«Não posso
aceitar ser tocada. Evito ir ao cinema quando há uma fila de espera. Quando se foi tratada como carne, é muito
difícil convencer-se que se permaneceu um ser humano.»
in A
Madrugada em Birkenau
Sem quaisquer
receios de cair na pobreza do lugar-comum, é justo afirmar-se que esta obra,
agora publicada pela Quetzal, vem enriquecer o conjunto de documentos que
importa conhecer sobre os anos da guerra e as consequências que daí advieram. A
par das brilhantes narrações de Primo Levi, de Herta Müller, Laurence Rees ou
de João Pinto Coelho, por exemplo, é-nos agora dada a conhecer a obra A
Madrugada em Birkenau, redigida com base no relato de Simone Veil
(francesa, judia, presa e deportada), assim como nos testemunhos de amigos seus
que, como ela, sobreviveram às atrocidades perpetradas pelo movimento nazi.
Todos reconhecemos e nos indignamos com as constantes
polémicas e, sobretudo, com os deploráveis oportunismos literários e outros em
torno das questões que envolvem a II Guerra Mundial, o Holocausto ou Shoa
ou a banalização do uso, por meros desígnios economicistas, da palavra Auschwitz.
Eis-nos, por isso, desembocados num tempo em que se torna imperioso amplificar
a voz daqueles que não procuram outra coisa além de perpetuar a memória – clara
e precisa – do que foi o período mais negro da nossa História recente, sem conceder
espaço a cambiantes que derivem em deformações históricas ou suavizações convenientes.
Por respeito à memória dos mais de seis milhões de pessoas que pereceram, não devemos
permitir brechas por onde se adentrem equívocos ou medrem ambiguidades e
imprecisões. Este é um tema onde a parcialidade não poderá florescer. Como nos
alerta a autora de grande porção dos testemunhos aqui reunidos, «(…) não temos
o direito de reescrever a História.»
Trata-se de um volume em notória contracorrente, já
que dá a conhecer, em primeira pessoa e escusando-se a discursos eufemísticos
ou encardidos por sentimentalismos pacóvios, as atrocidades que marcaram a
realidade dos judeus franceses, não apenas ao longo do período de Ocupação, mas
também nos difíceis anos que se lhe seguiram. Aliás, a pujança e autenticidade
destes relatos vão um pouco mais além, ao ponto de, em consciência, repor a
verdade de factos brotados do imaginário de alguns e consagrados em obras tidas
como best-sellers mundiais: «É preciso que se diga que encontrar qualquer
pedaço de jornal era algo excecional. Fico espantada quando ouço alguns falarem
de bibliotecas e de livros que liam nos campos.»
A obra abre com a narração impressionante da
magistrada Simone Veil, a «personalidade preferida dos franceses», em 2010, abordando
os anos da sua infância em Nice, junto da família, mas prossegue, depois, até
às perseguições raciais que marcaram a atuação do Nacional Socialismo um pouco
por toda a Europa. Descreve, por vezes de forma arrepiante, mas crível, a sua
detenção, o desmembramento do seu núcleo familiar e a posterior deportação em
condições absolutamente animalescas, assim como a vivência horrífica em
diversos campos de concentração. Prossegue com a narração do regresso e o
problemático retomar de vidas que haviam ficado em suspenso, para culminar, com
alguns testemunhos clarividentes, mas igualmente chocantes de outros
sobreviventes próximos de Veil, manifestados em jeito de diálogo com a antiga
Presidente do Parlamento Europeu, e com David Teboul, redator desses
testemunhos.
«Deste legado, não me é possível dissociar a lembrança
sempre presente, obsessiva, mesmo, dos seis milhões de judeus exterminados pela
única razão de serem judeus.» Simone Veil, falecida em 2017, com noventa anos
de idade, deixa-nos aqui um verdadeiro alerta: é importante que estejamos
cientes dos riscos que todos corremos ao permitirmos o recrudescimento de
movimentos políticos similares aos que estiveram na origem destas barbáries. Parece-me,
por isso, muito avisado manter estes testemunhos à superfície da lembrança, alertando
os mais jovens e, sobretudo, os mais incautos ou desiludidos que nada devem
tomar como garantido. Não esqueçamos que, hoje, em Auschwitz, o relvado é
cuidado, há árvores e «até o arame farpado parece sereno», mas, não há assim
tanto tempo, «O campo era o cheiro dos corpos que ardiam.»
Simone Veil, A Madrugada em Birkenau,
Quetzal Editores, maio de 2021
Telmo R. Nunes