domingo, 30 de maio de 2021

A Madrugada em Birkenau

 


 

 

«Não posso aceitar ser tocada. Evito ir ao cinema quando há uma fila de espera.  Quando se foi tratada como carne, é muito difícil convencer-se que se permaneceu um ser humano.»

 

in A Madrugada em Birkenau

 

                Sem quaisquer receios de cair na pobreza do lugar-comum, é justo afirmar-se que esta obra, agora publicada pela Quetzal, vem enriquecer o conjunto de documentos que importa conhecer sobre os anos da guerra e as consequências que daí advieram. A par das brilhantes narrações de Primo Levi, de Herta Müller, Laurence Rees ou de João Pinto Coelho, por exemplo, é-nos agora dada a conhecer a obra A Madrugada em Birkenau, redigida com base no relato de Simone Veil (francesa, judia, presa e deportada), assim como nos testemunhos de amigos seus que, como ela, sobreviveram às atrocidades perpetradas pelo movimento nazi.

Todos reconhecemos e nos indignamos com as constantes polémicas e, sobretudo, com os deploráveis oportunismos literários e outros em torno das questões que envolvem a II Guerra Mundial, o Holocausto ou Shoa ou a banalização do uso, por meros desígnios economicistas, da palavra Auschwitz. Eis-nos, por isso, desembocados num tempo em que se torna imperioso amplificar a voz daqueles que não procuram outra coisa além de perpetuar a memória – clara e precisa – do que foi o período mais negro da nossa História recente, sem conceder espaço a cambiantes que derivem em deformações históricas ou suavizações convenientes. Por respeito à memória dos mais de seis milhões de pessoas que pereceram, não devemos permitir brechas por onde se adentrem equívocos ou medrem ambiguidades e imprecisões. Este é um tema onde a parcialidade não poderá florescer. Como nos alerta a autora de grande porção dos testemunhos aqui reunidos, «(…) não temos o direito de reescrever a História.»

Trata-se de um volume em notória contracorrente, já que dá a conhecer, em primeira pessoa e escusando-se a discursos eufemísticos ou encardidos por sentimentalismos pacóvios, as atrocidades que marcaram a realidade dos judeus franceses, não apenas ao longo do período de Ocupação, mas também nos difíceis anos que se lhe seguiram. Aliás, a pujança e autenticidade destes relatos vão um pouco mais além, ao ponto de, em consciência, repor a verdade de factos brotados do imaginário de alguns e consagrados em obras tidas como best-sellers mundiais: «É preciso que se diga que encontrar qualquer pedaço de jornal era algo excecional. Fico espantada quando ouço alguns falarem de bibliotecas e de livros que liam nos campos.»

A obra abre com a narração impressionante da magistrada Simone Veil, a «personalidade preferida dos franceses», em 2010, abordando os anos da sua infância em Nice, junto da família, mas prossegue, depois, até às perseguições raciais que marcaram a atuação do Nacional Socialismo um pouco por toda a Europa. Descreve, por vezes de forma arrepiante, mas crível, a sua detenção, o desmembramento do seu núcleo familiar e a posterior deportação em condições absolutamente animalescas, assim como a vivência horrífica em diversos campos de concentração. Prossegue com a narração do regresso e o problemático retomar de vidas que haviam ficado em suspenso, para culminar, com alguns testemunhos clarividentes, mas igualmente chocantes de outros sobreviventes próximos de Veil, manifestados em jeito de diálogo com a antiga Presidente do Parlamento Europeu, e com David Teboul, redator desses testemunhos.

«Deste legado, não me é possível dissociar a lembrança sempre presente, obsessiva, mesmo, dos seis milhões de judeus exterminados pela única razão de serem judeus.» Simone Veil, falecida em 2017, com noventa anos de idade, deixa-nos aqui um verdadeiro alerta: é importante que estejamos cientes dos riscos que todos corremos ao permitirmos o recrudescimento de movimentos políticos similares aos que estiveram na origem destas barbáries. Parece-me, por isso, muito avisado manter estes testemunhos à superfície da lembrança, alertando os mais jovens e, sobretudo, os mais incautos ou desiludidos que nada devem tomar como garantido. Não esqueçamos que, hoje, em Auschwitz, o relvado é cuidado, há árvores e «até o arame farpado parece sereno», mas, não há assim tanto tempo, «O campo era o cheiro dos corpos que ardiam.»

 

 

Simone Veil, A Madrugada em Birkenau, Quetzal Editores, maio de 2021

 

Telmo R. Nunes