sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

«Lado de Cá» – Contos de Tomaz Borba Vieira

 


Embora seja opinião quase generalizada de que o conto é, cada vez mais, um género literário em franco declínio, que não é vendável por já não ser atrativo ao olhar da maioria dos leitores, cada vez mais interessados no romance, a verdade é que continuam a chegar às livrarias obras portuguesas de qualidade assinalável, e que nos parecem querer provar exatamente o contrário, que o género está vivo e goza até de algum vigor literário!

Num exercício rápido de memória, circunscrito ao universo arquipelágico recente, permito-me rememorar obras como O Carcereiro da Vila, do próprio Tomaz Borba Vieira, Pretérito Quase Perfeito e Outros Contos, de Paula de Sousa Lima, Corpo Triplicado, de Maria Brandão, Contos Bizarros, de João Pedro Porto, Avenida Marginal Ficções, Ponta Delgada, da responsabilidade da editora Maria Helena Frias, e que segue já na sua segunda edição, e, claro, as obras O Outro Lado do Mundo, de Paula de Sousa Lima e Mau Tempo e Má Sorte Contos Pouco Exemplares, de Leonor Sampaio da Silva, ambas reconhecidas com a atribuição do Prémio Humanidades Daniel de Sá.

Para além de todos os referenciados, e outros que, injustamente, terei olvidado, é impreterível agora referirmo-nos, também, a Lado de Cá, redigido pelo “Educador, Pintor, Escritor, Agente Cultural” Tomaz Borba Vieira e editado recentemente pela editora Letras Lavadas.

Mesmo antes de quaisquer leituras ou alusões ao texto, torna-se impossível passar indiferente ao livro-objeto, tal a sua assinalável beleza, bom-gosto, formato e material selecionado. Há uma harmonia, dir-se-á, quase imprescindível, entre o texto e o livro que o suporta. As mais-valias gráficas e icónicas são um contributo fundamental para a apropriação das próprias narrativas que lá estão inscritas. E não me refiro somente às ilustrações da autoria do próprio Tomaz Borba Vieira, embora estas corporizem um conjunto soberbo de desenhos que surgem a par do texto, conferindo-lhe interesse adicional. Não raras vezes há de atrasar a leitura, por os sentidos ficarem retidos na imagem que ali acompanha o escrito. A este propósito, refere José Maria da França Machado no prefácio da obra, citando o próprio autor que «Uma coisa é ilustrar um livro, outra é ir escrevendo e desenhando. Por vezes o texto aparece primeiro, outras o desenho. Nalguns casos ambos ao mesmo tempo», o que deixa claro que, tal como acontecera em O Carcereiro da Vila, por exemplo, a componente pictórica está longe de se encontrar subjugada ao texto, limitando-se a ilustrá-lo. Estará antes ao serviço das próprias diegeses, conferindo-lhes mais uma dimensão, além da que deslindamos pela interpretação textual que vamos operando ao longo da leitura. Como já o referi a propósito de O Carcereiro da Vila, este é um território muito distinto da arte, e o meu conhecimento é manifestamente curto para me poder alongar em análises com alguma comodidade. Não obstante, reitero a ideia que foi um prazer imenso folhear o livro e corroborar na imagem a interpretação feita a partir do texto.

Os contos aqui trazidos serão lidos de um só fôlego, considerando a extensão e, essencialmente, o interesse que suscitam. O aproximar da última página carrega um sentimento de frustração, e isto porque, finda a obra, povoa o pensamento a ideia de que a leitura terá sabido a pouco…

Poder-se-á assumir que a estrutura destas narrativas remonta à génese da própria literatura, e à sua tradição oral, claro está! Não excluiria mesmo a hipótese de estes contos terem sido efabulados a partir de situações reais, vivenciadas ou relatadas ao autor e agora resgatadas pelo próprio Tomaz Borba Vieira. Na sua aparência simples, estes contos cerzem-se com linhas fundamentais que ajudam a perceber e a explicar a complexidade humana, a forma de ser e de estar das nossas gentes. São histórias que se repetem ao longo da História e as quais quis o autor eternizar em suporte apropriado.

