sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Passeio de Natal

 

A tarde oferecia-se soalheira e convidava a um passeio, pelo que decidimos – a Susana e eu – descer à Baixa e deambular pelas principais ruas de Ponta Delgada, sem outro rumo além daquele onde nos levasse o acaso. Assim que se apercebeu da iminência da saída, o pequeno Filipinho vibrou: «Vamos à pista de gelo, papá, vamos?! Por favor!» Fomos, claro que fomos, e divertimo-nos imenso, riscando a alvura do piso com movimentos pouco ou mesmo nada graciosos, mas suficientemente atrapalhados para nos fazer explodir em audíveis gargalhadas. Nada que nos envergonhasse ou interferisse com a alegria que sentíamos por ali estarmos os três, num prazeroso momento aproveitado em família. Fruto da novidade natalícia e contando com a escassez de oportunidades, a gente que por ali deambulava era em número considerável, assim como muito era também o tempo de espera para usufruir daquela espécie de rinque, onde cada um se debatia com o seu próprio equilíbrio, tentando manter uma postura corporal aceitável, escapando, dessa forma, à chacota alheia. Todos gargalhavam e todos eram felizes!

À saída, já a hora seguia avançada, mas nem por isso se apresentava menos convidativo o passeio. O Sol, embora arrefecido, tocava-nos a face, acendendo uma sensação de benévolo conforto, à medida que caminhávamos ao redor do Campo de São Francisco. Bem no centro da Praça, alguns rapazinhos apressavam-se e lançavam gritos de alerta, protegidos pela elevação do vetusto coreto, enquanto outros, valendo-se de ardilosas manhas, se preparavam para tomar de assalto aquele que seria o bastião mais cobiçado. Todos riam e todos eram felizes! 

Ao cruzar o quiosque que se presta a forrar o estômago de quem ali se queira demorar, decidimos parar e beber um café. «Eu quero um suminho de pêssego, mamã», adiantou-se o pequeno Filipe. Sentámo-nos e, de olhar cauteloso, pousado nas andanças do meu filho, não pude evitar o relance sobre a expressividade patente no «Monumento ao Marinheiro Português», da autoria do escultor Diogo Macedo, assim como um demorado olhar sobre a beleza do jardim que adorna a frente do Forte de São Brás, no limite sul do Campo de São Francisco, ou Praça 5 de Outubro, como também é designado. Assaltou-me a memória um admirável texto de Tomaz Borba Vieira, onde descreve, com singular brilhantismo, a vida que por ali pulsava, aquando da existência de «[…] um belo espelho de água ambicionado por toda a rapaziada que desejava experimentar como navegavam os pequenos barcos que cada qual possuía.» Já na altura, todos brincavam e todos eram felizes!

Com a descida da temperatura, propusemo-nos continuar e subimos o Campo pelo lado poente, satisfazendo a curiosidade e apreciando as obras, que decorrem a bom ritmo, naquele que é um dos mais bonitos imóveis da cidade. Oxalá venham dignificar mais ainda a beleza deste recanto de Ponta Delgada! Chegados ao Convento da Esperança e lançada humilde reverência, fui acometido pela imagem de todos aqueles fiéis que, em nome de uma Fé muito sua, percorrem toda aquela praça de joelhos em sangue e rezas na boca, e, embora não me caiba no discernimento tamanha autoflagelação, nutro muito respeito por estes crentes, muito mesmo, e desejo ardentemente que cada um encontre nesse pagamento de promessa a quietude de espírito que tanto almeja. Que também eles sejam felizes!

Continuámos, até o Filipinho nos deter junto de um dos vendedores de árvores que por ali tentam o negócio, durante a época natalícia. «Eh, senhô, isto ‘tá cada vez pió! A gente ´tá que nã vende nada de nada e as despesas são sempre a subi.» Confesso que me senti condoído com aquele desabafo, e mais ainda com a expressão triste que parecia querer saltar do rosto daquele velho senhor. «Nós já fizemos a nossa árvore! Está muito bonita, mas não é verdadeira. É daquelas de plástico.», lança o petiz bem alto, desmascarando-nos impiedosamente. Confesso que me senti um pouco embaraçado pela genuína inocência de um menino de quatro anos e, numa tentativa de minimizar os efeitos, acabámos por mercar umas sementes de trigo e de ervilhaca, de que, na verdade, não precisávamos. Alancámos, deixando feliz um velho vendedor de árvores!

À medida que o Sol se extinguia, entrámos no carro e continuámos assim o passeio pelas artérias que se adentram pela urbe. Para felicidade do pequeno menino acomodado no banco traseiro, já a iluminação natalícia estava ligada e as ruas se mostravam todas engalanadas, assim como vaidosas se exibiam as árvores, todas coloridas e brilhantes para celebrar a preceito a chegada do Salvador. Adormecia cansado o Filipe, feliz com a tarde que vivera!

Em boa verdade, também nós seguimos felizes até casa, satisfeitos com o passeio em família e inebriados por todo aquele brilho artificial que alivia a fealdade, com que habitualmente se matiza o centro histórico da nossa cidade. Enquanto por ali estivemos, enlevados por todo aquele quadro natalício, tendemos a esquecer aqueles que, por ali mesmo e durante todo o ano, deambulam ébrios ou aos tombos, sujos por dentro e sujos por fora, com uma mão estendida e outra empunhando um qualquer pacote de vinho barato, e sempre com algum impropério engatilhado, pronto a disparar; tendemos a esquecer aqueles que, por ali mesmo, vagueiam em busca da maquia certa para que também eles possam ser felizes, ainda  que essa seja uma felicidade intrujona e trapaceira! 

