta Delgada».


A obra surge-nos dividida em capítulos, ocupando-se cada um com determinado espaço geográfico ou perspetiva o que, em boa verdade, se afigura como um suporte de enorme valia na perceção e localização exata dos espaços. Para mais, cada fotografia é acompanhada por informações adicionais, em formato de legenda (em muitos casos cruciais, considerando realidades profundamente transformadas), onde, além de aspetos técnicos a considerar, se poderão também colher informações históricas de relevo e que nos guiam através de uma viagem ao passado dos nossos próprios lugares, acrescentando-lhes substância, conferindo-lhes interesse, ou, em muitos casos, revelando particularidades até agora ocultadas pela névoa do desconhecimento.


Pela quantidade e, sobretudo, pela qualidade do acervo aqui trabalhado, apresentado e documentado, esta obra assume-se como um marco referencial no estudo histórico-cultural da cidade de Ponta Delgada, não apenas no que ao edificado concerne, mas também no âmbito dos seus usos e costumes, tradições e festividades. Algumas das imagens que fazem desta obra uma obra tão singular eram já conhecidas do grande público, outras há que, sendo parte integrante de coleções particulares, se apresentam como inéditas, pelo que apreciá-las se revelou um gosto imenso. Neste particular, permito-me destacar a espetacularidade das imagens presentes no capítulo «A Cidade Vista do Céu», assim como um friso, em formato de apêndice, composto por um conjunto de seis imagens e que representa toda a orla marítima de Ponta Delgada, entre o Forte de São Brás e a Calheta de Pêro de Teive, vista, naturalmente, do mar.


Ponta Delgada: Memórias Fotográficas (1860-1960) é a representação atual e perpétua da vontade e da tenacidade daqueles que, antes de nós, mostraram querer e saber fazer mais da nossa cidade; é a prova evidente de que o progresso e a adaptação dos espaços são possíveis de forma harmoniosa e sustentável e que essa capacidade está na evolução das próprias pessoas. Como refere Maria José Lemos Duarte, antiga Presidente da Câmara Municipal de Ponta Delgada, em nota introdutória, «Que este livro (…) nos orgulhe pelo seu caminho percorrido e nos inspire pela coragem do seu sonho feito obra».  


A terminar, um especial agradecimento aos fotógrafos e colecionadores destas belíssimas imagens que aqui nos são emprestadas, assim como uma particular congratulação ao autor, aos promotores da obra e à respetiva editora pelo magnífico trabalho concebido.


Pedro Pascoal de Melo, Ponta Delgada: Memórias Fotográficas (1860-1960), Artes e Letras Editora, setembro de 2021

domingo, 14 de novembro de 2021

MORREU O SENHOR CUSTÓDIO

 


Melhor dito, morreu-me o senhor Custódio. Foi a minha mãe quem me deu a notícia, aliás, tem sido ela, coitada, a assumir a funesta missão de me trazer o pesaroso desaparecimento dos vizinhos da minha infância. Pessoas amigas que são avós, pais, mães, tios de outros tantos amigos de sempre. Um após outro, são cada vez mais aqueles que partem, o que faz com que eu seja cada vez menos, diminuído pelas vivências que com eles seguem para a dimensão seguinte, reduzindo-me à inevitabilidade da solidão. Dir-me-ão que me restam as memórias, mas a memória é bem mais verosímil quando partilhada, quase como em um diálogo onde são necessários dois interlocutores, onde um vai confirmando a premissa do outro, caso contrário, não se distingue da ficção mais ou menos fundida por lembranças esbatidas ou caldeadas por afetos e saudades.

Julgo que já se rezou a missa do sétimo dia pela sua alma. Tive muita pena dele, coitado do senhor Custódio! Cabisbaixo e de feição fechada de onde só muito excecionalmente nascia um sorriso, gostava muito de mim e dos meus irmãos. Era uma figura solitária que sempre me intrigou. Víamo-lo sempre sozinho, ao longe nos campos, ora de fardo de palha às costas, ora com elas vergadas a arrigar à terra as daninhas que ameaçavam cobrir o cebolo. Outras vezes, víamo-lo a roçar erva ou a carregar sacas de farinha que trazia do moinho dos Costas, no regato da Cerejinha. Em dias de chuva dedicava-se às gamelas de cimento e, embora não lhe conhecesse quaisquer animais, nunca lhe faltavam comedouros e bebedouros para vender. Sabia fazer de tudo, mas confesso que nunca vi ninguém podar uma vinha com a destreza com que ele o fazia: lançava a escada à banca da ramada, por vezes arriscava até no bardo e, como a um maestro, era um gosto vê-lo esbracejar por entre a folhagem que se ia soltando e vestindo o chão com cores outonais. Não abrandava nem parava; não se distraía do trabalho e só lhe ouvíamos a voz quando precisava que lhe chegássemos mais um molho de fiteiras com que amarrava as vides, direcionando-as pelos arames certos e protegendo-as dos rigores do inverno.

Durante anos, tal como o senhor Albino, a senhora Glória da Ribeirinha, o senhor Abel ou o Chico da senhora Aurora, o senhor Custódio nunca faltou a uma sementeira ou a uma apanha da batata na nossa casa, e em setembro era vê-lo chegar à vinha, silencioso, de escada de doze ao ombro e uma tesoura de poda na mão, pronto para arrancar à ramada as americanas mais doces. Mesmo assim, nunca soube muito mais acerca dele. A verdade é que nunca me questionei; sempre julguei que conhecia tudo o que havia para conhecer sobre aquela figura esguia, de palavras poucas e pele curtida pela aspereza da jorna. Agora que é já tarde demais percebo o erro e arrependo-me por não ter arriscado as perguntas certas! Não sei, sequer, se a sua partida deixou uma viúva ou até prole que lhe chore a ausência a cada dia. Hei de perguntar à minha mãe, talvez ela saiba.

Na minha rua, morreram-me a senhora dona Aurora e a senhora dona Glória, o senhor Avelino e a senhora dona Rosa, o senhor Henrique, o senhor José e o senhor Bernardino, morreu o senhor Arnaldo, o senhor António e agora o senhor Custódio… Com eles vai morrendo também parte da minha infância, e até o tímido caudal de água que, esforçado, impelia a mó contra a dureza do milho enxuto na eira, secou de tristeza e o moinho, que antes cobria de alvura o senhor Custódio, ficou por ali, largado à imensidão do abandono…

sábado, 6 de novembro de 2021

RAMPAS E GUITARRAS

 



Hoje, enquanto regressava a casa, vi o R. e fiquei verdadeiramente desolado. Foi meu aluno há muitos anos, pelo que andará agora pelos trinta e poucos. Seguia com a companheira, que não terá celebrado ainda os vinte e cinco, embora ninguém arrisque menos de quarenta.

Não me recordo que ele tivesse sido um bom aluno, mas sei que era um moço de categoria: vivia cheio de sonhos e parecia ter vontade de os concretizar. Certa vez, pediu-me e a outra colega que lhe redigíssemos um projeto que engendrara para a construção de um Skate Park, bem no centro da freguesia. «Se for uma coisa bem amanhadinha, o Presidente da Junta paga as rampas, professor! É só trabalhar nisso!», garantia com a voz polida pela esperança num futuro promissor. Infelizmente para o R., não se concretizaram nem as rampas, nem o futuro.

