quarta-feira, 21 de abril de 2021

Vasco Pereira da Costa

 


A propósito de Nas Escadas do Império, da autoria do virtuoso poeta, ficcionista e artista Vasco Pereira da Costa, escreveu Santos Barros:

«Não custa muito admitir que as letras açorianas ganharam, neste ano de 1978, novo fôlego com a edição em quantidade de livros a que não falta qualidade. Avultarão, por certo, dessa dezena e meia de títulos, duas obras, de ficção, verdadeiramente extraordinárias - previne-se que, uma vez por outra surgem obras merecedoras do emprego de palavras cuja justeza não obriga a temer-se o desgaste do lugar-comum. E porque são «verdadeiramente extraordinárias» as sublinho, repetindo-as. Uma, é a colectânea de contos Nas Escadas do Império de Vasco Pereira da Costa (...)».

Se além desta nos referirmos também a outras obras posteriores, como Plantador de Palavras Vendedor de Lérias, de 1984 ou Memória Breve, de 1987, parece-me muito ajustado confirmar que a «mina» literária que este autor terceirense tem vindo a escavar ao longo dos anos, se tem revelado muito profícua, tendo há muito ultrapassado «o limiar das «promessas»», elevando-o ao lugar de relevo que hoje deve ocupar, junto dos melhores contistas açorianos e nacionais.

Estamos a falar de um conjunto de contos soberbo, digno de reedições atualizadas, sob pena de, impunemente, silenciarmos uma voz que, além de nos encantar com o brilhantismo da sua poesia, se destaca como um dos grandes contadores de histórias do nosso tempo.

É uma pena o incompreensível alheamento que se abate sobre ele e a sua obra.

Vasco Pereira da Costa, Nas Escadas do Império, Centelha, Coimbra, 1978


sexta-feira, 2 de abril de 2021

AS ILHAS DE GUILHERME DE MORAIS

 


«(…) é que estas terras, eleitas de Deus, são ainda desconhecidas dos próprios açorianos, perdidos uns nos outros na bruma das ilhas afastadas.

Os açorianos são, infelizmente, os primeiros a desconhecer os Açores, isolados nos seus alcantis, como se cada ilha fosse um País diverso e longínquo.

Por isso todo o açoriano devia fazer o cruzeiro das suas ilhas: para decorar o poema de beleza que existe em cada uma, para escutar a alma que palpita em todas – Portugal.»

Embora não seja muito frequente e talvez até pouco avisado abrir um comentário a uma obra literária fazendo uso de um trecho tão extenso, a verdade é que não há como ficar indiferente à mensagem ali registada. Sendo certo que na primeira metade do século passado esta premissa teve um alcance, seguramente, bem mais amplo, a verdade é que não se evidencia nela quaisquer imprecisões, volvidos que estão quase noventa anos desde a sua redação original. 

A obra Ilhas do Infante, da autoria de Guilherme de Morais (editada pela primeira vez pela Livraria Editora Andrade, em Angra do Heroísmo) é o resultado de uma série de crónicas publicadas na imprensa regional açoriana, fruto de um cruzeiro a bordo do vetusto Vasco da Gama, o «velho Pimpão da Heróica Marinha de Guerra Portuguesa», decorria o ano de 1932. A viagem pelas ilhas celebrava «patrioticamente o V Centenário do seu Descobrimento», numa altura em que se apontava 1432 como a data de descoberta das ilhas açorianas.

Para além do texto original de Guilherme de Morais, em boa hora recuperado pela editora Artes e Letras, este excelente volume integra também três textos introitos: um da autoria de Urbano Bettencourt, onde tece preciosas anotações de contexto, adiantando também algumas de índole mais analítica,  outro da responsabilidade de José Henrique dos Santos Barros, anteriormente publicado no seu O Lavrador de Ilhas – I, e intitulado «Os Açores Num Livro de Viagens Dum Escritor Açoriano Injustamente Esquecido», onde se pode confirmar que o livro se lê «(…) ainda hoje, com bastante interesse», e outro, ainda, sob forma epistolar, em cujo remetente Ruy-Guilherme de Morais, filho de Guilherme de Morais, autor da obra original, partilha, com soberbo brilhantismo literário, informações sobre a vida e obra do seu falecido pai, com quem apenas conviveu durante seis anos, em consequência do precoce desaparecimento de Guilherme de Morais aos trinta e três anos de idade.