A todos, mas mesmo a todos, um feliz Natal!

Publicado no Diário dos Açores, a 23 de dezembro, 2022

📷 Presépio Centro Comercial SolMar

segunda-feira, 12 de dezembro de 2022

Volta Aos Açores Em Quinze Dias

 



Foi um gosto poder participar na apresentação do livro Volta Aos Açores Em Quinze Dias, da autoria de José Pedro Castanheira, ao lado dos Professores Onésimo Teotónio Almeida e Vamberto Freitas.

VOLTA AOS AÇORES EM QUINZE DIAS

“A apresentação de um livro carrega sempre uma forte carga emocional e é um momento de grande responsabilidade. Entrar no mundo de quem produz a obra e procurar entender os motivos que levaram à sua saída para o prelo nunca é tarefa fácil.”

Assim, como mote ao que se segue, mas também como forma de contextualização, nada melhor do que começar esta apresentação com as palavras de quem acompanhou este projeto praticamente desde o início, e dele conhece praticamente todos os detalhes:

  «Fui um dos recebedores das prestações deste diário de bordo, crónica de viagem há muito anunciada mas vítima de adiamentos sucessivos. Com o decorrer dos dias, o entusiasmo da minha leitura subiu em ritmo crescente à medida que as intempéries complicavam a aventura de cinco arrojados marinheiros – contando com o cronista-de-serviço que, sem nunca soçobrar ao peso dos elementos, nos ia reportando as alterações de planos sempre a complicar-se. É que, nos Açores, os elementos são quem mais ordena.» (Prefácio, p. 13).

José Pedro Castanheira será por muitos reconhecido como um jornalista português que integrou o quadro de diversos jornais, entre os quais o Expresso, onde, durante quase trinta anos, se dedicou à grande reportagem e ao jornalismo de investigação. Desempenhou, ao longo da sua carreira, cargos no Sindicato dos Jornalistas e, a solo ou em coautoria, é responsável por mais de uma dúzia de livros, dos quais emerge o título, Jorge Sampaio – Uma Biografia (Porto Editora, 2 vol. 2012 - 2017). O que talvez não seja do conhecimento do grande público é que o autor é um apaixonado pelos Açores e, embora nascido no Continente português, bem apartado do arquipélago, apresenta-nos aqui uma bonita declaração de amor à Região e às suas gentes. Ao saborearmos esta obra, ao notarmos a sensibilidade com que o autor reveste cada entrada deste diário, percebemos, por inteiro, o sentimento ilhéu que lhe molda as ilhargas do coração. Se José Pedro Castanheira já ganhara, há muito, o seu espaço físico na ilha, sobretudo na do Pico, legitima agora, e de forma brilhante, o seu lugar no coração de todos os leitores açorianos.

Volta Aos Açores Em Quinze Dias, Diário De Bordo De Uma Viagem Para (Não) Esquecer, ou simplesmente VA15D, como o próprio decidiu designá-lo, foi a sua primeira incursão literária fora do âmbito do jornalismo, sendo que a mesma enquadrar-se-á naquilo a que, por definição, designamos por Literatura de Viagem. E que viagem, esta, navegando pelos inesperados humores do mar açoriano, onde as suas birras imprevisíveis, mas constantes, mantêm em alerta todos sentidos dos marinheiros que por estas bandas se aventuram.

Assumindo-se como um Diário de Bordo, este conjunto de textos nasceu no âmbito da concretização de um sonho acalentado durante quarenta anos, por este apaixonado pelo arquipélago açoriano, ele queria «Dar uma volta pelas ilhas dos Açores num barco à vela, com um grupo de amigos, e explorar as suas extraordinárias belezas […]». Como qualquer diário de viagem, teve como primeiro desígnio a eternização de todas as peripécias ocorridas quer a bordo do Avanti – o veleiro alugado na marina da Horta, e que se viria a revelar a embarcação certa para esta “empreitada” –, quer em terra, onde a jornada ganhou inesperados motivos de interesse, dignos de figurar nestes registos diários, inicialmente pensados para partilha com a família e amigos mais ou menos próximos. Não resista, todavia, a ideia de fragmentação; os textos, conexos, consubstanciam-se numa obra sólida e, sobretudo, muito harmoniosa. O que se levou a publicação não se resume à simples transcrição das entradas diárias. Houve o cuidado posterior da revisão textual, burilando-se cada uma das entradas agora partilhadas com o público leitor.

Conquanto este represente um assunto esgotado para muitos, tem-se revelado uma paixão perpétua para outros, havendo a reconhecer que os Açores, embora avexados pela posição ocupada em diversos indicadores de desenvolvimento económico e social, ocupam ainda uma posição cimeira, no que à produção literária concerne, ainda que esta possa chegar de quadrantes longínquos. Dentre estas novas vozes, muitas são as que têm sabido respeitar o legado dos mais experientes, e que tão bem têm trilhado o seu caminho, avolumando o corpo literário açoriano ou, pelo menos, o corpo literário que se debruça sobre os Açores. Neste torna-se agora imperioso contar com esta obra de José Pedro Castanheira que, mesmo à distância de um detalhe de naturalidade, (como outrora Raul Brandão), se assume, com todo o mérito, como um dos expoentes que mais enobrece a cada vez mais robusta literatura de viagens que tem os Açores como palco.

