sábado, 25 de agosto de 2018

In Açoriano Oriental



Meridiano 28 O poder redentor das grandes histórias

Começam a rarear os bons adjetivos que qualifiquem condignamente a obra ficcional de Joel Neto, um dos expoentes mais cintilantes do atual panorama literário português. “Meridiano 28 O poder redentor das grandes histórias” é o último romance do autor de “Arquipélago” ou “Vida no Campo”, e nele é feita uma apologia ao amor, nas mais diversas formas de o sentir.

Podia ser Morgan Freeman, mas não era.”: eis a entrada que nos conduz a uma viagem no tempo, desde 2017 até 1939, com paragens obrigatórias em diferentes épocas e geografias mundiais. “Meridiano 28 O poder redentor das grandes histórias” arranca na Lisboa contemporânea, mas rapidamente se muda até uma Nova Iorque dos finais do século passado, onde C. Devon Fitzhugh, um excêntrico personagem, incita José Filemom Abke Marques, o narrador do romance, a escrever um livro, buscando a verdade sobre a presença de um agente nazi na ilha do Faial, arquipélago dos Açores.

A partir deste ponto, a ação desenvolve-se numa malha bastante complexa, mas nem por isso menos coerente. Com efeito, coerência e coesão entre todas as linhas narrativas nunca são colocadas em causa, e o rigor do detalhe encontra-se sempre presente ao longo de toda a diegese. Neste particular, sublinho o número de personagens enunciado na tábua inicial do romance – cerca de cem –, para que percebamos o trabalho hercúleo que o autor despendeu nesta intrincada teia de relações, para que da leitura resultasse – como resulta – uma escorreita sensação de que tudo se funde harmoniosamente.

O livro, que se divide em 5 partes, perpassa diversas épocas históricas e outros tantos pontos do globo, mas poder-se-á afirmar que o âmago do plot se reporta à ilha do Faial, nos idos anos 30 e 40 do século passado, a partir de onde o narrador se vê obrigado a reconstituir a vida de um familiar recém-falecido – Hansi Abke. Neste período, e com a II Guerra Mundial em pano de fundo, é-nos servida uma cidade da Horta cosmopolita, alegre, jovial, visitada amiúde por estrelas de cinema, desportistas e outros famosos de renome internacional, dos quais se destacam a bailarina Mitzi Mayfair ou o aviador Antoine de Saint-Exupéry, que amaravam no porto da Horta a bordo, entre outros, dos potentes Yankee Clipper, da Pan American.

Inversamente ao clima de guerra e à mortandade que cobriam de sangue quase toda a Europa continental, vivia-se então na pequena ilha do Faial um peculiar alheamento de todo aquele cenário dantesco. Ingleses e alemães conviviam em sã harmonia, fruto, sobretudo, da exploração dos cabos telegráficos, tão frutuosos na primeira metade do século passado. Uns e outros bailavam na Sociedade Amor da Pátria, faziam piqueniques nos locais mais idílicos da ilha, jogavam partidas de bridge, de ténis ou de croquet. Vivia-se um clima de aparente letargia face ao implodir de uma guerra com efeitos tão devastadores para ambas as partes.

«Natália (…) descrevia o naufrágio do U-581 ao largo da ilha do Pico, após um combate com uma flotilha de destroyers ingleses, em pleno Canal, a que muita gente pudera assistir a partir da doca da Horta (…)».

Ainda que de forma inusitada, todos na ilha pareciam querer assumir o papel de espetadores apáticos perante partição da Europa e do mundo.

Tal como em outras obras, também nesta, Joel Neto manifesta uma relação de amor com as ilhas açorianas, não se deixando cair, contudo, na tentação de se ater apenas a elas. A partir das ilhas dos Açores, mas olhando-as e integrando-as cuidadosamente num mundo mais amplo e complexo, ele compreende e (des)escreve um dos mais importantes acontecimentos da história de toda a humanidade. A sua cosmovisão, a sua concepção do mundo encontram-se bem patentes em cada uma das 420 páginas que perfazem a obra, mantendo, ainda assim, a génese discursiva na ilha, que nunca é deixada para trás. Não obstante tratar-se de um exercício de difícil execução (e isto é distintivo apenas dos grandes autores), ele vê os Açores como parte integrante de um mundo; o arquipélago é colocado lado a lado com geografias tão diversas como Lisboa, Nova Iorque, Friburgo, Porto Alegre ou Praga e, em momento algum, se nota ‘um forçar’ da açorianidade, antes se deixa transparecer um sentimento telúrico harmoniosamente integrado na mundividência própria do autor.

A este propósito não há como não recordar a mónita lançada por Daniel de Sá aos escritores açorianos, onde apelava que não cedessem aos lugares-comuns quando se tratasse de “cantar a terra”. Joel Neto interpreta isto na perfeição, não se inibindo de retratar os Açores sempre como parte de um todo maior, e fá-lo sem que isso belisque, um pouco que seja, a sua condição de ilhéu açoriano. Fá-lo com grande mestria, sem renegar, jamais, as origens que o trouxeram a este patamar de excelência, onde agora se encontra. Percebe-se que as fronteiras que a ilha impõe não foram suficientes para, de alguma forma, lhe manietar um espírito integral.

Por se retratar um período histórico que, pessoalmente, muito me diz, e pelo qual nutro especial interesse, confesso que a leitura que efetuei terá sido bem mais fugaz e sentimental do que propriamente técnica, mas confesso que não me arrependo. É um romance apaixonante, daqueles capazes de nos extasiar desde a primeira à última página.

Vale a pena ler autores açorianos!


Telmo R. Nunes
a 19 de agosto de 2018