Os contos da autoria do professor Tomaz Borba Vieira são, para mim, motivo de encantamento. Dos que tenho lido, serão os dele os que mais se aproximam dos afamados “casos”, a que ele próprio se refere em obras anteriores, e aos quais também Daniel de Sá, por vezes, aludia. Os mesmos “casos” que ganhavam vida e nuances mais açucaradas ou mais acres, consoante a empatia pelos envolvidos na contenda. Era nas esquinas mais concorridas das freguesias ou mesmo nos bancos de jardim, onde, abrigados do calor em tarde soalheira, respeitáveis fregueses os repartiam com homens mais novos ou mancebos imberbes.

Em Lado de Cá, Tomaz oferece-nos três histórias muito bem contadas. A forma como ele no-las conta é singela e esse será o grande segredo da sua escrita. Dominar e servir-se da simplicidade narrativa é coisa, deveras, complexa e, por isso, ao alcance apenas de uns poucos virtuosos. Tomaz Borba Vieira é um deles e fá-lo com mestria!

Tomaz Borba Vieira, Lado de Cá, Letras Lavadas Edições, 2020


domingo, 20 de dezembro de 2020

«Causas da Decadência dos Povos Peninsulares Nos Três Últimos Séculos», por Antero de Quental

 


(Por ocasião do recente falecimento de Eduardo Lourenço, prefaciador desta obra singular de Antero de Quental, recuperei o texto com que o açoriano abriu as Conferências do Casino, decorria, então, o ano de 1871).

Um grande filósofo, pensador e professor incentivou-me certa vez a leitura do texto «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares Nos Três Últimos Séculos», redigido por Antero de Quental: «É fundamental! Devemos primeiro perceber o passado do nosso país, para melhor perspetivarmos o seu futuro» -, aconselhou.

Adquiri a obra, encetei a leitura e percebi por que motivo me fora recomendada, por que razão sobrevivera este texto não apenas ao constante passar do tempo, como também ao encerramento das próprias Conferências de onde brotara. Embora tido agora como atemporal, foi redigido a propósito do dia 27 de maio de 1871, por ocasião da abertura das “Conferências do Casino”, as tais dos grandes vultos do “Grupo do Cenáculo”, os da “Geração de 70”, as mesmas proibidas por Portaria do Ministério do Reino, em junho desse mesmo ano!

O texto – maravilhoso – agradou-me sobremodo, não apenas pelo retrato da sociedade civil de então, (com a qual ainda se podem estabelecer paralelos formidáveis) mas também, e essencialmente, porque me inculcou no espírito umas tantas questões às quais não consegui dar resposta imediata e me consumiram a quietude durante largo período.

Segundo Antero, as causas que estariam na base da decadência dos povos peninsulares passariam pelos Descobrimentos de novos mundos, pelo Absolutismo régio e pela transformação do Catolicismo, por via do Concílio de Trento.

As duas primeiras razões apontadas, embora inegavelmente complexas, são de clara perceção; a explanação sugerida é elucidativa e, corroborando-a ou não, ali ficam demonstrados possíveis fundamentos para o atraso no desenvolvimento da Península, comparativamente com os países europeus. A terceira e última razão aludida foi a que me suscitou grande desassossego e me conduziu a uma jornada ao âmago das minhas certezas.

Atente-se:

Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do Catolicismo do concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus…”

ou ainda:

Na sessão 14ª de Trento é a consciência cristã definitivamente encerrada. Sem confissão não há remissão de pecados! A alma é incapaz de comunicar com Deus, senão por intermédio do padre!”

É um texto farto em frases duras, pelo menos, para quem cresceu e foi educado no seio de uma família que se reja sob os preceitos do Catolicismo.

Então, Cristianismo ou Catolicismo? Haverá ou não lugar a ‘um Cristianismo’ fora dos ditames do Catolicismo? Este amordaça e amedronta os seguidores, os crentes? Inibe-os ou não de viver em pleno o Cristianismo; inibe-lhes ou não a vivência em Cristo? Não será já o Catolicismo uma adulteração humana daquilo que deveria ter sido a fé Cristã, pura e simples, individual e, ao mesmo tempo, coletiva?

