terça-feira, 29 de agosto de 2023

A NOSSA PRIMEIRA ESTRELÍCIA


 A NOSSA PRIMEIRA ESTRELÍCIA 


Desde tenra idade, sempre me encantaram as flores, fossem as mais simples e campestres, crescidas por entre eucaliptos, pinheiros ou giestas-bravas, na bouça atrás da casa da minha avó materna, fossem as outras, aquelas mais caras, chiques, compradas na florista, que a minha avó ou mesmo a minha mãe acolhiam com todo o esmero em vasos bonitos, antigos e de faiança cobiçosa.

É certo que um rapazote de oito ou dez anos não confessava esse gosto ante os outros, não fosse o capricho chegar aos ouvidos do grupo de amigos e, aí sim, estaria o caldo bem entornado: “Olha aquele gosta de flores”. Todos sabemos como em determinadas idades somos capazes de valentes crueldades, não vale a pena escamotear muito mais o assunto.

Todavia, por essa altura, havia uma flor que me encantava em particular: linda, exuberante, desigual de todas as outras que conhecia até então, com as suas cores fortes e formato inusitado: era a estrelícia ou como também é conhecida a ave-do-paraíso.

Tomei conhecimento da sua existência, porque, anualmente, e até há pouco tempo, um casal pacense, há muito radicado na ilha da Madeira, ofertava caixas e caixas de estrelícias com a finalidade de alindar a Igreja Matriz de Paços de Ferreira, para a celebração do Natal (segundo me garante a minha mãe, já que tinha memória de que fosse por altura Pascal). 

Para nós, miúdos (e graúdos também) aquilo era um motivo de grande orgulho, ver o velho templo todo engalanado, vaidoso por envergar aquelas cores alegres, vistosas, capazes de suster a atenção de todos e de quantos nos visitassem. Fruto do labor das senhoras responsáveis pelo adorno da igreja, era realmente notável o resultado final, e tudo em honra de Cristo, celebrando o seu nascimento.

Quando há vinte anos me mudei para São Miguel, fiquei admirado ao perceber que as estrelícias de que tanto gostava cresciam em rotundas e valetas por cimentar. Um mar laranja, azul e verde invadia-me constantemente o olhar. 

Na primeira oportunidade, e porque também o pequenino Filipe lhes acha graça, plantei uns pés no nosso jardim, num recanto previamente escolhido e preparado para as receber, mas durante dois ou três anos, não aconteceu nada, e a desilusão foi-se apoderando.

Até hoje, porque hoje floriu a nossa primeira estrelícia, e, embora pequenina e escanzeladinha, é a mais bonita que alguma vez vi! É a nossa primeira estrelícia, aquela que me carregou até à minha juventude e me trouxe de volta (passe o pleonasmo)o brilho do olhar que, há trinta anos, pousava naquelas que adornavam a Matriz de Paços de Ferreira. 

Agora, outras se preparam para florir, sendo que aquele será, com certeza, o recanto mais bonito do nosso jardim!

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Raiz Comovida, de Cristóvão de Aguiar


(Uma moeda a quem chegue com a leitura até ao fim do artigo. É extenso, eu sei.)

RAIZ COMOVIDA, UM TRATADO DE LINGUAGEM; UM RETRATO ANTROPOLÓGICO 

Fruto da curiosidade, assim como de avisadas sugestões que foram chegando, encetei, recentemente, a leitura de «Raiz Comovida», o I primeiro volume da obra completa de Cristóvão de Aguiar, uma trilogia romanesca que engloba as obras «A Semente e a Seiva», «Vindima de Fogo» e «O Fruto e o Sonho». 

Tendo sido Cristóvão de Aguiar “um dos principais responsáveis pela afirmação cultural dos Açores após o 25 de Abril”, como bem afirmou Mário Mesquita, é muito provável que me chegue a censura pelo atraso com que enceto a leitura desta obra de referência da literatura açoriana, ou, pelo menos, que me surjam conselhos sobre como priorizar as minhas opções literárias. Num assumido e até um pouco envergonhado "mea culpa", responderei, sem quaisquer constrangimentos, que terão toda a razão, estivesse eu mais atento, não me teria escapado a sentença de João de Melo, notável escritor açoriano, que se referiu a este texto como “uma experiência linguística sem precedentes”, motivo mais do que suficiente para lhe lançar um cuidado olhar. 