Encontrava-me parado no trânsito quando o vi passar. A humidade pesava e a quentura era farta, mas isso não parecia incomodá-lo. Ao primeiro vislumbre percebi que continuava a sobreviver no lado de lá, na margem mais triste e mais negra da vida, e o seu aspeto cada vez mais debilitado e cadavérico não agoirava nada de auspicioso. Seguia de passo em brasa pela Rua da Boa Nova, em direção à zona da Pranchinha, pois claro! Cruzei-me com ele defronte do Estabelecimento Prisional e não consegui evitar de pensar na ironia daquele andamento fugidio, precisamente ali, naquele espaço onde reina a reclusão. Fiquei com a leve impressão de que também me vira. Todavia, tolhido talvez por uma réstia de discernimento, preferiu cravar a vergonha no chão a ter de enfrentar a minha expressão. Mentira-me na última vez que faláramos, e, ainda assim, senti-me tocado pela compaixão. Não terminara o seu tratamento, nem estava curado. Não procurara emprego, nem ajudara a companheira a percorrer os trilhos da desintoxicação. Também não procuraram recuperar os filhos que, em boa hora, os senhores da Lei colocaram a salvo, abrigados sob a asa protetora da família mais próxima.

Depois de abandonar a escola, ainda o soube entretido entre a música e o arranjo caseiro de automóveis. O R. era habilidoso na mecânica e desenrascado com a guitarra. Julguei que seria esse o rumo que tomaria. Afinal, a Escola não lhe falhara miseravelmente. Havia Valores em desenvolvimento e um cidadão em formação.

Entretanto, seduzido pela ilusão do “amor e uma cabana”, saiu de casa e depressa veio a prole: nasceu um, depois outro e ainda mais um, e com eles chegaram todos os encargos e obrigações, assim como os primeiros desleixos e outras incúrias bem mais graves…

Trouxe-me à realidade o cláxon do Fiesta que desesperava numa das perpendiculares. Desculpando-me, ainda lancei o olhar ao retrovisor, perscrutando, mas já não os vi. Senti pena dele. Sabia que dali a uns minutos – poucos – estaria caído numa qualquer valeta, vencido pelo insidioso logro de um mundo benévolo, sem responsabilidades, nem deveres. Já o via submergir num oceano intrujão, iniciando mais uma viagem trapaceira a um lugar onde espero que haja, pelo menos, umas rampas ou umas guitarras com que o R. possa, enfim, aprender a brincar com os filhos.

 

Ao R., aluno e amigo.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

METROSIDERO DA ESCOLA DA MAIA

 


Enquanto aguardo por mais uma reunião, daquelas que prometem, com afinco, acabar com o insucesso dos alunos, deixo cair os olhos sobre o recreio da escola e demoro-me a pensar na sorte que aqueles miúdos têm por usufruírem de um espaço daqueles. Ao contrário do que se percebe em outras paragens, encontra-se enraizada neles uma cultura de preservação dos espaços e do edificado; percebe-se um sentido de responsabilidade e respeito pelo que lhes pertence a todos, e talvez seja esse o segredo da Escola da Maia que, já entrada na segunda dezena de anos de vida, ostenta ainda um aspeto apreciável, exibindo-se toda aperaltada a quem nela perlongue o olhar. Mérito da educação e cidadania de quem por lá cresceu e daqueles que ainda ali calcorreiam o seu percurso de vida. 


Para além de uma elegante fachada, um aspeto cuidadosamente asseado e muito mais que se poderia acrescentar, recebe-nos, à direita de quem entra, um majestoso Metrosidero excelsa, um magnífico exemplar desde sempre muito estimado por toda a comunidade. Como retribuição, esta árvore de porte assinalável, cuida-nos diariamente do olhar, acariciando-o com a sua beleza extraordinária. Já ali trabalhei com os alunos algumas vezes, abrigados à sombra da sua frondosa roupagem. Foram aulas de poesia, penso. Cuidei que dessa forma pudesse contar com a sua ajuda na inspiração dos jovens poetas e não me enganei. De todas as vezes, os resultados superaram as expetativas, e nem as abelhas que por ali abundam, impediram o alumiar daquelas pequenas centelhas poéticas, instigadas, por certo, pelas mágicas faúlhas daquela árvore de fogo, como também é conhecida. 


Gosto muito daquele Metrosidero. Desperta-me a curiosidade e, ao contrário de outras árvores que se mostram robustas ou bonitas, o Metrosidero da Escola da Maia exibe força e beleza a partir de um corpo singular. A ciência de quem os estudou antes de nós ensina-nos que se conseguem adaptar a diversas contrariedades; dizem-nos, também, que são árvores rijas, vigorosas e que superam quase todas as adversidades que se lhes impõem: resistem a tempestades, vencem a salinidade excessiva, crescem e florescem em solos pobres e de nutrientes parcos. Há aqueles que conseguem crescer em rochas, veja-se!


É com um olhar de esperança lançado pela janela da sala onde aguardo por mais uma reunião, daquelas que prometem, com afinco, acabar com o insucesso dos alunos, que me dou conta das similitudes entre o Metrosidero da Escola da Maia e grande parte dos nossos alunos. Um e outros lutam com apego contra os reveses que a vida lhes apresenta, mas sem nunca esmorecer, resistindo estoicamente.  Alturas haverá de galhos mais secos ou flor mais mirrada, mas mesmo sem aquelas condições que se julgam ser as ideais, um e outros hão de medrar e de florescer. Do pouco, fazem muito e vão resistindo, superando-se e reinventando-se. Do pouco, fazem muito e vão mimando o olhar de quem por ali vai ficando e os vai vendo crescer.


📷 https://jb.utad.pt/especie/Metrosideros_excelsa

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

«NÃO HOUVE SUCESSO COM O PROSUCESSO»



É uma das frases que podemos ler na edição de hoje do Açoriano Oriental, integrada no Relatório da Avaliação Externa do ProSucesso. Embora seja um crítico acérrimo deste documento e de grande parte das medidas e/ou projetos lá inscritos, desde a sua discussão pública em 2015, penso que ninguém na Região poderá estar satisfeito com as conclusões que nos são apresentadas por este relatório, elaborado pela UAç.


A verdade é que perdemos muito tempo e gastámos muitos recursos, sem que as tão almejadas metas – as intermédias – tenham sido amplamente alcançadas, pelo menos com a seriedade que se impõe! E não se perspetiva, também, que as finais venham a sê-lo. Atendo-me à realidade que conheço e com a qual trabalho há muitos anos de forma séria e exigente, não se alavancou coisa nenhuma, pelo contrário. Aos motivos de preocupação à data, aditam-se agora outros, fruto, sobretudo, da permissividade e um certo facilitismo subjacentes a algumas das medidas e/ou projetos descritos naquele malogrado programa, muitos daqueles adotados em diferentes Unidades Orgânicas. Pelo contrário, outros que até se revelaram de grande valia, foram, paradoxalmente, desaparecendo à medida que os bons resultados iam surgindo. Lembro-me, por exemplo, do “Crédito Horário” atribuído a algumas áreas curriculares disciplinares, e que tanto contribuía para a consolidação efetiva de conhecimentos e desenvolvimento de competências. 