A noção genérica em que creio passa pelo Cristianismo como a génese da religião, a base de sustentação, o pilar que conduz à crença em Deus – Pai, Jesus Cristo – Filho, acompanhados pela força de um Espírito Santo. Tenho como certa a base em Jesus Cristo e que se trata, sobretudo, de sentimento. No que ao Catolicismo concerne, instigaram-me a crença de que “caminhava lado a lado” com o Cristianismo, numa demanda que dura há já mais de dois milénios. Transmitiram-nos que uma completava a outra, mas, ponderando, necessitará o Cristianismo de qualquer complemento?

Hoje percebo mais facilmente aqueles que encaram o Catolicismo com algum distanciamento, que o veem como uma forma ou instituição, e que o reduzem a uma norma que modela a forma de viver e de sentir o Cristianismo. Percebo que o encarem como uma mera disciplina a seguir, que será (ou não) dispensável. Percebo que questionem se serão necessários estes preceitos concebidos pelos homens que nos antecederam para que se consiga viver em plenitude o Cristianismo…

Com efeito, ao olhar para todos os cerimoniais que se nos apresentam quotidianamente, o que se vê para além de encenações quase teatralizadas, e, em alguns casos, até idolatrias? Por que razão há cerimoniais e datas rigidamente estabelecidas para que se possa cumprir plenamente a vivência em Cristo? – bem sei que a qualquer altura se pode fazer a remissão dos pecados, mas naquelas datas específicas deve-se fazê-lo, sob pena de se cometer um “pecado maior”. E por que razão é necessário um intermediário para fazê-lo? Não será este um caminho de inibição? E recordemos, também, as atrocidades cometidas pelo Santo Ofício ao serviço destes preceitos católicos…

Que lugar deixa o Catolicismo às liberdades individuais? Tudo é regido por preceitos estritamente definidos: aquele que se rebele será herege, o que hoje não carregará o peso de outros tempos, é certo, mas, ainda assim, será apontado como diferente, pelo menos!

Não terá ido o Catolicismo um pouco longe de mais, adulterando as aspirações despretensiosas, simples, mas, ao mesmo tempo, plenas e sacras do Cristianismo? Esta igreja assim estruturada, que lugar deixa ao sentimento simples, espontâneo e sincero?

Naturalmente, o disserto anteriano é substancialmente mais vasto, rico e prodigioso do que aquilo que alguma vez poderia aqui deixar apontado. Na edição da obra que possuo, prefaciada pelo recentemente falecido professor Eduardo Lourenço, usam-se expressões como «memorável intervenção» ou «referência mítica» e, aludindo a ideia inicial deste escrito, creio que cumpre religiosamente a sua função maior: impelir questões, exigindo respostas!

Não será este o intento final de todo e qualquer texto de referência?

Antero de Quental, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos, Edições Tinta da China, 2008


quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

“Ler na Livraria” ao sábado de manhã

Para além do prazeroso reencontro com pessoas que partilham o gosto pela Literatura, as sessões “Ler na Livraria”, promovidas pelos responsáveis pela icónica livraria LeyaSolmar, em Ponta Delgada, revestem-se da grande vantagem de trazerem ao conhecimento ou, pelo menos, à memória obras de referência que, por um ou outro motivo, se encontravam na obscuridade do esquecimento. Foi o caso de «Descobri Que Era Europeia», da autora açoriana Natália Correia, naquele sábado selecionado e comentado pela professora e escritora Leonor Sampaio Silva.

A edição que possuo – da editora Ponto de Fuga, março de 2018 – é a mais recente e é um pouco mais alargada do que a obra original, uma vez que se refere, ao contrário da primeira, às três viagens que a autora de «A Ilha de Circe» efetuou aos Estados Unidos da América: a primeira em 1950, com apenas vinte e seis anos, a segunda em 1978, a convite da Brown University e a última em 1983, em representação do então Presidente da República, General Ramalho Eanes, por ocasião da comemoração, naquele país, do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades.

Apesar de se reportar a três momentos temporais distintos e outras tantas viagens, o âmago do texto incide, essencialmente, no relato da primeira viagem àquele país. Nele, Natália procura retratar a essência do “american way of life”, assimilado através de inúmeras incursões por cidades da costa leste dos Estados Unidos da América, nomeadamente, Boston, Washington ou Nova Iorque, colocando-o em contraponto com a sua própria visão europeísta.

