domingo, 14 de novembro de 2021

MORREU O SENHOR CUSTÓDIO

 


Melhor dito, morreu-me o senhor Custódio. Foi a minha mãe quem me deu a notícia, aliás, tem sido ela, coitada, a assumir a funesta missão de me trazer o pesaroso desaparecimento dos vizinhos da minha infância. Pessoas amigas que são avós, pais, mães, tios de outros tantos amigos de sempre. Um após outro, são cada vez mais aqueles que partem, o que faz com que eu seja cada vez menos, diminuído pelas vivências que com eles seguem para a dimensão seguinte, reduzindo-me à inevitabilidade da solidão. Dir-me-ão que me restam as memórias, mas a memória é bem mais verosímil quando partilhada, quase como em um diálogo onde são necessários dois interlocutores, onde um vai confirmando a premissa do outro, caso contrário, não se distingue da ficção mais ou menos fundida por lembranças esbatidas ou caldeadas por afetos e saudades.

Julgo que já se rezou a missa do sétimo dia pela sua alma. Tive muita pena dele, coitado do senhor Custódio! Cabisbaixo e de feição fechada de onde só muito excecionalmente nascia um sorriso, gostava muito de mim e dos meus irmãos. Era uma figura solitária que sempre me intrigou. Víamo-lo sempre sozinho, ao longe nos campos, ora de fardo de palha às costas, ora com elas vergadas a arrigar à terra as daninhas que ameaçavam cobrir o cebolo. Outras vezes, víamo-lo a roçar erva ou a carregar sacas de farinha que trazia do moinho dos Costas, no regato da Cerejinha. Em dias de chuva dedicava-se às gamelas de cimento e, embora não lhe conhecesse quaisquer animais, nunca lhe faltavam comedouros e bebedouros para vender. Sabia fazer de tudo, mas confesso que nunca vi ninguém podar uma vinha com a destreza com que ele o fazia: lançava a escada à banca da ramada, por vezes arriscava até no bardo e, como a um maestro, era um gosto vê-lo esbracejar por entre a folhagem que se ia soltando e vestindo o chão com cores outonais. Não abrandava nem parava; não se distraía do trabalho e só lhe ouvíamos a voz quando precisava que lhe chegássemos mais um molho de fiteiras com que amarrava as vides, direcionando-as pelos arames certos e protegendo-as dos rigores do inverno.

Durante anos, tal como o senhor Albino, a senhora Glória da Ribeirinha, o senhor Abel ou o Chico da senhora Aurora, o senhor Custódio nunca faltou a uma sementeira ou a uma apanha da batata na nossa casa, e em setembro era vê-lo chegar à vinha, silencioso, de escada de doze ao ombro e uma tesoura de poda na mão, pronto para arrancar à ramada as americanas mais doces. Mesmo assim, nunca soube muito mais acerca dele. A verdade é que nunca me questionei; sempre julguei que conhecia tudo o que havia para conhecer sobre aquela figura esguia, de palavras poucas e pele curtida pela aspereza da jorna. Agora que é já tarde demais percebo o erro e arrependo-me por não ter arriscado as perguntas certas! Não sei, sequer, se a sua partida deixou uma viúva ou até prole que lhe chore a ausência a cada dia. Hei de perguntar à minha mãe, talvez ela saiba.

Na minha rua, morreram-me a senhora dona Aurora e a senhora dona Glória, o senhor Avelino e a senhora dona Rosa, o senhor Henrique, o senhor José e o senhor Bernardino, morreu o senhor Arnaldo, o senhor António e agora o senhor Custódio… Com eles vai morrendo também parte da minha infância, e até o tímido caudal de água que, esforçado, impelia a mó contra a dureza do milho enxuto na eira, secou de tristeza e o moinho, que antes cobria de alvura o senhor Custódio, ficou por ali, largado à imensidão do abandono…

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