José Pedro Castanheira é um açoriano de coração – por ter nascido nas bandas de lá –, que, não sendo condição inferior, não representa também motivo suficiente que o aparte dessa condição de ser português ilhéu dos Açores. Tenhamos, pois, confiança e olhemos o futuro literário do arquipélago com reforçado otimismo, até porque, como escreveu recentemente um açoriano dos maiores, «O mau tempo nos Açores sempre ajudou os inclinados às letras a despejarem os sonhos e os fígados no papel (agora no ecrã).»

Na obra, e para além de uma nota introdutória, em jeito de contextualização, e de um prefácio assinado por Onésimo Teotónio Almeida, encontramos um total de dezoito entradas sequenciais, que se configuram como outros tantos capítulos, cada um coroado com uma espécie de sumário, o que se revela bem agradável, tal a curiosidade que suscita. Já no final da obra, o leitor é surpreendido com um texto adicional que, nas palavras do autor, surge «À laia de posfácio», e que, de alguma forma, restitui justiça ao desfecho de toda esta jornada, que tão mal poderia ter terminado! Permito-me sublinhar uma passagem do prefácio onde é feita referência muito pertinente à Lei de Murphy, onde se recorda que, também nesta viagem, «Se alguma coisa pode correr mal, vai correr.»

Ao longo das páginas, vão surgindo diversas imagens – sejam fotografias captadas pelos tripulantes do Avanti, sejam ilustrações, da autoria de David Casta –, que conferem um apoio muito interessante à leitura, ora transportando o leitor para os locais referenciados, ora prestando algum “amparo geográfico”, especialmente na representação inicial das diversas etapas que constituíram esta audaz jornada.


Esta foi uma viagem planeada minuciosamente. Como antes se referiu, representa um sonho com quarenta anos, e, depois, vítima de sucessivos adiamentos (considerando a época pandémica), houve tempo suficiente para detalhar cada passo a dar, cada milha a navegar; houve estudo e análise das rotas e da meteorologia, e, acauteladas todas as possíveis vicissitudes, respirava-se uma certa dose de confiança, sendo que os ânimos se mostravam de feição. Originalmente, contemplava paragem em sete das nove ilhas do arquipélago, excluindo-se as do grupo ocidental, dada a escassez de tempo: quinze dias seriam insuficientes. (Remete-nos esta incompletude para uma outra obra de idêntico propósito, escrita por Guilherme de Morais, Ilhas do Infante (Artes e Letras, 2019), onde também se lamenta a ausência do escrito sobre a passagem pela ilha Terceira, para dessa forma poder amplamente «[…] decorar o poema de beleza que existe em cada uma, para escutar a alma que palpita em todas […].»).

Embora com inúmeras passagens pela Região Autónoma dos Açores e, certamente, com um profundo conhecimento acerca do mar e da meteorologia que por cá se faz sentir, não contavam estes aventureiros com a maré de azares, más sortes e desventuras que Éolo e demais deuses lhes tinham reservado. À semelhança do que aconteceu a Ulisses no seu atribulado regresso a Ítaca, também nesta viagem, a Zéfiro se impuseram outros ventos bem mais tormentosos e desagradáveis, condições inesperadas que nem os mais potentes instrumentos de navegação conseguem prever. Como qualquer açoriano dirá, nas ilhas ocorrem as quatro estações num só dia, e, previsões, acredite nelas quem quiser!

Este é um livro sobre os Açores, sobre o mar dos Açores e, por isso, e apesar das contrariedades narradas, conserva uma frescura muito agradável, conferida, sobretudo, pelo recurso a uma linguagem acessível, arejada, mas sempre muito cuidada. Arrisquemos, pois, o embarque no Avanti, e acompanhemos em segurança este afoito grupo de gente simpática e aventureira, numa expedição bem real por este naco de mar plantado na imensidão do Atlântico.

A todos muito obrigado!

José Pedro Castanheira, Volta Aos Açores Em Quinze Dias, Tinta da China, setembro de 2022

domingo, 20 de novembro de 2022

Lucky Luke - A Arca de Rantanplan

 


Um novo álbum de Lucky Luke transporta-nos até uma temática tão atual como controversa, e leva-nos até um faroeste substancialmente diferente daquele a que nos habituámos a ver e a admirar. Em A Arca de Rantanplan é-nos servida uma cidade onde já não há caçadores de bisontes nem se tolera a venda de peles; não se explora a força animal e já não se veem bichos agrilhoados ou reclusos pelas quintas das redondezas. Graças a Ovide Byrde (personagem inspirada em Henry Bergh, o fundador do movimento de proteção animal nos EUA), vive-se, por ali, um clima de profundo respeito pelos animais, onde já nem aos cowboys é permitido comer um bom bife de vaca, sob pena de terminarem os seus dias pendurados no patíbulo da cidade.

Esta é Veggie Town, o chão da mais recente aventura de Lucky Luke!