Apesar de se tratar de uma “obra de início de carreira”, como outros a catalogaram, Natália Correia adensa-a com uma interessante conjugação de géneros, pressagiando, claramente, o virtuosismo literário que lhe viria a ser reconhecido, posteriormente. Investidas pelo relato de viagem, reportagem, texto diarístico, prosa ficcional ou poesia criam um todo estruturalmente harmonioso e de leitura bastante interessante. O que poderia ter sido apenas um texto híbrido, descritivo e sem grandes linhas orientadoras, revela-se um documento profético (até no que à política económica da Europa concerne), exuberante e de uma profunda riqueza literária, onde a autora analisa comparativamente e em constância, o modo de vida de um lado e do outro do Atlântico.

Nesta viagem há ainda uma profunda jornada autorreflexiva até ao íntimo da própria autora que assume, aliás, que principia a expedição com muitas questões por responder, «Trouxe curiosidades para a América (…)», sendo que, no regresso, a poucas ou nenhumas conseguiu dar resposta plenas, «Nenhuma das minhas curiosidades foi satisfeita.». Não obstante, conclui que americanos e europeus são «estruturalmente diferentes» e o seu desapontamento com «a terra prometida» fá-la perceber que o seu lugar no mundo passará sempre pelo velho continente. Embora encontre no «Novo Mundo» laivos civilizacionais aceitáveis (quase sempre assentes em origens europeias), nomeadamente em contacto direto com algumas pessoas ou em visita a determinados espaços – galerias de arte, por exemplo – há por diversas vezes referência à falta de raízes daquele país, à superficialidade da sua cultura estética, o que lhe causa um monumental desencanto.

Serão, aliás, esses sentimentos de desilusão e frustração, cumulativamente com a sua integridade intelectual e consequente afastamento do ‘politicamente correto’, associados a uma escrita crua, corrosiva, pautada por disfemismos, ironia e por um sentido de humor apuradíssimo, que levaram a que muitos considerassem este texto «de cabal antipatia pelo american way of life (…)», como ficou registado pela mão da própria autora à partida para a sua segunda viagem aos EUA.

Natália Correia, fruto talvez da sua personalidade assumidamente mal-humorada, não se inibiu de, textualmente, apoucar muitos dos que, de certa forma, a terão exasperado durante esta viagem: ora pela vivência de situações envoltas em falta de idoneidade, «(…) percebi que a pressurosa ajuda do homenzinho, insistindo em retirar os embrulhos do táxi, obedecia a intuitos bem poucos generosos.», ora pela interação com indivíduos cujos discursos chegavam a ser insultuosos à inteligência da autora,  «O homem conhece a Europa. Esteve em Espanha e quer saber que língua se fala em Portugal. Foi a este sujeito que estive para responder que em Portugal éramos todos mudos. Mas não o fiz, com receio de que ele acreditasse…».

No atinente à segunda e à derradeira viagens àquele país, percebe-se uma certa pacificação da autora com a região: «Regresso agora à América do Norte, e o impacto europeizante que me acolhe encandeia-me logo à chegada. Que modificação se operou
nesta caminhada do tempo, não tão longa para justificar esta drástica
rutura do velho isolacionismo norte-americano face à vida europeia, ao
ponto de ter eu a sensação de me achar numa Europa que já não encontro na sua velha colocação geográfica e cultural?», no entanto, claramente insuficiente para que lhe suscite qualquer tipo de especial deslumbramento.

A terminar, deixo-vos duas citações retiradas do texto de 1950 que considero dignas de registo, talvez pela atualidade com que se revestem:

«O protesto é uma democracia de recurso.»

«(…) o meu ceticismo ante os meandros da política internacional inclinava-me a não acreditar na “pureza de intenções dos países empenhados em defender os interesses de outras nações”»

A todos, um abraço dos maiores!

Natália Correia, Descobri Que Era Europeia, Ponto de Fuga, 2018


quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

.::Mar Estéril::.



Já não há água que fecunde este mar,

Nem fogo que acalente esta chama.

Das entranhas verdes e húmidas 

(Alvíssaras prometidas)

Vertem agora prantos enlutados e inábeis.


Um vazio arrefecido e triste

Tomou lugar nas violentas vagas,

Carreando a cada preia-mar 

Vontades e desânimos.