sábado, 6 de novembro de 2021

RAMPAS E GUITARRAS

 



Hoje, enquanto regressava a casa, vi o R. e fiquei verdadeiramente desolado. Foi meu aluno há muitos anos, pelo que andará agora pelos trinta e poucos. Seguia com a companheira, que não terá celebrado ainda os vinte e cinco, embora ninguém arrisque menos de quarenta.

Não me recordo que ele tivesse sido um bom aluno, mas sei que era um moço de categoria: vivia cheio de sonhos e parecia ter vontade de os concretizar. Certa vez, pediu-me e a outra colega que lhe redigíssemos um projeto que engendrara para a construção de um Skate Park, bem no centro da freguesia. «Se for uma coisa bem amanhadinha, o Presidente da Junta paga as rampas, professor! É só trabalhar nisso!», garantia com a voz polida pela esperança num futuro promissor. Infelizmente para o R., não se concretizaram nem as rampas, nem o futuro.

Encontrava-me parado no trânsito quando o vi passar. A humidade pesava e a quentura era farta, mas isso não parecia incomodá-lo. Ao primeiro vislumbre percebi que continuava a sobreviver no lado de lá, na margem mais triste e mais negra da vida, e o seu aspeto cada vez mais debilitado e cadavérico não agoirava nada de auspicioso. Seguia de passo em brasa pela Rua da Boa Nova, em direção à zona da Pranchinha, pois claro! Cruzei-me com ele defronte do Estabelecimento Prisional e não consegui evitar de pensar na ironia daquele andamento fugidio, precisamente ali, naquele espaço onde reina a reclusão. Fiquei com a leve impressão de que também me vira. Todavia, tolhido talvez por uma réstia de discernimento, preferiu cravar a vergonha no chão a ter de enfrentar a minha expressão. Mentira-me na última vez que faláramos, e, ainda assim, senti-me tocado pela compaixão. Não terminara o seu tratamento, nem estava curado. Não procurara emprego, nem ajudara a companheira a percorrer os trilhos da desintoxicação. Também não procuraram recuperar os filhos que, em boa hora, os senhores da Lei colocaram a salvo, abrigados sob a asa protetora da família mais próxima.

Depois de abandonar a escola, ainda o soube entretido entre a música e o arranjo caseiro de automóveis. O R. era habilidoso na mecânica e desenrascado com a guitarra. Julguei que seria esse o rumo que tomaria. Afinal, a Escola não lhe falhara miseravelmente. Havia Valores em desenvolvimento e um cidadão em formação.

Entretanto, seduzido pela ilusão do “amor e uma cabana”, saiu de casa e depressa veio a prole: nasceu um, depois outro e ainda mais um, e com eles chegaram todos os encargos e obrigações, assim como os primeiros desleixos e outras incúrias bem mais graves…

Trouxe-me à realidade o cláxon do Fiesta que desesperava numa das perpendiculares. Desculpando-me, ainda lancei o olhar ao retrovisor, perscrutando, mas já não os vi. Senti pena dele. Sabia que dali a uns minutos – poucos – estaria caído numa qualquer valeta, vencido pelo insidioso logro de um mundo benévolo, sem responsabilidades, nem deveres. Já o via submergir num oceano intrujão, iniciando mais uma viagem trapaceira a um lugar onde espero que haja, pelo menos, umas rampas ou umas guitarras com que o R. possa, enfim, aprender a brincar com os filhos.

 

Ao R., aluno e amigo.

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