Melhor dito,
morreu-me o senhor Custódio. Foi a minha mãe quem me deu a notícia, aliás, tem
sido ela, coitada, a assumir a funesta missão de me trazer o pesaroso
desaparecimento dos vizinhos da minha infância. Pessoas amigas que são avós, pais,
mães, tios de outros tantos amigos de sempre. Um após outro, são cada vez mais
aqueles que partem, o que faz com que eu seja cada vez menos, diminuído pelas
vivências que com eles seguem para a dimensão seguinte, reduzindo-me à inevitabilidade
da solidão. Dir-me-ão que me restam as memórias, mas a memória é bem mais verosímil
quando partilhada, quase como em um diálogo onde são necessários dois
interlocutores, onde um vai confirmando a premissa do outro, caso contrário, não
se distingue da ficção mais ou menos fundida por lembranças esbatidas ou caldeadas
por afetos e saudades.
Julgo
que já se rezou a missa do sétimo dia pela sua alma. Tive muita pena dele, coitado
do senhor Custódio! Cabisbaixo e de feição fechada de onde só muito
excecionalmente nascia um sorriso, gostava muito de mim e dos meus irmãos. Era
uma figura solitária que sempre me intrigou. Víamo-lo sempre sozinho, ao longe
nos campos, ora de fardo de palha às costas, ora com elas vergadas a arrigar à
terra as daninhas que ameaçavam cobrir o cebolo. Outras vezes, víamo-lo a roçar
erva ou a carregar sacas de farinha que trazia do moinho dos Costas, no regato
da Cerejinha. Em dias de chuva dedicava-se às gamelas de cimento e, embora não lhe
conhecesse quaisquer animais, nunca lhe faltavam comedouros e bebedouros para
vender. Sabia fazer de tudo, mas confesso que nunca vi ninguém podar uma vinha
com a destreza com que ele o fazia: lançava a escada à banca da ramada, por
vezes arriscava até no bardo e, como a um maestro, era um gosto vê-lo
esbracejar por entre a folhagem que se ia soltando e vestindo o chão com cores
outonais. Não abrandava nem parava; não se distraía do trabalho e só lhe
ouvíamos a voz quando precisava que lhe chegássemos mais um molho de fiteiras com
que amarrava as vides, direcionando-as pelos arames certos e protegendo-as dos
rigores do inverno.
Durante
anos, tal como o senhor Albino, a senhora Glória da Ribeirinha, o senhor Abel
ou o Chico da senhora Aurora, o senhor Custódio nunca faltou a uma sementeira ou
a uma apanha da batata na nossa casa, e em setembro era vê-lo chegar à vinha,
silencioso, de escada de doze ao ombro e uma tesoura de poda na mão, pronto
para arrancar à ramada as americanas mais doces. Mesmo assim, nunca soube muito
mais acerca dele. A verdade é que nunca me questionei; sempre julguei que conhecia
tudo o que havia para conhecer sobre aquela figura esguia, de palavras poucas e
pele curtida pela aspereza da jorna. Agora que é já tarde demais percebo o erro
e arrependo-me por não ter arriscado as perguntas certas! Não sei, sequer, se a
sua partida deixou uma viúva ou até prole que lhe chore a ausência a cada dia.
Hei de perguntar à minha mãe, talvez ela saiba.
Na
minha rua, morreram-me a senhora dona Aurora e a senhora dona Glória, o senhor
Avelino e a senhora dona Rosa, o senhor Henrique, o senhor José e o senhor
Bernardino, morreu o senhor Arnaldo, o senhor António e agora o senhor
Custódio… Com eles vai morrendo também parte da minha infância, e até o tímido caudal
de água que, esforçado, impelia a mó contra a dureza do milho enxuto na eira, secou
de tristeza e o moinho, que antes cobria de alvura o senhor Custódio, ficou por
ali, largado à imensidão do abandono…
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