sábado, 2 de dezembro de 2017

In Açoriano Oriental

O Outro Lado do Mundo - Prémio de Humanidades Daniel de Sá
“Aqui, onde as águas têm o apelo da quietude,
o meu pensamento contraria-as”
in, O Outro Lado do Mundo,
Paula de Sousa Lima

Por imposição laboral, vi-me obrigado a faltar à chamada de apresentação das obras galardoadas com o “Prémio de Humanidades Daniel de Sá”, referente ao ano de 2016. Tive pena! Gostaria de lá ter estado para, condignamente, homenagear os autores premiados: no Ensaio, Pierluigi Bragaglia, e na Criação Literária, Paula de Sousa Lima.
Relativamente ao Ensaio Novas Luzes sobre Povoamento e Topónimos das Flores e Corvo: João da Fonseca e António Carneiro no Reino, em São Tomé e Príncipe, em Cabo Verde e nos Açores (sécs. XV-XVI), de Bragaglia, confesso que não li, muito embora, considerando a exigência imposta neste “Prémio de Humanidades Daniel de Sá”, presuma tratar-se de uma obra de qualidade superior, pelo que a sua leitura não há de atrasar.
Relativamente a O Outro Lado do Mundo, da autoria da professora e escritora Paula de Sousa Lima, encetei a leitura logo que me foi possível - a curiosidade a isso obrigou, e ainda bem que assim foi!
Surge-nos um texto requintado quer na forma, quer pelo conteúdo que nos é oferecido. N´O Outro Lado do Mundo, nem tudo são rosas e contentamentos! Por se tratar de uma narrativa localizada, essencialmente, na ilha de São Miguel, não nos fiquemos pela elementar presunção de que leremos somente sobre agradáveis passeios em tardes soalheiras ao longo das verdejantes cumeeiras que, do alto, entreveem e protegem a lagoa de todos os amores. Como fica expresso no derradeiro texto deste livro, e em jeito de epílogo, há que considerar o «desassossego» da própria autora, o seu afastamento da «quietude» propagada pelo suave andamento do mar que a todos nos confina. Não! Aqui reproduz-se o outro lado desse mundo lisonjeiro, polido e mavioso; nele encontraremos o reverso do luzente buliço citadino, «Um lado onde nada se acerta pelas certezas que foram instituídas pela boa sociedade, aquela que só peca se o pecado puder ficar escondido numa conchinha (…)É-nos arremessada a vida tal como ela é: sem recurso a eufemismos, adornos ou embelezamentos falaciosos. Por aqui deambulam viciados em cocaína com tendências suicidas, uns sem-abrigoque todos conhecem e para os quais nunca há tempo, mendigos acompanhados por cães esqueléticos que também são lazarentos; convivem homens e mulheres que «bebem vinho manhoso pela garrafa ou pelo pacote», e cujos dentes são «escuros da podridão vinda das entranhas carcomidas pelo álcool»; vagueiam ex-reclusos que não arranjam trabalho por terem lavado a honra em águas manchadas pelo adultério; descreve-se friamente a sujidade de «indigentes, tomados pelo vício», ou as rotinas atrozes de uma «puta fina» caída em desgraça e tomada pela idade. Aqui assume-se «A condição humana desencarnada daquilo que a torna aceitável (…)». O ‘ultraje’ é desenhado capítulo após capítulo, afinal, somos colocados diante a «cloaca social da cidade».
A cada trecho, a autora – que domina com mestria a arte de bem escrever – consegue que o leitor sorva cada vez mais este outro lado da vida. Por via do relato veiculado pelo narrador – um mudo que se assume como observador de episódios vários, e os narra com uma subtileza rara – vemo-nos impelidos a, interiormente, mapear as diferentes dimensões da vida que coexistem no mesmo espaço físico. A obra assume-se como um claro convite à análise a esta dicotomia entre o lado benigno e aceitável da vida e esse outro escuso que, por conveniência, procuramos sempre ocultar nos recônditos do esquecimento.
Apesar do distanciamento que a ficção impõe, a autora localiza todos estes episódios na cidade de Ponta Delgada. Neste particular, poderão os leitores locais afigurar-se como favorecidos por lhes ser mais acessível situar in loco a ação narrada, dado o recurso à toponímia atual da maior cidade do arquipélago. Como o fizera o ‘poeta da cidade’, Emanuel Jorge Botelho, na obra 30 Crónicas, também Paula de Sousa Lima manifestou neste O Outro Lado do Mundo um verdadeiro ato de amor pela urbe, «Conheço-lhe o espaço: cada rua, cada travessa, cada passeio, cada esquina, cada recanto, cada jardim, cada contorno de sombra que se enrosca no corpo das casas».
O Outro Lado do Mundo é também e ainda um notável hino ao Humanismo. Aliás, esta será, certamente, a característica mais arreigada a toda a obra. Encontramo-lo bem patente na forma como a autora - pelos olhos do narrador - vê o meio que a envolve, condiciona e, em certa medida, protege. É colocado em evidência o modo como a «boa sociedade» olha para os mais desfavorecidos, cujos trajetos de vida divergiram dos tidos como exemplares. Para aqueles, dar uma esmola não é mais do que «alimentar vícios» de quem «precisa é de trabalho». Em pleno Convento da Esperança, senhoras e senhores distintos insistem em reclamar para si a misericórdia divina, clamando pelos favores do Senhor Santo Cristo dos Milagres, mas, uma vez no exterior, são incapazes de perceber porque «não limpam o Campo» daqueles que a sociedade sacode «como moscas inoportunas». Por oposição, onde a maioria vislumbra apenas a escória social, o narrador (que é da mesma forma um vizinho extremoso, um prudente sobrinho e um verdadeiro amigo do seu amigo) vê «gente», gente que age apenas como gente. «Não é bonito, não é edificante. É humano». Renega-se a altivez e o pretensiosismo e, em contraste, enaltece-se a condição humana do Ser.
Os méritos desta obra recaem, ainda, no que ao aspeto formal concerne e, reservas existissem sobre o virtuosismo da autora finalista do Prémio Leya 2016, pode afirmar-se que estamos perante uma obra que será, no mínimo, uma referência da literatura contemporânea produzida nos Açores. O leitor é constantemente surpreendido: o expectável não acontecerá. Recordo com agrado as situações dialogais, na sua forma pouco convencional, assim como o recurso a mecanismos de narração de difícil manejo, mas que, em larga medida, dotam o texto de um ritmo energético, que tão bem lhe assenta.
A terminar, uma palavra de apreço e alento a todos os promotores e intervenientes neste prémio. Depois da obra Mau Tempo e Má Sorte - Contos Pouco Exemplares, em 2014, da autoria da professora Leonor Sampaio Silva, surge-nos este O Outro Lado do Mundo, como seu digníssimo sucessor, elevando a fasquia da qualidade a níveis que, em larga medida, dignificam o patrono que empresta nome a este Prémio Literário!
A todos, mas especialmente aos galardoados, muitos parabéns!

            Telmo R. Nunes

a 23 de novembro de 2017