 

Achdé e Jul (segundo Morris), Lucky Luke – A Arca de Rantanplan, ASA, outubro, 2022


domingo, 13 de novembro de 2022

O Quarto do Pai

 

Maria Brandão publicou recentemente O Quarto do Pai, uma obra muito original que sustenta o seu expediente ficcional nas inter-relações de um núcleo familiar, durante um período de doença de um dos seus elementos – o pai.

Sucedendo a Corpo Triplicado (2018) e a Enlouquecer é Morrer Numa Ilha (2020), ambos editados pela Companhia das Ilhas, O Quarto do Pai é o terceiro livro da autora, sendo, claramente, aquele onde melhor desenvolve a sua narrativa, seja pelo brilhantismo com que manuseia a linha temporal, entremeando pretérito e presente narrativo com uma inusitada subtileza (aliás, com uma finura que merece todos os aplausos), seja pelo aprimorado realismo a que recorre e que coloca ao serviço em toda a narrativa. Não há amarras a inibir a diegese, sendo a progressão contínua e muito consistente, gerando um relato coeso e sobretudo bastante aprazível.

Este poderia ser um livro sobre a desumanização do Homem, sobre a indiferença e o asco com que, cada vez mais, se olha a velhice e a enfermidade, afinal, basta um olhar sério sobre a sociedade atual para percebermos que «Mais depressa se acode a um cão do que a um velho, mesmo que seja família.» Recordemos, por exemplo, o romance Os Velhos (Letras Lavadas edições, 2022), de Paula de Sousa Lima, onde a autora expõe abertamente a forma como alguns idosos são maltratados e critica atitude e comportamentos displicentes face aos mais velhos. Por oposição, Maria Brandão, em O Quarto do Pai, demonstra que há ainda uma réstia de esperança, que há ainda quem reja os seus comportamentos pelos preceitos mais humanos e que a dimensão familiar mantém hoje algum do seu valor de sempreTalvez seja mais fácil acudir quando “[…] se tem dinheiro para gastar e civilidade de berço para esbanjar”, mas não rareiam os casos em que os idosos e enfermos são atirados e abandonados em hospitais ou outros, independentemente dos números que possam assear a sua conta bancária.

Tal como em outras obras, também em O Quarto do Pai, Maria Brandão mantém uma relação especial com a ilha, o seu espaço natural, embora desta vez a nomeie e explicitamente localize a ação principal em São Miguel, numa casa de campo, inserida num ambiente rural, mas bem perto do mar. Não obstante, poder-se-ia deslocalizar a trama para qualquer parte do país ou do mundo, sem que a narrativa sofresse com tal mutaçãoEmbora o discurso surja matizado por uma sensação telúrica, é evidente que Maria Brandão se serve da ilha, mas não se atem a elamesclando-a num mundo mais amplo e complexoAs fronteiras marítimas são apenas exercícios psicológicos, e autora parece materializar a mónita lançada por Daniel de Sá aos escritores açorianos, onde apelava a que não cedessem aos lugares-comuns, quando se tratava de “cantar a terra”.

Aqui assiste-se ao relato de um homem octogenário em crescente decadência física, vítima de severosproblemas de saúde, que o limitam a tal ponto de o remeter para uma cama, deixando-o numa posição dedependência total do outro. Chega escrito em primeira pessoa gramatical, e essa feliz opção influi sobejamente no sentimento de empatia que o leitor vai desenvolvendo pela personagem, à medida que avança na leitura. As constantes viragens entre um passado sadio, de causas, robusto e vivido intensamente com os amigos e famíliacom a matilha, de arma ao ombro e em busca de caça ou ao volante de potentes automóveis, contrastam pesarosamente com um presente doentio, recluso e triste, onde apenas as memórias vão atenuando a morosidade das horas. Todavia, é neste contexto que toda a riqueza humana se manifesta, ao percebermos como toda a família se mobiliza e readapta, no sentido de minimizar o sofrimento do patriarca, um homem que, mesmo débil, se mostra capaz de agir em prol do bem comum e familiar: aceita com elevada dignidade as prescrições médicas, mesmo aquelas mais dolorosas, mantém o característico sentido de humor, reconhece o esforço que todos fazem para que se sinta bem, particularmente os três filhos e a esposa, e mesmo em condições muito adversas como é a sua, sabe como agir conservando o bem-estar e a união familiares.

Ler O Quarto do Pai é estar próximo da morte, é confrontar-se continuadamente com as acritudes da vida e com a dureza da sua finitude. Num simples exercício mental, tenhamos presente que o personagem que ali definha facilmente poderia assumir o papel de um qualquer pai, de um tio, ou até de um avô, pelo que esta leitura terá de impelir o leitor a que faça o seu próprio exame de capacidades e consciência. 

Este é um livro muito bonito, com uma imagem de capa impactante (Burialde Jennifer B. Thoreson), mas é sobretudo um livro marcante, um dos melhores lidos no ano corrente, pelo que a sua leitura se torna indispensável a todos quantos apreciem um bom exemplo de literatura de qualidade.

