terça-feira, 25 de outubro de 2022

Frente À Cortina De Enganos Norberto Ávila || 1936-2022


 Conheci pessoalmente Norberto Ávila por ocasião de uma longínqua visita sua ao estabelecimento de ensino onde leciono. Até então, reconhecia-o apenas pela sua ligação à RTP, onde desempenhara funções dedicadas à atividade teatral, em Portugal. Estava longe de saber da sua qualidade enquanto dramaturgo, das suas incursões pela poesia, pelo conto, pelo romance, e mais ainda que se tratava de um açoriano, da ilha Terceira. Desde essa altura passámos a trocar correspondência, que se intensificou após a publicação de um conto seu na revista literária «Grotta», e mais ainda após o reencontro pessoal ocorrido no âmbito do «Arquipélago de Escritores», na sua edição de 2019. Dentre uma diversidade de outros assuntos, debatemos ideias sobre literatura e trocámos alguns livros, tecemos uns comentários críticos sobre estes, tendo sido eu, e em larga medida, acrescentaria, o mais beneficiado desse comutar de considerações. A sua generosidade era evidente, característica que, cada vez mais, associo aos nomes maiores da nossa literatura. Com efeito, e tomando como minhas as palavras do físico, “Quanto maior o conhecimento, menor o ego […]”. 

Foi, precisamente, numa dessas trocas de mensagem que me escreveu pela primeira vez sobre o seu romance «Frente À Cortina De Enganos». Iria torná-lo público. Fiquei satisfeito, pese embora o formato encontrado pelo autor para tal publicação não me parecesse, na altura, o mais conveniente: seria a obra divulgada na página de uma rede social, capítulo a capítulo, alcançando fugazmente um ínfimo número de leitores que, por certo, não lhe prestaria a atenção devida, apanágio de grande parte da informação veiculada nestas plataformas. Nunca lhe dei conta dessa minha opinião, pensei que fazê-lo representaria uma ousadia da minha parte e, agora que já não lho posso transmitir, sinto algum constrangimento. Todavia, terão outros tido a coragem que me faltou, porque a obra chegou, pela sua própria mão, à editora Letras Lavadas, em Ponta Delgada e, aquando da morte do autor, estavam a ser preparadas as diligências finais para a sua publicação em livro. Com efeito, a professora Helena Chrystello, através da associação que ajuda a dirigir, prontificou-se a ultimar os detalhes finais da edição do romance, apresentado condignamente ao público, no Centro de Estudos Natália Correia, na Fajã de Baixo, e integrado no programa do 36.º «Colóquio de Lusofonia».

A obra, dedicada a Luiz Fagundes Duarte, “como testemunho de muita admiração e amizade”, teve como ponto de partida a peça teatral «Fortunato e TV Glória», sendo que, durante a leitura, e por diversas vezes, será percetível este cruzamento entre modos literários. Não raras vezes, sentir-se-á o leitor ante a narração de trechos que muito bem poderiam ser entendidos como didascálias, ou até mesmo como os típicos apartes, tão mais usuais em texto dramático.

«Frente À Cortina De Enganos» vem confirmar, (sem que houvesse, contudo, essa imprescindibilidade) a apuradíssima competência de escrita do autor, o seu vasto conhecimento vocabular e a sua incomum capacidade para a produção do diálogo. Fruto dessa sua vocação para a redação de texto dramático, depurou esta característica ao longo dos anos, sendo, talvez a par de Paula Sousa Lima, o autor açoriano contemporâneo que mais convincentemente escreve em discurso direto. Para além da riqueza vocabular e do uso imaculado do discurso antes referido, Norberto Ávila notabiliza-se ainda pelo recurso a variadíssimas estratégias narrativas que conferem uma dinâmica bem interessante à leitura: elipses, analepses e prolepses são alguns dos mais frequentes, sendo que a troca de voz narrativa e a interpelação direta ao leitor (influenciado, porventura, pelos apartes do texto dramático) são outras das estratégias contempladas. Por outro lado, é frequente o autor tomar a posição do leitor e, a este propósito, não há como deixar de destacar o “Capítulo 7.a”, assim designado por Ávila, onde o próprio assume responsabilidade e adita explicações àquilo que o leitor poderá estar a pensar naquele momento, considerando a prestação, até então, de uma determinada personagem. O seu brilhantismo estende-se ainda aos momentos de descrição. Não sendo adepto da usança frequente do advérbio de modo e, sobretudo, do recurso fácil ao adjetivo, é notório o cuidado que imprime nas suas descrições, valendo-se de comparações significativas para atingir o seu propósito descritivo: “[…] o condutor era um jovem de vinte e poucos anos, bronzeado no rosto e nos braços, cujo cabelo, castanho alourado, se diria um cacho de tremulantes caracóis, arrancado a um painel renascentista.” Para além de tudo o mais, há um fino sentido de humor que perpassa todo o romance, ridicularizando-se abertamente grande parte da sociedade, conferindo especial ênfase àqueles “novos-ricos” que vivem de aparências, mas também o povo e o clero. Aflora-se o “chico-espertismo”, tipicamente português, assim como se coloca em evidência a corrupção, a mentira, a trafulhice.

Norberto Ávila foi claramente um grande escritor português, pelo que, em boa hora, decidiu a Imprensa Nacional-Casa da Moeda publicar, em quatro volumes, os seus textos teatrais, relevando e, sobretudo, eternizando um dos mais notáveis dramaturgos portugueses do século passado. Todavia, e embora se ressalvem os apontamentos tidos pelos responsáveis quer da revista literária «Grotta», quer dos «Colóquios da Lusofonia», e em particular o empenho manifestado pela professora Helena Chrystello, sinto por parte dos responsáveis culturais da região um continuado e incómodo silêncio em relação à vida, mas, mormente, em relação à obra deste açoriano que o foi dos maiores.