Não obstante, por saber tratar-se de uma leitura de relevo e, por isso, antecipá-la demorada, marcada, muitas vezes, por idiossincrasias linguísticas e outras dificuldades lexicais, como um linguajar popular ilhéu, bem arredado dos cânones escolarizados e urbanos tradicionais (não raras vezes há de o leitor valer-se do Glossário que encerra a obra), optei, primeiramente, por ler outras obras do autor, destacando-se o «Braço Tatuado» (Publicações Dom Quixote) almejando, dessa forma, a entrada no universo literário do autor, antes de me aventurar neste Raiz Comovida. Tolice minha, confesso! Não me custa adiantar que não haverá o que nos prepare para a leitura deste livro: um verdadeiro tratado da linguagem, revestido por um brilhantismo literário como há muito não lia.

Há neste volume uma verdadeira homenagem, para além de um retrato fiel, a todo aquele mundo rural e açórico de que já poucos terão memória, e refiro-me não apenas à riqueza do linguajar popular das gentes rurais micaelenses, onde o erudito não tinha lugar, mas também, e sobretudo, às imagens sociológica, económica, religiosa, que aqui nos são dadas a conhecer, e que versam temas quotidianos tão díspares como a importância da matança do porco para a economia familiar, as sempre muito curiosas e por vezes bem acesas disputas entre associações musicais vizinhas, os diversos rituais religiosos, muitas vezes esvaziados de Fé, mas sempre vividos com grande fulgor social, não olvidando as curiosas peripécias ocorridas quer em momentos sacros quer em profanos, os namoricos, sejam os permitidos e à janela, sejam aqueles ocultados pela tenacidade de um amor proibido, mas aqui também se alude à emigração, às idas para a América das oportunidades, as que seguiam os trâmites legais, mas também as outras, as fugas “embarcadas de calhau”, a homossexualidade e tantos outros. No fundo, retrata-se a dureza (e por que não dizer miséria?) da jorna, uma constante nos mais diversos meios de subsistência que a ilha tinha à disposição, oferecendo em troca nada mais do que a mísera “côdea de pão”, que, dividida pelos que se sentavam à mesa, mal dava para matar a fome.

Cristóvão de Aguiar oferece-nos, então, um quadro antropológico centrado na ruralidade ilhoa “isolada e empobrecida”, e que se espraia pelas primeiras décadas da segunda metade do século XX, desenhando uns Açores idos, mas cuja história convém conhecer, pelo que, em boa hora, a Edições Afrontamento eternizou, por ocasião dos cinquenta anos de vida literário do autor, toda a sua obra em diversos volumes.

Quando se fala de Cristóvão de Aguiar torna-se frequente a referência a sua forma complexa de ser e de se relacionar com os outros, menção compensada, de imediato, pelos rasgados elogios à qualidade da sua escrita. Miguel Real (conceituado crítico literário), por exemplo, assume dificuldade para discernir qual das obras literárias pode ser considerada a mais importante obra romanesca açoriana pós-25 de Abril de 1974, se a trilogia de «Raiz Comovida», se o volume singular de «Gente Feliz Com Lágrimas», do virtuoso escritor João de Melo, sendo que não alcançando resposta que o satisfaça, assume que “são duas obras que enfileiram na galeria dos grandes romances da história literária portuguesa do século XX.”

Conquanto não possa invocar as “razões afetivas” que outros moveram até ao apelo à leitura, posso, todavia, concordar com esses quando o adjetivam de “magistral” e o classificam como uma “referência inestimável”, porque, em boa verdade, é disso mesmo que falamos. 

Cristóvão de Aguiar nasceu no Pico da Pedra, na ilha de São Miguel, onde iniciou a sua formação académica, tendo depois ingressado na Universidade de Coimbra, onde frequentou o Curso de Filologia Germânica, interrompido pela mobilização para a Guerra Colonial, tendo prestado serviço na Guiné. Finda essa campanha militar, regressa a Coimbra, terminando os seus estudos e encetando um período profícuo em termos literários e profissionais. Ao longo dos anos, ganhou diversos prémios, tendo sido agraciado com o grau de comendador da Ordem do Infante Dom Henrique, pelo então Senhor Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio.