Maria Brandão, O Quarto do Pai, Companhia das Ilhas, 2022

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Ainda Não É Bem Isto

 


Numa recente entrevista (Correio dos Açores, 16.10.22), elencava Eduíno de Jesus, notável poeta e professor, alguns traços que sustentarão a ideia da existência de uma literatura açoriana, incluída na portuguesa, mas, necessariamente, diferente desta. Referia ser necessário encontrar algo que a distinguisse e lhe desse matéria própria, diferenciando-a de todas as outras. Animava o pensamento, com a questão da “historiabilidade” de “um conjunto de obras de um determinado local”, o que significará que, para nos referirmos a uma literatura açoriana, tornar-se-ia imperioso alicerçar o pensamento num corpo de obras literárias originais, que houvesse prevalecido ao longo do tempo e que se encontrasse munido de determinadas características.

Confesso que apreciei esta ideia da “historiabilidade”, como condição à existência de uma literatura açoriana, mormente porque nos implica na sua própria definição, levando-nos a cumprir a nossa parte e, dessa forma, prevenindo a abertura de brechas na história que está por vir, e por onde pudessem medrar possíveis hiatos, que redundassem em confusões desnecessárias.

Conquanto este represente um assunto esgotado para muitos, tem-se revelado uma paixão perpétua para outros, havendo a reconhecer que os Açores, embora avexados pela posição ocupada em diversos indicadores de desenvolvimento económico e social, ocupam uma posição cimeira, no que à produção literária concerne. Destes, muitos representarão as novas vozes que têm sabido respeitar o legado dos mais experientes, e que tão bem têm trilhado o seu caminho, avolumando o corpo literário açórico e perpetuando as tais características consideradas por Eduíno de Jesus como indispensáveis à eternização da literatura açoriana. Tenhamos, pois, confiança e olhemos o futuro literário do arquipélago com reforçado otimismo, até porque, como escreveu recentemente um açoriano dos maiores, “O mau tempo nos Açores sempre ajudou os inclinados às letras a despejarem os sonhos e os fígados no papel (agora no ecrã)”.

Uma dessas vozes pertence ao escritor terceirense Diogo Ourique. Reconhecido por muitos pela sua colaboração na revista literária Grotta, é também o autor do romance Tirem-me Deste Livro, publicado pela Letras Lavadas edições, em 2019. Com efeito, Diogo Ourique tem revelado grande versatilidade, abalançando-se, ao longo dos últimos anos, por diferentes géneros literários. A par do romance, das crónicas, do conto, do texto humorístico ou da epistolografia, o escritor surpreende-nos agora com a sua primeira incursão pelo mundo da literatura infantojuvenil, e apresenta-nos este Ainda Não É Bem Isto, um texto muito interessante, pedagogicamente rico, ajaezado com recurso à rima e narrando a história de um petiz que procura, pela experimentação, decidir que instrumento escolher para integrar as fileiras da filarmónica do seu coração: a Sociedade Filarmónica Espírito Santo da Agualva, curiosamente, a mesma que integra o autor, e que lhe lançou o desafio de escrever este texto, por forma a comemorar o centésimo aniversário da instituição. Com desenhos de Abel Mendonça e pintura da responsabilidade das crianças que integram o CATL da Agualva, este livro integrará com todo o mérito o “conjunto de obras de um determinado local”, não apenas pelo seu carácter pedagógico, mas também, e sobretudo, por se encontrar munido das tais características distintivas e que convêm valorizar. O resto, encarregar-se-á a história de confirmar!

Diogo Ourique, Ainda Não É Bem Isto, Sociedade Filarmónica Espírito Santo da Agualva, 2022


terça-feira, 8 de novembro de 2022

Bom apetite!



Partilho um texto de Rui Vieira Nery, que nos faz viajar até um passado não muito distante, mas praticamente perdido. A sua mensagem acentua-se sobremaneira na cabeça e no palato daqueles que, como eu, há mais de 40 anos, tiveram a fortuna de nascer no seio de uma família nortenha, bem perto de uma avó com queda para o tacho e munida de um fogão de ferro, cujo combustível predileto era o serrim desperdiçado pelas fábricas de móveis, ensacado, a cada 3 meses, nas velhas sarapilheiras.

Em nome da saudade, renasça e seja longa a vida do cabritinho assado, fumegante e acompanhado daquelas batatas redondinhas, estaladiças e caseiras, como se gosta; bradem-se valentes hurras ao regresso da honesta posta de bacalhau, regada com a dose certa de azeite, e que “aromatizava” toda a casa com o sabor e cheiro intensos a azeitona sã.

Em nome da saudade, longa seja a vida de todas as avós, sejam elas boas cozinheiras (como o era a minha), ou nem tanto, que numa terra como a nossa, há de haver sempre o forno de um bom vizinho onde caiba mais uma travessa.

A todos, bom apetite!

“Antigamente as cozinheiras dos bons restaurantes portugueses eram umas Senhoras rechonchudas e coradas, em geral já de idade respeitável, com nomes bem portugueses ainda a cheirar a aldeia – a D. Adosinda, a D. Felismina, a D. Gertrudes – e por vezes com uma sombra de buço que parecia fazer parte dos atributos da senioridade na profissão. 

Tinham começado por baixo e aprendido o ofício lentamente, espreitando por cima do ombro dos mais velhos. 

E tinham apurado a mão ao longo dos anos, para saberem gerir cada vez com mais mestria a arte do tempero, a ciência dos tempos de cozedura, os mistérios da regulação do lume. 

A escolha dos ingredientes baseava-se numa sabedoria antiga, de experiência feita, que determinava o que “pertencia” a cada prato, o que “ia” com quê, os sabores que “ligavam” ou não entre si. 