“Uma manta de retalhos”, assim se referiu a nova Secretária de Educação aos projetos integrados neste ProSucesso. Não que se revista de grande novidade para quem olha e pensa a Escola, mas, após a leitura da informação veiculada hoje, o sentimento que perpassa é a desilusão. Não obstante, considerando que os atores que tutelam a Educação são agora outros, e que estarão verdadeiramente preocupados com as aprendizagens e competências dos alunos, oxalá não se perca aqui mais uma oportunidade de se valorizar a Escola e a Educação nos Açores. Tomara que se vislumbre, de uma vez por todas, a direção do foco das medidas a implementar. Creio que fica agora mais claro que o problema nunca esteve em Conselhos Executivos e, muito menos, nos professores ou na qualidade da sua docência. A verdade é que, dos elencados no Prosucesso, os Eixos de Ação onde, realmente, se viu empenho e trabalho foram o da «promoção do desenvolvimento profissional dos docentes», e o «foco na qualidade das aprendizagens dos alunos», o que é o mesmo que dizer que os professores foram os únicos comprometidos com «a redução da taxa de abandono precoce da educação e da formação» e com «o aumento do sucesso escolar em todos os níveis e ciclos de ensino, em sintonia com a Estratégia Europeia para a Educação e Formação, Europa 2020».


Reitero o que pensava há seis anos, por altura da discussão pública deste documento: “Há que criar oportunidades para que os alunos possam ultrapassar as suas dificuldades, há que investir no garante de horas docentes para o devido acompanhamento aos alunos em dificuldades. Há que perceber que só se melhora treinando. Há que perceber que a escola não pode ser um espaço de recreio constante, nem de ocupação de tempos livres.”, assim como há que incentivar e premiar o esforço e o empenho. Há que perceber ainda que, embora os recursos sejam limitados, os fundos canalizados para a educação terão de ser encarados como investimento e nunca como despesa. 


Como em Governos anteriores, voltou a pedir-se, muito recentemente, um pacto de regime em torno da Educação. Embora tenha sérias dificuldades em crer neste tipo de acordos, considerando que os próprios políticos envolvidos dificilmente se alinham em alguma matéria, estou expectante que desta vez sejam ouvidos, com atenção, aqueles que trabalham todos os dias com os alunos e que, com eles, vão tentando conquistar um futuro promissor e de verdadeiro sucesso pessoal e profissional.

sexta-feira, 8 de outubro de 2021

O Cão Dos Olhos Dourados

 

João de Melo é, como sabemos, um dos expoentes mais cintilantes da nossa riquíssima Literatura portuguesa contemporânea. É um autor que reúne consenso. Quando dele ou da sua obra se fala são sempre os bons adjetivos que emergem e adornam a conversa. Lembro-me de ter falado com ele uma vez apenas, na Livraria Leya SolMar, em Ponta Delgada. Um encontro casual, muito breve e marcado pelo embaraço que me embargou a voz e turvou o pensamento durante todo o tempo. Recordo que nesse dia corroborei a boa impressão que já havia formulado acerca do homem além do autor: afável, educado, ponderado e sempre com uma palavra de incentivo dirigida a quem o interpela. Não será por mero acaso que outros grandes do panorama literário português se lhe referem como “mestre”.

Por estes dias, está o autor novamente de parabéns. O seu mais recente romance, Livro de Vozes e Sombras foi reconhecido com mais um galardão. Após o “Grande Prémio de Literatura dst”, chega agora o “Prémio Literário Urbano Tavares Rodrigues”. Um justo reconhecimento considerando a riqueza (literária, estética, histórica…) daquela obra. Talvez agora possamos deixar cair, em definitivo, aquela ideia de que a sua obra completa ficaria, para sempre, refém do seu livro Gente Feliz Com Lágrimas.

À margem destes títulos de grande fôlego, João de Melo encontrou ainda tempo para nos surpreender com a sua primeira narrativa infantil, O Cão Dos Olhos Dourados, publicado em agosto, pela D. Quixote. Com a qualidade de escrita que todos lhe reconhecemos e à qual já nos habituou, mas completamente acessível a leitores mais novos, João de Melo dá-nos a conhecer a singular história de um cão muito especial. É-nos contada a fantástica aventura de "Nick", um cão “pacífico, mansinho” a quem só “lhe faltava falar”. A narrativa é apresentada de forma emotiva e sempre muito comprometida, ficando essa função a cargo de um pai de família, claramente tocado pelo amor, e que, de forma pedagógica, procura resolver todos os problemas à medida que estes vão surgindo. Coincidência, ou talvez nem tanto, o livro, lançado em agosto, aborda de forma muito evidente a questão do abandono dos animais, um flagelo que se repete anualmente, durante o período das férias de verão e que traz à montra da vida a negligência de alguns adotantes. Para além da amizade e do amor, do companheirismo é a pedagogia da adoção responsável que aqui está bem vincada o que, tratando-se de um livro destinado a crianças e jovens, se reveste de uma valia assinalável, considerando o contributo prestado à formação e desenvolvimento de personalidades.

Procurámos tentear a leitura desta obra e conseguimos que durasse alguns dias. Em todos, a exploração do texto foi consubstanciada por momentos muito agradáveis e vividos em família. Lemos o "Nick" (como nos pedia o pequeno Filipinho) a três vozes: a da mãe, a minha e a dele, que através das belíssimas ilustrações de Célia Fernandes, também já recriava e nos narrava as aventuras do seu próprio Nick.

De facto, e como tão bem o regista João de Melo, «As crianças hão de ser sempre a promessa e a esperança de um mundo melhor para os homens e para os animais». Por esta razão e por tantas outras, ao autor é agora reclamada a continuidade da escrita dentro deste mundo mágico que é a Literatura infantojuvenil.

João de Melo, O Cão Dos Olhos Dourados, D. Quixote, agosto, 2021


domingo, 19 de setembro de 2021

Maldita Heroína

 

«Não serve de desculpa. Há pessoas em situações piores e não se metem na droga, mas, como tenho experiência com droga, tenho este escape.»

In publico.pt 

Numa altura em que a pobreza espreita a cada esquina, e o desemprego emerge de um momento para o outro; numa época em que a depressão familiar e a inversão de valores se entranham pelas frinchas mal calafetadas da vida e, num período em que o Estado Social parece resignado a serviços mínimos, muitos têm sido aqueles que, caídos em desespero e, sem esperança de amparo, buscam na fugacidade de um consolo intrujão o alienar dos problemas quotidianos. Partem na ânsia do esquecimento, na esperança do reencontro com momentos prazerosos e, invariavelmente, aterram nas agruras mais vis que se possam imaginar.

Fruto de toda esta conjuntura começa a ser por demais conhecida, e até bastante alarmante, a massificação de recaídas de muitos dos sobreviventes ao flagelo das drogas nos idos anos 80 e 90 do século passado, com especial incidência nos casos de heroinómanos.

Descobrir uma veia onde ainda seja possível receber com aquele agrado a fininha agulha e… deixar-se ir… partir numa jornada traiçoeira em busca da doce euforia voltou a ser a rotina de milhares de pessoas.

Em Portugal, na época áurea destes consumos, não obstante todas as políticas de combate (e algumas bem agressivas, que resultaram mesmo em cisões sociais entre os que olhavam os toxicómanos como doentes e os outros que os viam como meros criminosos), 1% da população consumia ou consumira heroína, pelo que encontrar uma família onde esse flagelo não se fizesse sentir, revelava-se uma tarefa complicada. Lia-se que a heroína não sendo exclusiva dos “feios, porcos e maus”, era uma epidemia transversal à sociedade, agravada por todos os outros problemas associados: absentismo escolar, roubos, tráfico, alcoolismo, VIH, hepatite C, overdose… morte! Segundo João Goulão – Diretor Nacional do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências –, “duas gerações foram dizimadas por consumos descontrolados”, e muitas mais seriam desse-se o caso de não se concluir atempadamente que a prevenção, assim como o acompanhamento destas pessoas, deveriam ser permanentes na agenda política do nosso país. Com efeito, deu-se um pequeno brilharete: reduziu-se a percentagem de mortes por consumo de heroína a 0,5% da população, o que provocou de imediato a visibilidade mundial do nosso país.