Norberto Ávila, «Frente À Cortina De Enganos», Letras Lavadas, 2022


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

ENTRE O MAR E A ROCHA. ESTÓRIAS



Embora editada em junho de 2021, só muito recentemente tomámos conhecimento da obra Entre o Mar e a Rocha – Estóriasda autoria do florentino Carlos Fagundes. Do mesmo modo, fruto, talvez, de alguma desatenção, só agora nos apercebemos do trabalho extraordinário que este professor de Português desenvolve, de forma mais ou menos sistemática, no seu blogue pessoal – Pico de Vigia 2 –, procurando resgatar, preservar e difundir as vivências, usos e costumes florentinos e, de uma forma mais alargada, os açorianos e até os continentais. Este volume, que chegou pela mão de um grande amigo e açoriano dos maiores, revelou-se uma descoberta espantosa, o que é bem sintomático do muito que há ainda por descobrir no universo da literatura açoriana.

A obra arranca com o prefácio de Onésimo Teotónio de Almeida, um texto soberbo, cujo título – Uma Ilha Que É Um Mundo –se assume bem revelador do tanto que o leitor poderá esperar das mais de quarenta narrativas que se lhe seguemCom efeito, cada uma das estórias narradas poderá ser assumida como uma janela com vista para um passado cronológico não muito distante, embora (e felizmente, acrescente-sesocial, cultural e economicamente longínquo. São nacos da verdadeira história da ilha das Flores e das suas gentesassumindo-se, em alguns casos, bem mais interessantes e, passe o exagero, mais proveitosos do que alguns dos textos inscritos em determinados compêndios escolares: não nos custa crer, por exemplo, que será através da leitura destes escritos que muitos dos leitores tomarão conhecimento do naufrágio dBidartuma robusta barca de três mastros, de origem francesa e que afundou desgraçadamente nos baixios da Fajã Grande, carreando para a morte sete homens, para além de ocultar o cadáver de um outro que havia perecido a bordo, vítima de escorbuto. 

Tal como outros prosadores, de origem açórica ou não, e dos quais talvez emerja a rudeza das descrições com que Raul Brandão pintou o Corvo e as vivências corvinas, em As Ilhas Desconhecidas (Artes e Letras, 2.ª ed., 2018), também na obra em análise, Carlos Fagundes dá a conhecer, sem grandes derivas ao eufemismo ou mesmo à dissimulação, a ilha das Flores, servindo-nos, com apurado realismo, uma povoação paupérrima, campesina e em tudo rural, onde o milho e o gado assumem especial relevo na vida de gente pobre, mas trabalhadora e muito honrada. Evidencia, declaradamente, o esquecimento dos Açores pelo(des)governo do Estado Novo, salientando, ao mesmo tempo, as nefastas consequências que daí advieram, não apenas para os florentinos, mas para os açorianos em geral: não havia médicos nem vias de comunicação que atravessassem a ilha, o subdesenvolvimento era absoluto e marcado pela pobreza, pela fome, pela deficiente ou mesmo pela ausência de instrução escolar e pela falta de rendimentos, o que redundava, em muitas das vezes, na emigração, fosse a clandestina ou então aquela operada dentro dos trâmites legais. Tristemente, era pelo bojo que os açorianos se viam enxotados da sua própria terra, e, para os pobres que ousassem permanecer, ficava-lhes assegurado trabalho «(…) desmesurado, duro, cansativo, escravista, esgotante, a impregnar-lhe o corpo de cansaço e de sofrimento. Mas trabalho digno, honrado, humilde, verdadeiro e empenhado, a aurorar-lhe o espírito de dignidade e alegria». Por contraponto com a realidade presente, e num esforço para apartar quaisquer ilações políticas que possam chegar acopladas, celebremos, pois, o longo percurso percorrido, em pouco mais de metade de um século, não descurando, todavia, o tanto que ainda se encontra por concretizar. Estas narrativas poderão ser vistas como uma forma de resguardo e imortalização de ritos useiros e costumeiros da existência e vicissitudes daqueles que povoaram o mais ocidental território nacionalpodendo olhar-se cada uma delas como um frame do filme que por ali se vivenciou ao longo de parte significativa do século XX.

Neste comentário, torna-se impossível olvidar a dimensão religiosa que marca, de forma indelével, a maior parte destas narrativas, o que é bem revelador do papel que Deus e a religião assumem na vida dos florentinos e dos açorianos, em geral. Carlos Fagundes mune-se de uma linguagem aparentemente simples, valendo-se de um vocabulário muito cuidado, algumas vezes até vetusto, mas nunca arcaico, característica especialmente notória naqueles textos que, de alguma forma, se relacionam com a religiosidade e com os preceitos do culto. Tenhamos presente não apenas a sua formação académica, no seio da milenar exigência religiosa, ministrada no Seminário de Angra, como também a antiguidade de alguns dos ritos litúrgicos ou outros de ordem telúrica que vai desfiando ao longo das diegeses. Por outro lado, referências a diferentes toponímias (por muitos desconhecidas), assim como o recurso a regionalismos e metáforas de compreensão menos instantânea, tendem a demorar a leitura, mas não deixam de enriquecer sobremaneira o textotornando-o mais verossímil e, sobretudo, conferindo-lhe uma notável literariedade.

 

Carlos Fagundes, Entre o Mar e a Rocha. Estórias, Companhia das Ilhas, 2021