Traziam para a mesa verdadeiras obras de arte de culinária portuguesa, com um brio que disfarçavam com a falsa modéstia dos diminutivos – “Ora aqui está o cabritinho”, “Vamos lá ver se gosta do bacalhauzinho”, “Olhe que o agriãozinho é do meu quintal”. 

Ficavam depois a olhar discretamente para nós, para nos verem na cara os sinais do prazer de cada petisco, mesmo quando à partida já tinham a certeza do triunfo, porque cada novo cliente satisfeito era como uma medalha de honra adicional. 

E a melhor recompensa das boas Senhoras era o apetite com que nos viam: “Mais um filetezinho?” “Mais uma batatinha assada?”.

Hoje em dia, ao que parece, nestes tempos de terminologias filtradas, já não há cozinheiros, há “chefes”, e a respectiva média etária ronda a dos demais jovens empresários de sucesso com que os vemos cruzarem-se indistintamente nas páginas da “Caras” e da “Olá”. 

Os nomes próprios seguem um abecedário previsível – Afonso, Bernardo, Caetano, Diogo, Estêvao, Frederico, Gonçalo, … – e os apelidos parecem um anuário do Conselho de Nobreza, com uma profusão ostensiva de arcaísmos ortográficos que funcionam como outros tantos marcadores de distinção – Vasconcellos, Athaydes, Souzas, Telles, Athouguias, Sylvas… 

Quase nunca os vemos, claro, porque os deuses só raramente descem do Olimpo, mas somos recebidos por um exército de divindades menores cuja principal função é darem-nos a entender o enorme privilégio que é podermos aceder a semelhante espaço tão acima do nosso habitat social natural. 

A explicação da lista é, por isso, um longo recitativo barroco, debitado em registo enjoado, em que, mais do que dar-nos uma ideia aproximada das escolhas possíveis, se pretende esmagar-nos com a consciência da nossa pressuposta inadequação à cerimónia em curso.

A regra de ouro é, claro, o inusitado das propostas culinárias em jogo e, preferivelmente, a sua absoluta ininteligibilidade para o cidadão comum. 

Mandam, pois, o bom senso e o próprio instinto de auto-defesa que se delegue na casa a escolha do menu, sabendo-se, no entanto, que não vale a pena sonhar com que pelo meio nos apareça um pobre cabrito assado no forno, um humilde sável com açorda, ou uma honesta posta de bacalhau preparada segundo qualquer das “Cem Maneiras” santificadas das nossas Avós. 

Seja o que Deus quiser! 

E começam então a chegar a “profiterolle de anchova em cama de gomos de tangerina caramelizados, com espuma de champagne”, o “ceviche de vieira com molho quente de chocolate branco e raspa de trufa”, a “ratatouille de pepino e framboesa polvilhada com canela e manjericão”, e por aí fora, em geral com largos minutos de intervalo entre cada prato e o seguinte, para nos dar tempo de meditar sobre a experiência numa espécie de retiro espiritual momentâneo…

E é de experiência que se pode aqui falar no sentido mais fugaz do termo. 

Deliciosa ou intragável, a oferta tende a ser, por princípio, “one time only”, porque quando o empregado anuncia, na sua meia voz enfadada, o “camarão salteado em calda de frutos silvestres e açafrão”, o uso do singular não é metafórico – é mesmo um exemplar único da espécie que se nos apresenta em toda a sua glória, ainda que possa reinar isolado no meio de um prato em que, em tempos, caberia um costeletão de novilho com os respectivos acompanhamentos. 

Se se detestar, há pelo menos a consolação de que não haverá qualquer hipótese de reincidência do crime; se se adorar – o que há que reconhecer que muitas vezes acontece – ficará apenas a memória fugidia do prazer inesperado. 

A função do “chefe” é proporcionar-nos no palato esta sucessão de sensações momentâneas irrepetíveis, todas elas em doses cuidadosamente homeopáticas, um pouco como as configurações sempre novas de um caleidoscópio – ou, se se preferir uma imagem mais forte, como a versão gastronómica de uma poderosa substância alucinogénia, daquelas que faziam as delícias da geração hippie dos anos 60 quando lhe davam a ver, ora elefantes cor-de-rosa, ora hipopótamos azul-celeste. 

Wow!

Que saudades das Donas Adozindas, das Donas Felisminas, das Donas Gertrudes, mais camponesas ainda do que citadinas, com a sua sabedoria, as suas receitas de família, a sua simplicidade, a sua fartura, o seu gosto de servir bem, o seu sentido de tradição e de comunidade!”

Rui Vieira Nery

📷 TripAdvisor - Tia Isabel, Braga

terça-feira, 25 de outubro de 2022

Frente À Cortina De Enganos Norberto Ávila || 1936-2022


 Conheci pessoalmente Norberto Ávila por ocasião de uma longínqua visita sua ao estabelecimento de ensino onde leciono. Até então, reconhecia-o apenas pela sua ligação à RTP, onde desempenhara funções dedicadas à atividade teatral, em Portugal. Estava longe de saber da sua qualidade enquanto dramaturgo, das suas incursões pela poesia, pelo conto, pelo romance, e mais ainda que se tratava de um açoriano, da ilha Terceira. Desde essa altura passámos a trocar correspondência, que se intensificou após a publicação de um conto seu na revista literária «Grotta», e mais ainda após o reencontro pessoal ocorrido no âmbito do «Arquipélago de Escritores», na sua edição de 2019. Dentre uma diversidade de outros assuntos, debatemos ideias sobre literatura e trocámos alguns livros, tecemos uns comentários críticos sobre estes, tendo sido eu, e em larga medida, acrescentaria, o mais beneficiado desse comutar de considerações. A sua generosidade era evidente, característica que, cada vez mais, associo aos nomes maiores da nossa literatura. Com efeito, e tomando como minhas as palavras do físico, “Quanto maior o conhecimento, menor o ego […]”. 