Na atualidade constata-se que o número de novos consumidores de heroína não é tão significativo como outrora, – os novos toxicómanos optam por um policonsumo que, não sendo tão agressivo como o da heroína, levanta também algumas discussões bem urgentes – mas a questão agudiza-se se nos cingirmos ao atual número de recaídas dos que há duas ou três décadas eram os junkies que semeavam o medo pelas principais ruas das nossas cidades. Hoje, toxicodependentes com 40 ou 50 anos de idade, assim como os seus médicos acompanhantes e outros responsáveis, apontam a situação de crise económica como um dos principais fatores para estas recaídas: o difícil acesso aos cuidados de saúde e o fim de alguns apoios têm dificultado, em larga medida, a recuperação plena destes indivíduos, e estarão na origem do triplicar das recaídas.

Numa sociedade onde a escassez de dinheiro impera, a capacidade de resposta destes serviços tão especializados tem, inevitavelmente, falhado, o que condiciona sobremaneira o tratamento continuado destes indivíduos. Se antes se assistia, por exemplo, à discriminação positiva destas pessoas em recuperação, nomeadamente em termos de empregabilidade, dizem os responsáveis que face à taxa de desemprego generalizada “não existe o à-vontade necessário para que se batam por esta questão”.

Antes elevado a inimigo público número um, e gastos milhões em prevenção e apoios sociais, o consumo desta droga parece agora suscitar pouco interesse nas pessoas com responsabilidades políticas e na sociedade em geral. É certo que outras necessidades bem mais prementes estão na calha – há hoje gente a passar fome – no entanto, urge a disponibilização de esforços, a articulação de estruturas de saúde que garantam, uma vez mais, respostas eficazes a estas pessoas. Importa impedir o recrudescimento deste flagelo, sob pena de assistirmos ao ruir de todo o esforço financeiro e social feito por aqueles que antes de nós tanto trabalharam pela erradicação do consumo desta maldita heroína!


quinta-feira, 17 de junho de 2021

«UM TEMPO A FINGIR», de João Pinto Coelho



Dúvidas subsistissem sobre o virtuosismo literário de João Pinto Coelho, o autor – galardoado com o Prémio Leya em 2017– tê-las-ia pulverizado, por completo, com o seu último romance Um Tempo a Fingir, publicado em outubro, pela D. Quixote.

Com a Segunda Guerra Mundial a surgir como pano de fundo, é aqui urdida uma narrativa robusta, que assenta no entremeio de relatos distintos sobre o desenrolar da ação: ora por Annina ora por Ulisse Bemporad, dois irmãos judeus italianos, oriundos de uma pequena localidade montanhosa, na Toscana Italiana.

Esta é uma obra densa, repleta de factos históricos marcantes, associados a outros nascidos a partir da imaginação do autor, e que atuam ao serviço da progressão narrativa. Embora estejamos ante um romance de grande fôlego, não se vislumbram aqui quaisquer pontas soltas que coloquem em causa a coesão e/ou coerência textual, pelo contrário, tudo faz sentido, tudo é verosímil, sem que nunca se tropece na pobreza do expectável: o leitor é continuamente surpreendido ao longo do texto. Como se tal não fosse já bastante, a riqueza e a pujança do discurso são notórias ao longo de toda a obra, e, mesmo sendo profundamente marcado por sentimentos de ódio, inveja ou vingança, e conhecendo-se as atrocidades cometidas ao povo judeu durante este período, esta é uma obra onde, de muitas formas, é o bem que vence o mal, onde à força bruta e máscula, muitas vezes se impõe uma sensibilidade determinada e vestida no feminino.


João Pinto Coelho, Um Tempo a Fingir, D. Quixote, outubro de 2020


domingo, 30 de maio de 2021

A Madrugada em Birkenau

 


 

 

«Não posso aceitar ser tocada. Evito ir ao cinema quando há uma fila de espera.  Quando se foi tratada como carne, é muito difícil convencer-se que se permaneceu um ser humano.»

 

in A Madrugada em Birkenau

 

                Sem quaisquer receios de cair na pobreza do lugar-comum, é justo afirmar-se que esta obra, agora publicada pela Quetzal, vem enriquecer o conjunto de documentos que importa conhecer sobre os anos da guerra e as consequências que daí advieram. A par das brilhantes narrações de Primo Levi, de Herta Müller, Laurence Rees ou de João Pinto Coelho, por exemplo, é-nos agora dada a conhecer a obra A Madrugada em Birkenau, redigida com base no relato de Simone Veil (francesa, judia, presa e deportada), assim como nos testemunhos de amigos seus que, como ela, sobreviveram às atrocidades perpetradas pelo movimento nazi.

Todos reconhecemos e nos indignamos com as constantes polémicas e, sobretudo, com os deploráveis oportunismos literários e outros em torno das questões que envolvem a II Guerra Mundial, o Holocausto ou Shoa ou a banalização do uso, por meros desígnios economicistas, da palavra Auschwitz. Eis-nos, por isso, desembocados num tempo em que se torna imperioso amplificar a voz daqueles que não procuram outra coisa além de perpetuar a memória – clara e precisa – do que foi o período mais negro da nossa História recente, sem conceder espaço a cambiantes que derivem em deformações históricas ou suavizações convenientes. Por respeito à memória dos mais de seis milhões de pessoas que pereceram, não devemos permitir brechas por onde se adentrem equívocos ou medrem ambiguidades e imprecisões. Este é um tema onde a parcialidade não poderá florescer. Como nos alerta a autora de grande porção dos testemunhos aqui reunidos, «(…) não temos o direito de reescrever a História.»

Trata-se de um volume em notória contracorrente, já que dá a conhecer, em primeira pessoa e escusando-se a discursos eufemísticos ou encardidos por sentimentalismos pacóvios, as atrocidades que marcaram a realidade dos judeus franceses, não apenas ao longo do período de Ocupação, mas também nos difíceis anos que se lhe seguiram. Aliás, a pujança e autenticidade destes relatos vão um pouco mais além, ao ponto de, em consciência, repor a verdade de factos brotados do imaginário de alguns e consagrados em obras tidas como best-sellers mundiais: «É preciso que se diga que encontrar qualquer pedaço de jornal era algo excecional. Fico espantada quando ouço alguns falarem de bibliotecas e de livros que liam nos campos.»

A obra abre com a narração impressionante da magistrada Simone Veil, a «personalidade preferida dos franceses», em 2010, abordando os anos da sua infância em Nice, junto da família, mas prossegue, depois, até às perseguições raciais que marcaram a atuação do Nacional Socialismo um pouco por toda a Europa. Descreve, por vezes de forma arrepiante, mas crível, a sua detenção, o desmembramento do seu núcleo familiar e a posterior deportação em condições absolutamente animalescas, assim como a vivência horrífica em diversos campos de concentração. Prossegue com a narração do regresso e o problemático retomar de vidas que haviam ficado em suspenso, para culminar, com alguns testemunhos clarividentes, mas igualmente chocantes de outros sobreviventes próximos de Veil, manifestados em jeito de diálogo com a antiga Presidente do Parlamento Europeu, e com David Teboul, redator desses testemunhos.

