Hoje, enquanto regressava a casa, vi o R. e fiquei verdadeiramente desolado. Foi meu aluno há muitos anos, pelo que andará agora pelos trinta e poucos. Seguia com a companheira, que não terá celebrado ainda os vinte e cinco, embora ninguém arrisque menos de quarenta.
Não me
recordo que ele tivesse sido um bom aluno, mas sei que era um moço de
categoria: vivia cheio de sonhos e parecia ter vontade de os concretizar. Certa
vez, pediu-me e a outra colega que lhe redigíssemos um projeto que engendrara
para a construção de um Skate Park, bem no centro da freguesia. «Se for
uma coisa bem amanhadinha, o Presidente da Junta paga as rampas, professor!
É só trabalhar nisso!», garantia com a voz polida pela esperança num futuro promissor.
Infelizmente para o R., não se concretizaram nem as rampas, nem o futuro.
Encontrava-me
parado no trânsito quando o vi passar. A humidade pesava e a quentura era farta,
mas isso não parecia incomodá-lo. Ao primeiro vislumbre percebi que continuava
a sobreviver no lado de lá, na margem mais triste e mais negra da vida, e o seu
aspeto cada vez mais debilitado e cadavérico não agoirava nada de auspicioso. Seguia
de passo em brasa pela Rua da Boa Nova, em direção à zona da Pranchinha, pois
claro! Cruzei-me com ele defronte do Estabelecimento Prisional e não consegui
evitar de pensar na ironia daquele andamento fugidio, precisamente ali, naquele
espaço onde reina a reclusão. Fiquei com a leve impressão de que também me vira.
Todavia, tolhido talvez por uma réstia de discernimento, preferiu cravar a
vergonha no chão a ter de enfrentar a minha expressão. Mentira-me na última vez
que faláramos, e, ainda assim, senti-me tocado pela compaixão. Não terminara o
seu tratamento, nem estava curado. Não procurara emprego, nem ajudara a companheira
a percorrer os trilhos da desintoxicação. Também não procuraram recuperar os
filhos que, em boa hora, os senhores da Lei colocaram a salvo, abrigados sob a
asa protetora da família mais próxima.
Depois
de abandonar a escola, ainda o soube entretido entre a música e o arranjo
caseiro de automóveis. O R. era habilidoso na mecânica e desenrascado com a guitarra.
Julguei que seria esse o rumo que tomaria. Afinal, a Escola não lhe falhara miseravelmente.
Havia Valores em desenvolvimento e um cidadão em formação.
Entretanto,
seduzido pela ilusão do “amor e uma cabana”, saiu de casa e depressa veio a
prole: nasceu um, depois outro e ainda mais um, e com eles chegaram todos os encargos
e obrigações, assim como os primeiros desleixos e outras incúrias bem mais graves…
Trouxe-me
à realidade o cláxon do Fiesta que desesperava numa das perpendiculares. Desculpando-me,
ainda lancei o olhar ao retrovisor, perscrutando, mas já não os vi. Senti pena
dele. Sabia que dali a uns minutos – poucos – estaria caído numa qualquer
valeta, vencido pelo insidioso logro de um mundo benévolo, sem
responsabilidades, nem deveres. Já o via submergir num oceano intrujão, iniciando
mais uma viagem trapaceira a um lugar onde espero que haja, pelo menos, umas
rampas ou umas guitarras com que o R. possa, enfim, aprender a brincar com os
filhos.
Ao R., aluno e amigo.
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