Foi, precisamente, numa dessas trocas de mensagem que me escreveu pela primeira vez sobre o seu romance «Frente À Cortina De Enganos». Iria torná-lo público. Fiquei satisfeito, pese embora o formato encontrado pelo autor para tal publicação não me parecesse, na altura, o mais conveniente: seria a obra divulgada na página de uma rede social, capítulo a capítulo, alcançando fugazmente um ínfimo número de leitores que, por certo, não lhe prestaria a atenção devida, apanágio de grande parte da informação veiculada nestas plataformas. Nunca lhe dei conta dessa minha opinião, pensei que fazê-lo representaria uma ousadia da minha parte e, agora que já não lho posso transmitir, sinto algum constrangimento. Todavia, terão outros tido a coragem que me faltou, porque a obra chegou, pela sua própria mão, à editora Letras Lavadas, em Ponta Delgada e, aquando da morte do autor, estavam a ser preparadas as diligências finais para a sua publicação em livro. Com efeito, a professora Helena Chrystello, através da associação que ajuda a dirigir, prontificou-se a ultimar os detalhes finais da edição do romance, apresentado condignamente ao público, no Centro de Estudos Natália Correia, na Fajã de Baixo, e integrado no programa do 36.º «Colóquio de Lusofonia».

A obra, dedicada a Luiz Fagundes Duarte, “como testemunho de muita admiração e amizade”, teve como ponto de partida a peça teatral «Fortunato e TV Glória», sendo que, durante a leitura, e por diversas vezes, será percetível este cruzamento entre modos literários. Não raras vezes, sentir-se-á o leitor ante a narração de trechos que muito bem poderiam ser entendidos como didascálias, ou até mesmo como os típicos apartes, tão mais usuais em texto dramático.

«Frente À Cortina De Enganos» vem confirmar, (sem que houvesse, contudo, essa imprescindibilidade) a apuradíssima competência de escrita do autor, o seu vasto conhecimento vocabular e a sua incomum capacidade para a produção do diálogo. Fruto dessa sua vocação para a redação de texto dramático, depurou esta característica ao longo dos anos, sendo, talvez a par de Paula Sousa Lima, o autor açoriano contemporâneo que mais convincentemente escreve em discurso direto. Para além da riqueza vocabular e do uso imaculado do discurso antes referido, Norberto Ávila notabiliza-se ainda pelo recurso a variadíssimas estratégias narrativas que conferem uma dinâmica bem interessante à leitura: elipses, analepses e prolepses são alguns dos mais frequentes, sendo que a troca de voz narrativa e a interpelação direta ao leitor (influenciado, porventura, pelos apartes do texto dramático) são outras das estratégias contempladas. Por outro lado, é frequente o autor tomar a posição do leitor e, a este propósito, não há como deixar de destacar o “Capítulo 7.a”, assim designado por Ávila, onde o próprio assume responsabilidade e adita explicações àquilo que o leitor poderá estar a pensar naquele momento, considerando a prestação, até então, de uma determinada personagem. O seu brilhantismo estende-se ainda aos momentos de descrição. Não sendo adepto da usança frequente do advérbio de modo e, sobretudo, do recurso fácil ao adjetivo, é notório o cuidado que imprime nas suas descrições, valendo-se de comparações significativas para atingir o seu propósito descritivo: “[…] o condutor era um jovem de vinte e poucos anos, bronzeado no rosto e nos braços, cujo cabelo, castanho alourado, se diria um cacho de tremulantes caracóis, arrancado a um painel renascentista.” Para além de tudo o mais, há um fino sentido de humor que perpassa todo o romance, ridicularizando-se abertamente grande parte da sociedade, conferindo especial ênfase àqueles “novos-ricos” que vivem de aparências, mas também o povo e o clero. Aflora-se o “chico-espertismo”, tipicamente português, assim como se coloca em evidência a corrupção, a mentira, a trafulhice.

Norberto Ávila foi claramente um grande escritor português, pelo que, em boa hora, decidiu a Imprensa Nacional-Casa da Moeda publicar, em quatro volumes, os seus textos teatrais, relevando e, sobretudo, eternizando um dos mais notáveis dramaturgos portugueses do século passado. Todavia, e embora se ressalvem os apontamentos tidos pelos responsáveis quer da revista literária «Grotta», quer dos «Colóquios da Lusofonia», e em particular o empenho manifestado pela professora Helena Chrystello, sinto por parte dos responsáveis culturais da região um continuado e incómodo silêncio em relação à vida, mas, mormente, em relação à obra deste açoriano que o foi dos maiores.