«Deste legado, não me é possível dissociar a lembrança sempre presente, obsessiva, mesmo, dos seis milhões de judeus exterminados pela única razão de serem judeus.» Simone Veil, falecida em 2017, com noventa anos de idade, deixa-nos aqui um verdadeiro alerta: é importante que estejamos cientes dos riscos que todos corremos ao permitirmos o recrudescimento de movimentos políticos similares aos que estiveram na origem destas barbáries. Parece-me, por isso, muito avisado manter estes testemunhos à superfície da lembrança, alertando os mais jovens e, sobretudo, os mais incautos ou desiludidos que nada devem tomar como garantido. Não esqueçamos que, hoje, em Auschwitz, o relvado é cuidado, há árvores e «até o arame farpado parece sereno», mas, não há assim tanto tempo, «O campo era o cheiro dos corpos que ardiam.»

 

 

Simone Veil, A Madrugada em Birkenau, Quetzal Editores, maio de 2021

 

Telmo R. Nunes

quarta-feira, 21 de abril de 2021

Vasco Pereira da Costa

 


A propósito de Nas Escadas do Império, da autoria do virtuoso poeta, ficcionista e artista Vasco Pereira da Costa, escreveu Santos Barros:

«Não custa muito admitir que as letras açorianas ganharam, neste ano de 1978, novo fôlego com a edição em quantidade de livros a que não falta qualidade. Avultarão, por certo, dessa dezena e meia de títulos, duas obras, de ficção, verdadeiramente extraordinárias - previne-se que, uma vez por outra surgem obras merecedoras do emprego de palavras cuja justeza não obriga a temer-se o desgaste do lugar-comum. E porque são «verdadeiramente extraordinárias» as sublinho, repetindo-as. Uma, é a colectânea de contos Nas Escadas do Império de Vasco Pereira da Costa (...)».

Se além desta nos referirmos também a outras obras posteriores, como Plantador de Palavras Vendedor de Lérias, de 1984 ou Memória Breve, de 1987, parece-me muito ajustado confirmar que a «mina» literária que este autor terceirense tem vindo a escavar ao longo dos anos, se tem revelado muito profícua, tendo há muito ultrapassado «o limiar das «promessas»», elevando-o ao lugar de relevo que hoje deve ocupar, junto dos melhores contistas açorianos e nacionais.

Estamos a falar de um conjunto de contos soberbo, digno de reedições atualizadas, sob pena de, impunemente, silenciarmos uma voz que, além de nos encantar com o brilhantismo da sua poesia, se destaca como um dos grandes contadores de histórias do nosso tempo.

É uma pena o incompreensível alheamento que se abate sobre ele e a sua obra.

Vasco Pereira da Costa, Nas Escadas do Império, Centelha, Coimbra, 1978


sexta-feira, 2 de abril de 2021

AS ILHAS DE GUILHERME DE MORAIS

 


«(…) é que estas terras, eleitas de Deus, são ainda desconhecidas dos próprios açorianos, perdidos uns nos outros na bruma das ilhas afastadas.

Os açorianos são, infelizmente, os primeiros a desconhecer os Açores, isolados nos seus alcantis, como se cada ilha fosse um País diverso e longínquo.

Por isso todo o açoriano devia fazer o cruzeiro das suas ilhas: para decorar o poema de beleza que existe em cada uma, para escutar a alma que palpita em todas – Portugal.»

Embora não seja muito frequente e talvez até pouco avisado abrir um comentário a uma obra literária fazendo uso de um trecho tão extenso, a verdade é que não há como ficar indiferente à mensagem ali registada. Sendo certo que na primeira metade do século passado esta premissa teve um alcance, seguramente, bem mais amplo, a verdade é que não se evidencia nela quaisquer imprecisões, volvidos que estão quase noventa anos desde a sua redação original. 

A obra Ilhas do Infante, da autoria de Guilherme de Morais (editada pela primeira vez pela Livraria Editora Andrade, em Angra do Heroísmo) é o resultado de uma série de crónicas publicadas na imprensa regional açoriana, fruto de um cruzeiro a bordo do vetusto Vasco da Gama, o «velho Pimpão da Heróica Marinha de Guerra Portuguesa», decorria o ano de 1932. A viagem pelas ilhas celebrava «patrioticamente o V Centenário do seu Descobrimento», numa altura em que se apontava 1432 como a data de descoberta das ilhas açorianas.

Para além do texto original de Guilherme de Morais, em boa hora recuperado pela editora Artes e Letras, este excelente volume integra também três textos introitos: um da autoria de Urbano Bettencourt, onde tece preciosas anotações de contexto, adiantando também algumas de índole mais analítica,  outro da responsabilidade de José Henrique dos Santos Barros, anteriormente publicado no seu O Lavrador de Ilhas – I, e intitulado «Os Açores Num Livro de Viagens Dum Escritor Açoriano Injustamente Esquecido», onde se pode confirmar que o livro se lê «(…) ainda hoje, com bastante interesse», e outro, ainda, sob forma epistolar, em cujo remetente Ruy-Guilherme de Morais, filho de Guilherme de Morais, autor da obra original, partilha, com soberbo brilhantismo literário, informações sobre a vida e obra do seu falecido pai, com quem apenas conviveu durante seis anos, em consequência do precoce desaparecimento de Guilherme de Morais aos trinta e três anos de idade.

Qualquer um destes relatos conduz os leitores a uma narrativa de viagem verdadeiramente extraordinária, abrindo-lhes possíveis perspetivas de leitura ou, ao invés, condicionando-a irremediavelmente, sobretudo, pelas constantes alusões que são feitas às similitudes com a muito interessante obra Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão. Aliás, é o próprio Guilherme de Morais que, na sua narrativa e por diversas ocasiões (talvez em demasia), faz referência à obra de Brandão, publicada em 1927, cerca de cinco anos antes deste seu cruzeiro pelas ilhas açorianas.

Ainda que encarasse os Açores como «uma visão do Paraíso», e visse este como um «livro de paisagens», a riqueza deste Ilhas do Infante encontra-se alojada, sobretudo, na leitura que conseguir penetrar além do ato meramente descritivo e contemplativo, pese embora, este, per se, seja já digno de assentamento. Servindo-se muitas vezes de uma linguagem luxuriante, mas nem por isso menos lúcida, Guilherme de Morais dá-nos conta desta sua «peregrinação sentimental» pelo arquipélago (que muito lhe exaltou o «açorianismo»), não olvidando de, a trechos, lançar o seu olhar expositivo e, subliminarmente, crítico sobre a vivência social, económica, política, no fundo, sociológica, nos Açores, na primeira metade do século XX.

Esta é uma obra que precisa de ser lida com calma, (re)construindo mentalmente cada imagem, saboreando cada descrição, para assim conseguir trazer à memória cada recanto, cada visão, cada ângulo ou ponto de vista descritos. Mesmo considerando a incompletude em termos de ilhas (encontra-se omissa a narração da visita à ilha Terceira), assim como as diferentes “profundidades” consignadas a cada ilha (fruto, sobretudo, do tempo de estada do Vasco da Gama em cada porto) este relato propicia uma visão distinta do arquipélago e, mesmo os afortunados que já calcorrearam as nove ilhas que o compõem, terão aqui uma oportunidade de se apropriar de uma outra visão que lhes é oferecida a partir do longínquo ano de 1932. Para aqueles outros que se encontram em processo de “ilharização”, esta obra reveste-se, então, de uma valia redobrada, dando-lhes a conhecer uma visão do passado que sustenta hoje a realidade que todos conhecemos.