Sobre este autor, escreveu Luis Fagundes Duarte: “[…] o escritor que até hoje melhor conseguiu seguir os rastos daquela esteira de pó, desenhada pelos mortos e outras ausências, que define o percurso da tradição cultural que nos identifica como membros de uma comunidade - a comunidade açoriana.” 


Atrevo-me a deixar um estímulo à leitura, na esperança de que outros se possam sentir impelidos a ler esta maravilha da literatura açoriana.

“24 - Namoros de Janela Baixa

No tocante às raparigas casadoiras, era demais tamanha aperreação; pareciam freiras arrochadas no convento da casa; tudo quanto passa das marcas não dá muito certo; já lá diziam os antigos, com alguma razão, quem muito aperta, pouco arrocha; aperreadas dentro de quatro paredes durante dia e noite, só tinham licença de aparecer um nico à janela nas tardes pasmadas dos domingos e dias santos e, mesmo assim, nada de rédea solta, que as coriscas das mães eram umas cegonas, sempre de olho arregalado e nariz empinado, a farejar se havia mouro na costa, não fosse algum mais manhoso comer-lhe a filha de longe com olhares cobiçosos ou dar-lhe umas palavrinhas de boca pequena; mas a Divina Providência não se deixa dormir, e não há pior semente do que a da língua; o Ti Clemente Bufão tinha duas filhas gémeas, duas belas fêmeas, e o pai “gavava-se” de que não havia nenhum “fideputa” que se consolasse de as namorar e desfrutar, isto porque de uma vez bispou um fralda cagada qualquer rondando-lhe a casa, e o rapaz não era nenhuma peste, mas o Ti Clemente achava lá na sua que nenhuma das filhas regia para ele; vai daí, ao chegar ao fundamento de que o rapaz andava mesmo arrastando a asa lá pelas suas bandas, pregou as janelas da frente, e nenhuma das raparigas se podia chegar a elas; com as janelas pregadas a sete pregos, o Ti Clemente julgava que não podia haver mais dúvidas quanto a malícias de olhos ou falas de boca pequena entre eles; enganou-se redondamente; nunca mais houve, na verdade, a mais pequenina pitada de olhares trocados nem arreganho meiguiceiro de dentes; estava o Ti Clemente mui descansado e satisfeito com o seu tèsto proceder, quando, um belo dia, a mulher lhe veio dar a saber que ambas as filhas estavam cheias como vacas quase a parir; e mais, estavam pejadas do mesmo candeeiro de folheta, “inté” se dizia, por pilhéria, que uma delas estava de barriga do Divino Espírito Santo e o certo é que um dos “chinchins” ficou mesmo com o apelido de Menino Jesus; o Ti Clemente não queria acreditar no que ouvia à mulher e subiu aos arames da ruindade; ficou de cabeça desarrematada, queria à fina força pôr uma demanda em tribunal, mas, vendo que pouco ou nada amanhava, a não ser consumição e falatório ainda mais grande, pois o rapaz devia casamento às duas e só com uma se podia casar; com o desgosto, pegou o Ti Clemente em si e embarcou para a terra da América; uma das gémeas casou mais tarde com o rapaz que a tinha enganado, os pequenos tratavam-se por irmãos, chegando a zoar pela freguesia que aquilo era uma noite com uma e outra com a outra, o jogo da vez e outra, como no do pião - uma grande escândula que aconteceu na freguesia e neste ponto dou razão aos antigos quando diziam que quem muito aperta, pouco arrocha; se as raparigas tinham derriço que principiava nas festas do Divino ou nas da Senhora da Boa Viagem, penavam os olhos da cara para darem dois dedos de conversa com o noivo, que andava numa arredouça, para baixo e para cima, ou, “intance”, se as pernas pediam descanso, ia servindo de espeque a alguma parede ali ao pé, na mira de uma ocasião mais coisa e tal para despejar a saquinha dos sentimentos; as mais das vezes, era trabalho botado ao vento, e o rapaz ficava mais brabo que o mar das Calhetas, quando, por riba, lhe sopra o mata-vacas e não havia outro remédio senão esperar com paciência pelo Domingo que vinha […].” (págs. 129, 130)