Qualquer um destes relatos conduz os leitores a uma narrativa de viagem verdadeiramente extraordinária, abrindo-lhes possíveis perspetivas de leitura ou, ao invés, condicionando-a irremediavelmente, sobretudo, pelas constantes alusões que são feitas às similitudes com a muito interessante obra Ilhas Desconhecidas, de Raul Brandão. Aliás, é o próprio Guilherme de Morais que, na sua narrativa e por diversas ocasiões (talvez em demasia), faz referência à obra de Brandão, publicada em 1927, cerca de cinco anos antes deste seu cruzeiro pelas ilhas açorianas.

Ainda que encarasse os Açores como «uma visão do Paraíso», e visse este como um «livro de paisagens», a riqueza deste Ilhas do Infante encontra-se alojada, sobretudo, na leitura que conseguir penetrar além do ato meramente descritivo e contemplativo, pese embora, este, per se, seja já digno de assentamento. Servindo-se muitas vezes de uma linguagem luxuriante, mas nem por isso menos lúcida, Guilherme de Morais dá-nos conta desta sua «peregrinação sentimental» pelo arquipélago (que muito lhe exaltou o «açorianismo»), não olvidando de, a trechos, lançar o seu olhar expositivo e, subliminarmente, crítico sobre a vivência social, económica, política, no fundo, sociológica, nos Açores, na primeira metade do século XX.

Esta é uma obra que precisa de ser lida com calma, (re)construindo mentalmente cada imagem, saboreando cada descrição, para assim conseguir trazer à memória cada recanto, cada visão, cada ângulo ou ponto de vista descritos. Mesmo considerando a incompletude em termos de ilhas (encontra-se omissa a narração da visita à ilha Terceira), assim como as diferentes “profundidades” consignadas a cada ilha (fruto, sobretudo, do tempo de estada do Vasco da Gama em cada porto) este relato propicia uma visão distinta do arquipélago e, mesmo os afortunados que já calcorrearam as nove ilhas que o compõem, terão aqui uma oportunidade de se apropriar de uma outra visão que lhes é oferecida a partir do longínquo ano de 1932. Para aqueles outros que se encontram em processo de “ilharização”, esta obra reveste-se, então, de uma valia redobrada, dando-lhes a conhecer uma visão do passado que sustenta hoje a realidade que todos conhecemos.

Apreciei sobremodo todos os capítulos, «Intermezzo», incluído; de todos retirei considerações, mas, não há como deixar de enaltecer a atenção conferida à ilha de Santa Maria, da qual destacaria o excerto dedicado a São Lourenço: «Se me preguntarem onde está o segredo, o "quid" desta maravilha, não saberei dizer, ninguém o saberá dizer. É talvez este conjunto desarmónico, este destrambelho de cores, atropelando-se, repelindo-se, o verde das vinhas em luta com o vermelho vivo dos telhados, com o azul do mar e o ouro da praia e tudo isto, afinal, confundindo-se, amalgamando-se ao mesmo tempo, num gral imaginário onde os olhos se perdem, numa visão daltónica, tontos de beleza emotiva.

Há paisagens que se não pintam porque não há cores que as possam trasladar, com fidelidade, da natureza. Essas, só a música, na sua portentosa faculdade interpretativa, as pode reproduzir.

S. Lourenço pertence ao número das paisagens musicais».

A par da refinada prosa poética que perpassa toda a obra, esta edição contempla ainda um conjunto de doze sonetos que atesta a «alta sensibilidade» de Guilherme de Morais e que comprova também que o seu desaparecimento precoce parece ter ceifado ao solo de criação açoriano o brilhantismo de uma pena que ainda teria muito para oferecer. Cabe-nos congratular aqueles que, sabiamente, souberam resgatar a sua obra do esquecimento, trazendo-a aos escaparates da vida, repondo, dessa forma, alguma justiça na injustiça com que se reveste sempre uma morte prematura.

 

Guilherme de Morais, Ilhas do Infante,  Artes e Letras, 2019