Apreciei sobremodo todos os capítulos, «Intermezzo», incluído; de todos retirei considerações, mas, não há como deixar de enaltecer a atenção conferida à ilha de Santa Maria, da qual destacaria o excerto dedicado a São Lourenço: «Se me preguntarem onde está o segredo, o "quid" desta maravilha, não saberei dizer, ninguém o saberá dizer. É talvez este conjunto desarmónico, este destrambelho de cores, atropelando-se, repelindo-se, o verde das vinhas em luta com o vermelho vivo dos telhados, com o azul do mar e o ouro da praia e tudo isto, afinal, confundindo-se, amalgamando-se ao mesmo tempo, num gral imaginário onde os olhos se perdem, numa visão daltónica, tontos de beleza emotiva.

Há paisagens que se não pintam porque não há cores que as possam trasladar, com fidelidade, da natureza. Essas, só a música, na sua portentosa faculdade interpretativa, as pode reproduzir.

S. Lourenço pertence ao número das paisagens musicais».

A par da refinada prosa poética que perpassa toda a obra, esta edição contempla ainda um conjunto de doze sonetos que atesta a «alta sensibilidade» de Guilherme de Morais e que comprova também que o seu desaparecimento precoce parece ter ceifado ao solo de criação açoriano o brilhantismo de uma pena que ainda teria muito para oferecer. Cabe-nos congratular aqueles que, sabiamente, souberam resgatar a sua obra do esquecimento, trazendo-a aos escaparates da vida, repondo, dessa forma, alguma justiça na injustiça com que se reveste sempre uma morte prematura.

 

Guilherme de Morais, Ilhas do Infante,  Artes e Letras, 2019

quinta-feira, 25 de março de 2021

MORANGOS DO OESTE

 



Ontem, cumpridas todas as responsabilidades profissionais, cada vez mais distanciadas e desinteressantes, e as outras de índole pueril e de alegre proximidade – que incluem a substituição da fralda (felizmente, sem grandes malefícios olfativos), a renovação da vestimenta e o lanche adequado a um bojo cada vez mais requintado e ditador – , esperámos pela hora certa e, assim que a Susana “arriou do serviço” (usando a vetusta expressão da minha avó materna), rumámos a oeste, até à freguesia da Candelária. Decidimos visitar, enfim, a quinta do senhor Cláudio e arrigar-lhe à terra uns quantos morangos para sobremesa. Já muito me tinham dito acerca da simpatia do senhor Cláudio, da sua inusitada forma de receber bem as pessoas que lhe assomam à porta, mas nunca tivera a oportunidade de lhe estender a mão num cumprimento afetuoso. Por via do vírus que a todos amedronta, também não lha estendi ontem, mas o nosso olhar disse tudo. Ficou genuinamente feliz por nos receber e nós genuinamente felizes por ali estarmos. Feitas as apresentações, quis falar com o Filipinho e dedicou-lhe mais tempo do que seria expectável. Conversou e brincou com ele e, claro, ganhou-lhe a confiança. Em boa verdade, a nossa também. Abriu-nos as portas da sua exploração morangueira, explicou-nos o negócio, falou-nos de um revés que tivera devido a uma intempérie, mas do qual não valia a pena falar muito, porque já passara, mostrou-nos os morangos mais doces e, depois de nos esclarecer sobre como se colhem sem danificar a planta, foi-se embora, lançando-nos um inesperado «fiquem à vontade, comam os que quiserem e, se precisarem, eu estou por aí». 

Quando este inverno pandémico tiver abalado, sucumbido à bruxaria mais bondosa que a ciência há de conseguir parir, havemos de nos deter, encarar o passado e, de lá, resgatar tudo o que de bom tivermos conseguido criar, vencendo dessa forma e em absoluto este combate que dura há já tempo demasiado. Torna-se imperioso, por isso, construir hoje as lembranças futuras e, sobretudo, continuar com a nossa preciosa responsabilidade de proporcionar aos nossos filhos essa construção. O Filipinho adorou. Comeu uns quantos morangos e escolheu outros tantos para trazer para casa, por isso, estou certo de que uma das suas memórias boas será o dia de ontem, o dia em que fomos à quinta do senhor Cláudio, onde colhemos da sua amizade e genuína simpatia.

Visitem a quinta do senhor Cláudio. Fica aqui: https://www.facebook.com/Quinta-Por-do-Sol-Produ%C3%A7%C3%A3o-de-Morangos-979849788764912/?ref=py_c

segunda-feira, 22 de março de 2021

HERÓIS AO DOMINGO

 


O Filipinho dorme. Retempera energias do frenesim matinal. Oiço-lhe a respiração através do comunicador instalado no seu quarto e aquieto-me. Deixo cair, então, o olhar sobre o relvado recém cortado e percebo uma bola esquecida entre o baloiço, cada vez mais pequeno, e um jovem carvalho-alvarinho que tarda a florescer. Aquele golo marcado de pé direito assinalou o fim da brincadeira e, ao chamamento da Susana, preparamo-nos para o almoço.

Ao regressar, pela primeira vez e sem que nada o fizesse prever, disse-me que eu era o seu herói.... O seu herói, eu? Enchi-me de orgulho e senti uma incontrolável vaidade. Sem saber bem como lhe responder, abracei-o e lancei-lhe uma generosa porção de beijos. Claro que nos atrasamos para o almoço, mas é domingo e o Filipe disse-me que eu era o seu herói e aos heróis tudo se perdoa!

A minha Primavera não começa hoje; dura há quase três anos!

quinta-feira, 18 de março de 2021

Manual dos Dias Cavos


Os poetas - bem sabemos - são almas generosas, mas há uns que teimam em ser mais poetas do que outros! O professor Emanuel Jorge Botelho é um destes, ele que passou a "dar a cada palavra a [sua] palavra de honra".


FOLHA DE CÁLCULO


resta-me uma aspa

para fechar o dia de hoje,

e um naco de amargura

capaz de dobrar a noite


já não sei chamar pelo nome

as palavras com que me digo,

aquelas a que a mão, rasa de tempo,

ia dando casa na memória


os dias são agora coisa que me custa,

demoras de gosto ácido

hasteadas no logro da alegria


é tão bom olhar-te de mansinho, meu amor,

e esperar que o silêncio

traga o pó que nos protege. 


«Manual dos Dias Cavos», Emanuel Jorge Botelho, Averno, 2021

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

AVENIDA MARGINAL - FICÇÕES, PONTA DELGADA

 

Não há muitos dias, e a propósito de um outro livro, contrariei a opinião, cada vez mais arreigada, de que o conto estaria ultrapassado, que se encontraria em franco declínio e de morte anunciada por não ser vendável nem atrativo aos olhos dos leitores. Continuo a pensar da mesma forma. O género está vivo e a verdade é que nos têm chegado obras de qualidade superior que comprovam esse vigor literário.

O mais recente exemplo e, seguramente, um dos mais aguardados, foi o Avenida Marginal - Ficções, Ponta Delgada, que segue já no seu segundo número, sucedendo ao do ano de 2019 e que inaugurou uma série fascinante e que se espera duradoira.

Se a estreia da coletânea se deu com a pujança e sucesso que todos reconhecemos, colocando o desafio dos “novos” num patamar de excelência, os contistas deste ano não se atrapalharam e conseguiram manter a fasquia o que, em abono da verdade, se afigurava tarefa hercúlea.

