segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

FECHADURA DO CORVO

 



Notava Raul Brandão em «As Ilhas Desconhecidas» que «nunca houve no Corvo um assassinato ou um roubo», ideia reforçada posteriormente por Guilherme de Morais, que, na sua obra «Ilhas do Infante», se referiu àquela ilha como «um viveiro das mais lídimas virtudes dos velhos portugueses.» 

Certo é que as portas corvinas, mesmo escancaradas, ostentaram durante anos, fechaduras artesanais, feitas de madeira e equipadas com um sistema muito simples, montado com uma pequena tranca e uma chave, também elas de madeira. Hoje, a par dos barretes típicos dos corvinos, as fechaduras assumem-se como verdadeiros ícones identitários da vida sociocultural da ilha, um tesouro que merece ser preservado.


Esta tarde, a buzina do carteiro trouxe-me a minha réplica. Fez-ma o David T.P., da Carpintaria Corvo, e enviou-ma com grande requinte e amizade!

Visitem-no aqui: https://www.facebook.com/Aparas-de-Madeira-Woodworking-solutions-107331895003302

domingo, 9 de janeiro de 2022

CINEMA AO DOMINGO DE MANHÃ


Talvez por hoje ser domingo e eu ter sido roubado ao sono pelo cacarejar inclemente dos vinte mil galos que o nosso bom vizinho da frente mantém soltos no palco em que se tornou a nossa rua, ou simplesmente por ter sido assaltado pelas saudades da minha infância, lembrei-me das manhãs de domingo dos meus cinco, seis e sete anos de idade. Sem esforço sou atirado ao passado e passo a habitar novamente a casa da rua da Bela Rosa, contribuindo sobremaneira para o frenesim que a distância de trinta e muitos anos não conseguiu silenciar. Era o dia de Missa para os meus pais, e, mais do que tudo o resto, era o dia do cinema para nós os três.

Em movimentações que enchiam a casa, o meu pai buscava na paciência da minha mãe o último aprumo no nó da gravata ou a vitória sobre aquele vinco que teimava conspurcar a alvura da camisa, enquanto ela, num corrupio, se arranjava e ultimava o almoço que a R.M. deixara adiantado de véspera, antes de abalar de fim de semana. Ao Cláudio, ao Filipe e a mim cabia-nos deixar a mesa posta. Normalmente, com a presença dos meus avós eram sete os pratos que preenchiam a mesa de alegria e sorrisos. Hoje já não são tantos!

- Vamos embora, que está na hora, meninos! – advertia o meu pai.

Era já em transe que entrávamos naquele Renault 4L que o meu pai manteve a brilhar durante mais de vinte anos. O que eu gostava daquele carro! Entre os três, lutávamos para saber quem ocupava o lugar das pontas, junto aos vidros e quem seguia sentado no lugar do meio, muito menos confortável e sem grande visibilidade para o exterior. Talvez por ser o mais novo e, por isso, desprovido de grande argúcia, era normalmente eu quem perdia a contenda e me via arrumado entre os meus irmãos. A minha mãe era sempre a última a chegar. De todas as vezes, tínhamos de a esperar e, não raras ocasiões, o meu pai via-se obrigado a soar o cláxon do Renault, o que a deixava furiosa! Seja como for, a espera valia sempre a pena. Assim que batia com a porta de casa e nos captava a atenção, era vê-la chegar deslumbrante, dando corpo à finura e ao bom-gosto, e quando se adentrava no veículo, o seu perfume inebriava-nos os sentidos.

Da rua da Bela Rosa até à avenida Antero de Chaves - homem importante e da família -, a viagem não demorava mais do que cinco minutos de recomendações e alertas: «Se o filme terminar antes da Missa, não saiam da frente da porta»; «Nada de tratantadas»; «Juízo», eram algumas das advertências gastas a cada semana.  A sala de cinema ficava no antigo quartel dos Bombeiros Voluntários de Paços de Ferreira, e, chegados, era um gosto ver a criançada a lançar-se dos carros (alguns ainda em movimento) em direção à bilheteira, procurando garantir um lugar no balcão, onde a visibilidade sobre a sala era muito melhor e a elevação lhes conferia a falaciosa ideia de superioridade sobre os espetadores que se sentavam na plateia. Por norma, era o meu pai que nos pagava o bilhete da sessão, por isso, vexados que ficávamos por lhe pedir mais dinheiro, era a minha mãe que nos adocicava o palato, dando-nos vinte ou trinta escudos para comprarmos as pipocas mais doces de que tenho memória.