Norberto Ávila, «Frente À Cortina De Enganos», Letras Lavadas, 2022


quarta-feira, 5 de outubro de 2022

ENTRE O MAR E A ROCHA. ESTÓRIAS



Embora editada em junho de 2021, só muito recentemente tomámos conhecimento da obra Entre o Mar e a Rocha – Estóriasda autoria do florentino Carlos Fagundes. Do mesmo modo, fruto, talvez, de alguma desatenção, só agora nos apercebemos do trabalho extraordinário que este professor de Português desenvolve, de forma mais ou menos sistemática, no seu blogue pessoal – Pico de Vigia 2 –, procurando resgatar, preservar e difundir as vivências, usos e costumes florentinos e, de uma forma mais alargada, os açorianos e até os continentais. Este volume, que chegou pela mão de um grande amigo e açoriano dos maiores, revelou-se uma descoberta espantosa, o que é bem sintomático do muito que há ainda por descobrir no universo da literatura açoriana.

A obra arranca com o prefácio de Onésimo Teotónio de Almeida, um texto soberbo, cujo título – Uma Ilha Que É Um Mundo –se assume bem revelador do tanto que o leitor poderá esperar das mais de quarenta narrativas que se lhe seguemCom efeito, cada uma das estórias narradas poderá ser assumida como uma janela com vista para um passado cronológico não muito distante, embora (e felizmente, acrescente-sesocial, cultural e economicamente longínquo. São nacos da verdadeira história da ilha das Flores e das suas gentesassumindo-se, em alguns casos, bem mais interessantes e, passe o exagero, mais proveitosos do que alguns dos textos inscritos em determinados compêndios escolares: não nos custa crer, por exemplo, que será através da leitura destes escritos que muitos dos leitores tomarão conhecimento do naufrágio dBidartuma robusta barca de três mastros, de origem francesa e que afundou desgraçadamente nos baixios da Fajã Grande, carreando para a morte sete homens, para além de ocultar o cadáver de um outro que havia perecido a bordo, vítima de escorbuto. 

Tal como outros prosadores, de origem açórica ou não, e dos quais talvez emerja a rudeza das descrições com que Raul Brandão pintou o Corvo e as vivências corvinas, em As Ilhas Desconhecidas (Artes e Letras, 2.ª ed., 2018), também na obra em análise, Carlos Fagundes dá a conhecer, sem grandes derivas ao eufemismo ou mesmo à dissimulação, a ilha das Flores, servindo-nos, com apurado realismo, uma povoação paupérrima, campesina e em tudo rural, onde o milho e o gado assumem especial relevo na vida de gente pobre, mas trabalhadora e muito honrada. Evidencia, declaradamente, o esquecimento dos Açores pelo(des)governo do Estado Novo, salientando, ao mesmo tempo, as nefastas consequências que daí advieram, não apenas para os florentinos, mas para os açorianos em geral: não havia médicos nem vias de comunicação que atravessassem a ilha, o subdesenvolvimento era absoluto e marcado pela pobreza, pela fome, pela deficiente ou mesmo pela ausência de instrução escolar e pela falta de rendimentos, o que redundava, em muitas das vezes, na emigração, fosse a clandestina ou então aquela operada dentro dos trâmites legais. Tristemente, era pelo bojo que os açorianos se viam enxotados da sua própria terra, e, para os pobres que ousassem permanecer, ficava-lhes assegurado trabalho «(…) desmesurado, duro, cansativo, escravista, esgotante, a impregnar-lhe o corpo de cansaço e de sofrimento. Mas trabalho digno, honrado, humilde, verdadeiro e empenhado, a aurorar-lhe o espírito de dignidade e alegria». Por contraponto com a realidade presente, e num esforço para apartar quaisquer ilações políticas que possam chegar acopladas, celebremos, pois, o longo percurso percorrido, em pouco mais de metade de um século, não descurando, todavia, o tanto que ainda se encontra por concretizar. Estas narrativas poderão ser vistas como uma forma de resguardo e imortalização de ritos useiros e costumeiros da existência e vicissitudes daqueles que povoaram o mais ocidental território nacionalpodendo olhar-se cada uma delas como um frame do filme que por ali se vivenciou ao longo de parte significativa do século XX.

Neste comentário, torna-se impossível olvidar a dimensão religiosa que marca, de forma indelével, a maior parte destas narrativas, o que é bem revelador do papel que Deus e a religião assumem na vida dos florentinos e dos açorianos, em geral. Carlos Fagundes mune-se de uma linguagem aparentemente simples, valendo-se de um vocabulário muito cuidado, algumas vezes até vetusto, mas nunca arcaico, característica especialmente notória naqueles textos que, de alguma forma, se relacionam com a religiosidade e com os preceitos do culto. Tenhamos presente não apenas a sua formação académica, no seio da milenar exigência religiosa, ministrada no Seminário de Angra, como também a antiguidade de alguns dos ritos litúrgicos ou outros de ordem telúrica que vai desfiando ao longo das diegeses. Por outro lado, referências a diferentes toponímias (por muitos desconhecidas), assim como o recurso a regionalismos e metáforas de compreensão menos instantânea, tendem a demorar a leitura, mas não deixam de enriquecer sobremaneira o textotornando-o mais verossímil e, sobretudo, conferindo-lhe uma notável literariedade.

 

Carlos Fagundes, Entre o Mar e a Rocha. Estórias, Companhia das Ilhas, 2021