Assumindo novamente o ar de homenagem à cidade mais populosa dos Açores, esta compilação reúne a voz de onze autores tão singulares como João de Melo, Judite Canha Fernandes, Catarina Ferreira de Almeida, João Pedro Porto, Eleonora Marino Duarte, Daniela Sousa Medeiros, Bernardo Rodrigues, Diogo Ourique, Gina Ávila Macedo, Ana Monteiro ou Daniel Gonçalves. Tal como no número que lhe antecede, repete-se a aposta numa mescla de nomes consagrados com outros que, não sendo escolhas óbvias, se mostraram capazes de, fruto do trabalho, empenho e, inevitavelmente, bastante talento, conferirem aos seus textos versatilidade criativa, assumindo-se aptos a “criar ficções densas e muito bonitas, enredos curtos mas largos em significado, o que me parecem ser condições fundamentais na produção textual dentro desta tipologia ou género literário de características tão peculiares”.

Como diria uma amiga e profunda conhecedora da literatura de raiz açoriana, confesso que apreciei sem qualquer moderação os onzes contos que nos são apresentados e, de todos, retive considerações que guardarei apenas na memória, assim me instiga a civilidade e o facto de não querer assumir o ingrato papel de spoiler perante os futuros leitores da obra. Não obstante, quero sublinhar a coragem com que se traz à esfera literária (e também pública) temáticas que, por representarem lutas pessoais, ganham aqui redobrado valor!

Com este segundo número de Avenida Marginal – Ficções, Ponta Delgada, esta coletânea cimenta a sua posição no rol de iniciativas que engrandecem literariamente o arquipélago, a par de outras, das quais se destacariam os Colóquios da Lusofonia, o Arquipélago de Escritores, os diferentes Prémios Literários, a Festa do Livro dos Açores ou o Plano Regional de Leitura.

Esta obra vem corroborar a ideia, cada vez mais assumida, de que urge olhar o arquipélago literário dos Açores além de Antero Quental, Natália Correia ou de Vitorino Nemésio. Apesar de considerar que a estes se devam reservar lugares cimeiros e reguladores, há muitos valores a despontar e outros já bem vincados neste chão a que muitos já arriscam chamar de literatura açoriana. Procuremo-los, com a garantia de que as nossas ânsias literárias não sairão defraudadas, bem pelo contrário.

Está de parabéns a editora Artes e Letras, na pessoa da Maria Helena Frias, que soube “resistir e insistir”, apesar de todas as adversidades. Como ela: “Queremos literatura. Queremos cultura.”

Avenida Marginal – Ficções, Ponta Delgada |n.º 2, Artes e Letras, 2020  
#livrosecoisasdessas

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

A Nova Índia aos Olhos de Anamika

 


Não há muito tempo li um livro que adorei. Babyji, exemplarmente redigido por Abha Dawesar, escritora indiana duma capacidade de escrita muito acima da média. É daqueles livros que nos agarram desde a primeira página até à última (340).

Devo dizer que quando o comprei, tinha apenas como referência uma breve, mas muito cativante sinopse publicada na Visão, mas decorrendo a acção na Índia, mais me “aguçou o apetite”, isto porque sou simplesmente doido por aquele país, aquela cultura fascina-me desde longa data.

Anamika, ou Babyji, como carinhosamente é chamada pelos que lhe são mais próximos, vive em Nova Deli e é uma estudante excepcional, é genial a Física Quântica, adora estudar, e procura sempre superar tudo e todos para não desapontar ninguém, já que é olhada por seus pares como exemplo a seguir. Mantém com a directoria da escola onde estuda uma relação muito próxima, já que representa todos os estudantes do seu colégio. Sente-se orgulhosa disso mesmo, é o orgulho dos seus pais, mas sente o peso que acarreta, a posição que ocupa na sua micro – sociedade.

“Em casa, lê o Kamasutra às escondidas e, no seu esforço para crescer, atrai as atenções de homens e mulheres, rapazes e raparigas. Ávida de experiências e saber, questiona a justiça e a relevância do sistema de castas indiano, o conservadorismo do país e questões morais e intelectuais tais como a homossexualidade e a religião.” É descrita uma adolescente que para além de sofrer com as mudanças próprias inerentes à sua idade, é ainda perturbada por uma inteligência e espírito crítico muito acima da média, muito além do que a sua idade lhe deveria exigir! Os próprios amigos de Anamika não a entendem quando os questiona sobre algo, está quase sempre para além do seu conhecimento, mas não a criticam por isso. Admiram-na!

Babyji, não encontrando as respostas que pretende pelos meios convencionais, procura-as de outras formas. Será através da prática sexual que vai encontrar muitas das soluções aos seus problemas.

Ousada, já que o sexo é, ainda hoje, tema tabu neste país de raízes tão peculiares, esta adolescente, em busca de si própria envolve-se em diversas relações de amor, umas hetero, outras homossexuais, o que lhe poderia valer a qualquer momento fortes reprimendas e mesmo castigos demasiado pesados para a sua inocência. Desafiou toda uma moral intrínseca, duma sociedade ultra – conservadora, uma família regida pelos velhos costumes, mas descobre sempre aquilo a que se propõe.

Romances com as mais cobiçadas colegas do colégio, com o detestável rufia da escola, com a empregada da sua casa, amores escaldantes com amigas de sua mãe ou com o pai do seu melhor amigo, Anamika, passa a encarar cada relação sua como uma panóplia, como uma fonte de respostas à sua mente tão ávida de conhecimento adulto, conhecimento que não considera de forma nenhuma ser precoce.

Realmente a não perder. É adorável, entusiasmante, embora considere que por algumas vezes a autora se tenha deixado levar pela paixão, pelo querer expor o que tanto se preza naquele país por manter escuso ao resto do mundo: o preconceito ou em última análise o racismo advindo única e simplesmente de forma hereditária ou por via das tradições.

A história em si é mesmo bastante agradável à leitura recreativa, mas o que mais me apaixonou nesta obra foi indubitavelmente a forma como a Abha tão bem soube caracterizar a sociedade indiana actual.

Muito embora não tenha sido uma nova descoberta, a forma como é descrita a estratificação da sociedade em castas é deveras adorável. O preconceito dos Brâmane (ricos e nobres) face ao pobre e às profissões consideradas menos relevantes, a superstição daqueles em relação aos desfavorecidos e o nojo com que são olhados os Párias ou os condenados aos trabalhos mais sórdidos e mal pagos, é retratada de uma forma avassaladora, muito cuidada e extremamente elucidativa.

Abha Dawesar consegue despir todo um país de forma sensual, e põe a nu, aos olhos do mundo, todo o preconceito que em pleno século XXI ainda existe no seu país natal.

Objectivo alcançado, já que segundo a própria, foi a isso mesmo que se propôs inicialmente.

Eu recomendo!

 Abha Dawesar, Babyji, Edições Asa, 2007

Telmo R. Nunes a 18/04/08


terça-feira, 12 de janeiro de 2021

After Dark: Os Passageiros da Noite

 


Sempre que conversávamos sobre Literatura o diálogo recaía invariavelmente no mesmo autor: Haruki Murakami.

            - Já leste algum livro dele? Qual o que mais gostaste? – Perguntava com um brilho nos olhos, com um entusiasmo que nunca lho reconhecia noutros escritores.