Encontrados os lugares certos, sentia-se a efervescência da amizade, ao mesmo tempo que se travavam as guerrilhas mais atrozes que se possam imaginar: sobre as nossas cabeças, nuvens de milho estourado voavam de um lado para outro, pelo menos até as luzes se apagarem e reclamarem assim a atenção de todos para a exibição que, em segundos, teria início.

Que saudades dos domingos de manhã da minha infância, que saudade daquelas sessões de cinema que começavam assim que o meu pai entreabria a porta do meu quarto e, com a doçura da sua voz, anunciava que estava na hora de acordar.  

 

fotografia: https://www.jornaldosclassicos.com



terça-feira, 4 de janeiro de 2022

O Pirata das Flores

 



O Pirata das Flores foi o último romance lido no ano que findou, tendo sido também o primeiro contacto com a obra ficcional de Tiago Salazar. O móbil que me alavancou o interesse foi a apresentação do livro em Ponta Delgada, da responsabilidade da florentina Ana Monteiro, e que ocorreu integrada no evento literário «Arquipélago de Escritores». Recordo o entusiasmo com que a apresentadora se referiu ao texto, e, sem dúvida, o modo pertinente como o enquadrou no tempo e no espaço; a forma como deu a conhecer aquelas gentes – que são também as suas gentes –, assim como sublinho a exatidão do detalhe histórico, cultural e geográfico que ali foi assinalado.

Trata-se de um romance histórico e de aventura que expõe a viagem do florentino António de Freitas que, desiludido com as aprendizagens e os saberes ministrados no Seminário de Angra e revoltado com o seu «medíocre destino», decide virar o curso da sua vida e embarcar em demanda de apetecíveis tesouros e outras riquezas, entregando-se, pois, ao corso, à pirataria, no fundo, convertendo-se ao crime em busca desse garante financeiro. Tiago Salazar, lisboeta e autor, entre outras, das obras A Escada de Istambul e O Magriço, estrutura o seu último romance em duas partes distintas, ocupando-se a primeira dos antecedentes e de todas as peripécias da viagem, destacando-se as diversas etapas e aventurosos encontros até alcançar os mares do Oriente, e a segunda dedicada à vivência em Macau, onde António de Freitas e o seu fiel companheiro abriram todas as portas e cometeram todos os pecados na busca obstinada de riqueza.

Naturalmente de ficção, a obra em apreço (lavrada num registo leve, mas muito cuidado, especialmente no campo lexical) inspira-se na figura histórica de António de Freitas, um açoriano da ilha das Flores, nascido já nos finais do século XVIII e que, pelas razões já referenciadas, se tornou num famoso pirata que terá feito fortuna com todo o tipo de negócios ilícitos, destacando-se o tráfico de ópio (embora na altura regularizado), as casas de jogo, os bordéis ou a compra de crianças pagãs.

Ao contrário do que seria expectável, António de Freitas permitiu-se regressar a casa, desembarcando na ilha das Flores a salvo com a família e com todos os seus haveres acumulados, decorria o ano de 1846. Talvez buscando expiação, dedicou-se à filantropia e empenhou parte da sua fortuna proporcionando a todos condições de vida mais condignas, destacando-se a construção de uma igreja, pela qual o lugar do Mosteiro viu a sua elevação a freguesia, por decreto de Dona Maria II, no ano de 1850.

Os restos mortais de António de Freitas encontram-se depositados na ilha das Flores, num túmulo sem quaisquer epitáfios visíveis, mas ornado pelo cruzar de duas tíbias encimadas por uma caveira, símbolo inequívoco da pirataria. Neste romance, e com um (grande) esforço por apartar do olhar da consciência a forma como António terá atingido os seus intentos, consegue-se captar o seu espírito: aguerrido e aventureiro, pertinaz e sonhador, afinal, características inerentes a todo o povo açoriano, que, desde há muito, busca na emigração o sustento das suas ânsias.

Tiago Salazar, O Pirata das Flores, Oficina do Livro, novembro de 2021