quinta-feira, 25 de março de 2021

MORANGOS DO OESTE

 



Ontem, cumpridas todas as responsabilidades profissionais, cada vez mais distanciadas e desinteressantes, e as outras de índole pueril e de alegre proximidade – que incluem a substituição da fralda (felizmente, sem grandes malefícios olfativos), a renovação da vestimenta e o lanche adequado a um bojo cada vez mais requintado e ditador – , esperámos pela hora certa e, assim que a Susana “arriou do serviço” (usando a vetusta expressão da minha avó materna), rumámos a oeste, até à freguesia da Candelária. Decidimos visitar, enfim, a quinta do senhor Cláudio e arrigar-lhe à terra uns quantos morangos para sobremesa. Já muito me tinham dito acerca da simpatia do senhor Cláudio, da sua inusitada forma de receber bem as pessoas que lhe assomam à porta, mas nunca tivera a oportunidade de lhe estender a mão num cumprimento afetuoso. Por via do vírus que a todos amedronta, também não lha estendi ontem, mas o nosso olhar disse tudo. Ficou genuinamente feliz por nos receber e nós genuinamente felizes por ali estarmos. Feitas as apresentações, quis falar com o Filipinho e dedicou-lhe mais tempo do que seria expectável. Conversou e brincou com ele e, claro, ganhou-lhe a confiança. Em boa verdade, a nossa também. Abriu-nos as portas da sua exploração morangueira, explicou-nos o negócio, falou-nos de um revés que tivera devido a uma intempérie, mas do qual não valia a pena falar muito, porque já passara, mostrou-nos os morangos mais doces e, depois de nos esclarecer sobre como se colhem sem danificar a planta, foi-se embora, lançando-nos um inesperado «fiquem à vontade, comam os que quiserem e, se precisarem, eu estou por aí». 

Quando este inverno pandémico tiver abalado, sucumbido à bruxaria mais bondosa que a ciência há de conseguir parir, havemos de nos deter, encarar o passado e, de lá, resgatar tudo o que de bom tivermos conseguido criar, vencendo dessa forma e em absoluto este combate que dura há já tempo demasiado. Torna-se imperioso, por isso, construir hoje as lembranças futuras e, sobretudo, continuar com a nossa preciosa responsabilidade de proporcionar aos nossos filhos essa construção. O Filipinho adorou. Comeu uns quantos morangos e escolheu outros tantos para trazer para casa, por isso, estou certo de que uma das suas memórias boas será o dia de ontem, o dia em que fomos à quinta do senhor Cláudio, onde colhemos da sua amizade e genuína simpatia.

Visitem a quinta do senhor Cláudio. Fica aqui: https://www.facebook.com/Quinta-Por-do-Sol-Produ%C3%A7%C3%A3o-de-Morangos-979849788764912/?ref=py_c

segunda-feira, 22 de março de 2021

HERÓIS AO DOMINGO

 


O Filipinho dorme. Retempera energias do frenesim matinal. Oiço-lhe a respiração através do comunicador instalado no seu quarto e aquieto-me. Deixo cair, então, o olhar sobre o relvado recém cortado e percebo uma bola esquecida entre o baloiço, cada vez mais pequeno, e um jovem carvalho-alvarinho que tarda a florescer. Aquele golo marcado de pé direito assinalou o fim da brincadeira e, ao chamamento da Susana, preparamo-nos para o almoço.

Ao regressar, pela primeira vez e sem que nada o fizesse prever, disse-me que eu era o seu herói.... O seu herói, eu? Enchi-me de orgulho e senti uma incontrolável vaidade. Sem saber bem como lhe responder, abracei-o e lancei-lhe uma generosa porção de beijos. Claro que nos atrasamos para o almoço, mas é domingo e o Filipe disse-me que eu era o seu herói e aos heróis tudo se perdoa!

A minha Primavera não começa hoje; dura há quase três anos!

quinta-feira, 18 de março de 2021

Manual dos Dias Cavos


Os poetas - bem sabemos - são almas generosas, mas há uns que teimam em ser mais poetas do que outros! O professor Emanuel Jorge Botelho é um destes, ele que passou a "dar a cada palavra a [sua] palavra de honra".


FOLHA DE CÁLCULO


resta-me uma aspa

para fechar o dia de hoje,

e um naco de amargura

capaz de dobrar a noite


já não sei chamar pelo nome

as palavras com que me digo,

aquelas a que a mão, rasa de tempo,

ia dando casa na memória


os dias são agora coisa que me custa,

demoras de gosto ácido

hasteadas no logro da alegria


é tão bom olhar-te de mansinho, meu amor,

e esperar que o silêncio

traga o pó que nos protege. 


«Manual dos Dias Cavos», Emanuel Jorge Botelho, Averno, 2021