            - Não! Ainda não o li. – Respondia com uma pontinha de vergonha pautada por um trago seco e tímido, típico de quem deveria já ter feito alguma coisa importante mas que, sem qualquer razão aparente, ainda não o fez... O meu constrangimento adensava-se à medida que o seu alvoroço crescia nos relatos que ia fazendo de todas as obras suas que lera. Contava-me praticamente todo o enredo dos livros, fazia-o mesmo sem se aperceber, para no final rematar com a frase “ (…) mas não me quero alongar mais, não vá demolir-te agora o prazer de uma excelente leitura!”.

            Confesso que numa das últimas vezes que procurei a minha livraria, lembrei-me dessa minha grande amiga e, por ela, estive com uma obra dele entre mãos, “Kafka à Beira-Mar”, um texto de 2006 e, porventura, o seu maior sucesso, mas devo dizer que não o trouxe, embora não me assole agora o motivo pelo qual isso aconteceu. Em abono da verdade não me recordo do título pelo qual o decidi trocar, conquanto nunca o tenha revelado antes.

            Incrédula com a minha quase teimosia, com a minha forte resistência em ler o seu herói, essa grande amiga e companheira de viagens literárias, decidiu ofertar-me com, segundo ela, uma relíquia, uma obra-prima do seu autor predilecto. – “Já não tens desculpa! Agora lê e diz qualquer coisa depois. Se não valesse a pena não te falaria nele” – aditou ela ao embrulho que me acabava de dar.

            Num aspecto, pelo menos, sabia que tinha razão, se não houvesse ali qualidade, nunca me iria falar dele!

            Assim, o título da oferta era o mesmo que presta título a este texto, “After Dark – Os Passageiros da Noite” – e devo dizer que até a composição exterior é bastante agradável à vista, o que, infelizmente, não consigo ainda deixar de prestar atenção no momento da compra.

            Claro está que antes de começar, procurei aqui e ali por informação relativa ao que iria ler e, devo dizer que a primeira impressão com que fiquei foi pouco auspiciosa. Lembro-me mesmo de pensar que o enredo desta obra era manifestamente pouco interessante – um relato iniciado e terminado numa noite apenas. Como pano de fundo a cidade de Tóquio e todas as vivências possíveis numa noite/madrugada sombria e fria – não era bem isto que esperava! Ainda assim comecei e devo dizer que em poucas páginas alterei por completo a minha postura face ao que lia. Ela tinha razão! Murakami é mesmo um escritor de excelência, é dotado duma capacidade rara de “fazer brotar magia do nada”. A narração é efectivamente feita num espaço temporal demasiado curto, mas nem por isso deixa de ser um texto sublime, fantástico, com uma riqueza poética absolutamente divinal. Um músico pouco prendado com queda para o Direito, uma estudante brilhante de dezanove anos extremamente reflexiva para a idade, sua irmã que, estranhamente dorme há meses, a poderosa e sanguinária máfia japonesa, um Love Hotel de qualidade duvidosa, “escoltados” pelos crimes que só a noite consegue esconder, formam em uníssono uma trama que é, sem qualquer dúvida, um gáudio à alma. É uma narração que tem tanto de imaginário como de autêntico, é o relato de enredos de um mundo tão real que poderia muito bem ser o nosso!

Foram duzentas e vinte páginas de puro regozijo, de descoberta e de admiração por este autor que agora me deram a conhecer. Foi o início de uma leitura que se vislumbra agora como duradoira, dada a obra que o mesmo possui. Fico extremamente agradecido a quem mo apresentou e, por isso mesmo, não posso deixar de o recomendar a quem ainda não o conhece – vale muito a pena!

 Haruki Murakami, After Dark : Os Passageiros da Noite», Casa das Letras, 2008

Telmo R. Nunes

03/Março /2009

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

A Distância que nos Uniu

 

            Um jovem casal de estudantes conhece-se e, por entre o rebuliço das suas vidas académicas, apaixonam-se de forma intensa. Vivem, durante algum tempo, um amor desmedido mas, por força do destino, vêem-se subjugados a uma separação geograficamente forçada. Sem grandes recursos para a contrariar, optam por oprimir o sentimento que os une, na esperança vã que o mesmo se dilua com o tempo.

                Por entre uma trama repartida por várias cidades europeias, este casal de amantes reencontra-se anos depois, ateando-se-lhes novamente o amor que nunca deixaram de sentir um pelo outro, catapultando-os de imediato para um passado tão afectuoso. Ainda que em condições deveras antagónicas e visivelmente adversas, o destino encarrega-se de se fazer cumprir, culminando esta história numa união previsível mas, contudo, de contornos completamente inesperados.

                “A Distância que nos Uniu” é o primeiro romance da jornalista Patrícia Carreiro mas, dada a forma como o escreve e mormente pela imaginação que lhe impõe, dir-se-ia que é já uma autora francamente traquejada.

                A ela, os meus sinceros parabéns!

(Texto de 2010)

Patrícia Carreiro, A Distância Que Nos Uniu, Edições Macaronésia, 2009

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

INSULARIDADE E "ILHARIZAÇÃO"


Numa das suas, cada vez mais interessantes, crónicas, escrevia Nuno Costa Santos que nunca lhe fizera confusão viver numa ilha, nunca sentira claustrofobia nem nunca agoniara por se ver rodeado de mar. Animava a premissa com o assombro dos seus amigos continentais, ao perceberem essa sua pacificação com o natural isolamento criado pelo mar imenso e, rematando com afinco, lançava: «A ideia de que o ilhéu é um ser prisioneiro entre vagas vem-se tornando cada vez mais num cliché que convém mais a uma poesia gasta da vivência insular do que à realidade quotidiana.». 
Dei comigo a pensar sobre o assunto e, vejo-me impelido a confessar que sinto uma certa inveja sã daqueles que, como ele, são imunes ao sentimento de clausura ilhoa.
Eu sou açoriano de coração – por ter nascido nas bandas de lá –, que, não sendo condição inferior, é talvez suficiente para me apartar dessa pacificação que o cronista parece sentir. Não será, naturalmente, sentimento exclusivo dos nados e criados ilhéus, mas parece andar mais arredado dos que aqui arribam e procuram assentar, mesmo daqueles que muito desbravem em sentido inverso (e tem sido uma constante, a todos os níveis). Por vezes, só por vezes, invade-me esse sentimento de aprisionamento, misturado, é certo, com a inevitável saudade nial. Quem a conhece saberá que é uma sensação tramada, quase depressiva, mitigada apenas com a colaboração da nossa Sata Internacional!
Dir-me-ão que estarei a caldear identidade, génese, saudade. Talvez tenham razão, mas o que me sobra dessa amálgama parece ser precisamente o sentimento referenciado na aludida crónica, aquela vontade de levantar âncora e abalar, ainda que por curto período…
Há muitas formas de viver os Açores, e a minha, não sendo a mais benévola, não me faz sentir, de forma alguma, um ser marginal nestas ilhas onde todos cabem! Muito me dá a ilha e prefiro encarar essa mescla de sentimentos como um “apelo da terra que me pariu”, ou um aguçar do sentimento de pertença, que jamais quero perder. Prefiro justificá-la assim a procurar na ilha insuficiências que expliquem a minha vontade de existir também do lado de lá!
Sim, sinto a insularidade, mas procuro viver bem com ela. 
Daniel de Sá falava-nos de uma “dupla insularidade”, quando se referia às ilhas orientais, eu estarei ainda (e para sempre) em processo de "ilharização"… 

Ao Nuno, um especial agradecimento!