A terminar, e porque já longa vai a prosa, talvez não fosse descabido, um olhar um pouco mais acutilante por parte da Secretaria Regional da Educação e dos Assuntos Culturais sobre estas pessoas que, através do seu trabalho, reconhecido virtuosismo e talento, para além de um assinalável comprometimento que já vem de longe, souberam eternizar cabalmente o que é isto de se ser açoriano. Nesse sentido, parece-nos imperioso, que sejamos um pouco mais arrojados, e sobretudo mais ecléticos, e tenhamos a coragem de conceder atenção à literatura de qualidade, atempando esse reconhecimento, para que possa ser celebrado condignamente: Não nos causaria quaisquer pruridos ver o nome de Daniel de Sá como patrono da EBI da Maia, assim como o de Cristóvão de Aguiar na da Ribeira Grande ou de João de Melo na do Nordeste, como aliás já acontece em outras unidades orgânicas de região. Entre outros, Dias de Melo e Vasco Pereira da Costa merecem, há muito, uma reedição dos seus belíssimos contos, sob pena de caírem no olvido coletivo; Pedro da Silveira, Emanuel Félix e Marcolino Candeias são relembrados quase exclusivamente pela iniciativa privada, e que atingem um público muito reduzido. Relembro, ainda, Fernando Aires, o expoente mais cintilante da diarística nos Açores e um dos melhores do país, e não tenho conhecimento de quaisquer iniciativas governamentais, no sentido de eternizar a obra e relembrar o homem. Houve o descerrar de uma placa em sua residência, mas a cargo da família e, apenas mais tarde, uma outra da responsabilidade da autarquia. Embora abra espaço a informação que me possa ter escapado, não obstante as diligências tomadas, parece-me francamente pouco, para retribuir o tanto que o autor nos deixou. Não haverá, nas nossas escolas, leitores interessados em ler os seus diferentes diários? Que se dissemine a obra. E os virtuosos Urbano Bettencourt ou Emanuel Jorge Botelho, em que têm contribuído os responsáveis governativos no sentido de prestar o justo tributo, ou, pelo menos, legitimamente reconhecer os tão profícuos trabalhos que têm desenvolvido ao longo de décadas, seja resgatando do esquecimento nomes que merecem um pouco mais de atenção, seja pela proficiente obra que ambos têm vindo a desenvolver. 

Há aqueles que, não residindo em território arquipelágico, muito se têm batido pelos Açores e pelas suas gentes, seja no Continente, seja na Diáspora, carregando muito da nossa terra até aos novos mundos, dando a conhecer, ensinando, incorporando os Açores e as vivências açorianas na mundividência alargada que se exige aos novos habitantes destes novos mundos. 

Eu corroboro aquela máxima que garante que a génese de um povo reside na sua cultura, pelo que descredibilizá-la será, em última instância, desvirtuar toda a história desse povo, lançando-o a um deus-dará cultural, e substancialmente pernicioso. Estou certo de que não será a pretensão deste elenco governativo, que já mostrou bastas vezes ser capaz de tratar a Cultura com o cuidado que se impõe, por isso, é da mais inteira justeza olhar para estas pessoas e para o seu trabalho, procurando dignificar umas e outro, conforme é seu legítimo merecimento, pelo tanto que nos têm dado.

Cristóvão de Aguiar, «Raiz Comovida», Edições Afrontamento, 2015

terça-feira, 1 de agosto de 2023

A MONTANHA COBRIU-SE DE LAVA E OUTRAS ESTÓRIAS


O professor Carlos Fagundes, florentino de nascença, apaixonado pela ilha do Pico e desde há muito radicado em Paredes, concelho nortenho de Portugal Continental, lançou recentemente o seu segundo livro, intitulado «A Montanha Cobriu-se de Lava e Outras Estórias», um conjunto de narrativas que têm o Pico como chão da sua ação. É inegável a riqueza do trabalho que o autor tem vindo a desenvolver no âmbito cultural, antropológico e até de índole histórico, direcionando-nos o olhar e a atenção para factos, vivências ou eventos de crucial importância, mas que, por algum motivo, tombaram na escuridão do esquecimento. Se com «Entre o Mar e a Rocha» – o seu primeiro livro – o tinha conseguido, a verdade é que não desapontou e nesta segunda incursão pela narrativa curta conseguiu manter a divícia da sua prosa, a fineza vocabular, a vivacidade narrativa e o interesse geral, captando a atenção do leitor desde a primeira à última estória narradas. 

Como acontecera com o seu antecessor, neste volume, o autor dá a conhecer uns Açores substancialmente diferentes dos que hoje se assumem como expoente turístico nacional e europeu. Em cada estória é aberta uma janela para um passado não muito distante – décadas 60 e 70 do Século XX –, mas, felizmente para todos, consideravelmente diferente da realidade em que hoje vivemos. Sem que com isso se procure quaisquer alusões políticas, será caso para sublinhar o tanto que evoluímos em tão pouco tempo. 

O título que empresta nome ao livro é o mesmo da narrativa de abertura, e recupera a crise sismovulcânica ocorrida no Pico, no início do Século XVIII, assim como a peste bubónica que afetou o Faial pela mesma altura. Uma vez mais, o autor parte de uma forte componente histórica para desenvolver as suas narrativas, intercalando eventos factuais com a necessária componente ficcional, criando, dessa forma, um ambiente de verosimilhança que, entre outros, capta a atenção do leitor.

Como foi já apontado por outros leitores, há no livro uma narrativa que se destaca das demais, não apenas por extravasar o universo picoense mas, sobretudo, por se assumir com premissas e qualidade suficientes para algo de maior monta: a viagem de um petiz a bordo do vetusto “Carvalho Araújo”, desde a ilha das Flores até São Miguel, onde viria a prosseguir estudos, ingressando no Seminário Menor de Santo Cristo. Esta narrativa nasce da memória do próprio autor, que realizou esta mesma viagem e a descreve com admirável minúcia, oferecendo-nos um relato tão preciso e impressionante que ninguém ousaria afirmar tratar-se de uma memória com mais de cinquenta anos. Nessa medida, seria muito conveniente eternizar este período tão interessante numa outra obra, eventualmente um romance ou mesmo um livro de memórias.

Permitindo-nos uma pequena deriva, tem sido muito interessante verificar em conversas ou em leituras diversas, a forma como diferentes autores açorianos (Professor Carlos Fagundes incluído) se referem ao “Carvalho Araújo” e às suas viagens. Descrevem-nas sempre como muito difíceis, salientando, particularmente, o tempo despendido em cada viagem, assim como as recorrentes dificuldades gástricas, mas fazem-no sempre com muito enlevo, detalhe e até com um notório resquício de saudade. Tenhamos presente a importância que o velho paquete trazia à vida das pessoas e à economia açoriana e madeirense, em geral, justificando-se, talvez por isso, um certo romantismo em torno destas travessias atlânticas, fossem abordo desta ou de outras embarcações da “Empresa Insulana de Navegação”. 

A riqueza desta obra não se esgota no que fica dito, passando também pelo detalhe e subtileza com que o autor se muniu para caracterizar o povo português e açoriano, em particular. Assuntos triviais da vida quotidiana e outros de maior relevo histórico são tratados com delicadeza e aparente simplicidade, o que, já sabemos, é de dificílima execução. Por entre estas páginas há muito daquilo que nos faz portugueses açorianos, desde logo a capacidade de reação perante as adversidades resultantes das diferentes calamidades naturais que recorrentemente nos assolam, assim como o humanismo e a generosidade daqueles que, mesmo de parcos recursos, não hesitam no momento de disponibilizar o pouco de que dispõem ante miséria do vizinho, ou mesmo do desconhecido. Outra das características transversais a muitos destes textos é o recurso ao sentido de humor, mesmo naquelas situações que se revestem de risco e perigosidade. 

Como escreveu Manuel Serpa no interessante prefácio que abre a obra, “É sempre com redobrada expetativa que acolhemos as novas iniciativas literárias do Carlos Fagundes”, que tem trilhado um percurso em crescendo, pautado pelo brilho da qualidade literária e revestido de um enorme interesse sociocultural. É muito importante que haja quem se disponha a eternizar modos de vida, usos e costumes idos que, de outra forma, cairiam miseravelmente no olvido, perdendo-se, assim, muito daquilo do que fomos e do que está na génese do que hoje somos. Quando encontramos quem o faça, com a vantagem de o fazer com mestria literária, cabe-nos, naturalmente, agradecer e, com ânsia assumida, esperar pela obra que se seguirá.

Carlos Fagundes, «A Montanha Cobriu-se de Lava e Outras Estórias», Letras Lavadas edições, 2023