terça-feira, 29 de agosto de 2023

A NOSSA PRIMEIRA ESTRELÍCIA


 A NOSSA PRIMEIRA ESTRELÍCIA 


Desde tenra idade, sempre me encantaram as flores, fossem as mais simples e campestres, crescidas por entre eucaliptos, pinheiros ou giestas-bravas, na bouça atrás da casa da minha avó materna, fossem as outras, aquelas mais caras, chiques, compradas na florista, que a minha avó ou mesmo a minha mãe acolhiam com todo o esmero em vasos bonitos, antigos e de faiança cobiçosa.

É certo que um rapazote de oito ou dez anos não confessava esse gosto ante os outros, não fosse o capricho chegar aos ouvidos do grupo de amigos e, aí sim, estaria o caldo bem entornado: “Olha aquele gosta de flores”. Todos sabemos como em determinadas idades somos capazes de valentes crueldades, não vale a pena escamotear muito mais o assunto.

Todavia, por essa altura, havia uma flor que me encantava em particular: linda, exuberante, desigual de todas as outras que conhecia até então, com as suas cores fortes e formato inusitado: era a estrelícia ou como também é conhecida a ave-do-paraíso.

Tomei conhecimento da sua existência, porque, anualmente, e até há pouco tempo, um casal pacense, há muito radicado na ilha da Madeira, ofertava caixas e caixas de estrelícias com a finalidade de alindar a Igreja Matriz de Paços de Ferreira, para a celebração do Natal (segundo me garante a minha mãe, já que tinha memória de que fosse por altura Pascal). 

Para nós, miúdos (e graúdos também) aquilo era um motivo de grande orgulho, ver o velho templo todo engalanado, vaidoso por envergar aquelas cores alegres, vistosas, capazes de suster a atenção de todos e de quantos nos visitassem. Fruto do labor das senhoras responsáveis pelo adorno da igreja, era realmente notável o resultado final, e tudo em honra de Cristo, celebrando o seu nascimento.

Quando há vinte anos me mudei para São Miguel, fiquei admirado ao perceber que as estrelícias de que tanto gostava cresciam em rotundas e valetas por cimentar. Um mar laranja, azul e verde invadia-me constantemente o olhar. 

Na primeira oportunidade, e porque também o pequenino Filipe lhes acha graça, plantei uns pés no nosso jardim, num recanto previamente escolhido e preparado para as receber, mas durante dois ou três anos, não aconteceu nada, e a desilusão foi-se apoderando.

Até hoje, porque hoje floriu a nossa primeira estrelícia, e, embora pequenina e escanzeladinha, é a mais bonita que alguma vez vi! É a nossa primeira estrelícia, aquela que me carregou até à minha juventude e me trouxe de volta (passe o pleonasmo)o brilho do olhar que, há trinta anos, pousava naquelas que adornavam a Matriz de Paços de Ferreira. 

Agora, outras se preparam para florir, sendo que aquele será, com certeza, o recanto mais bonito do nosso jardim!

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Raiz Comovida, de Cristóvão de Aguiar


(Uma moeda a quem chegue com a leitura até ao fim do artigo. É extenso, eu sei.)

RAIZ COMOVIDA, UM TRATADO DE LINGUAGEM; UM RETRATO ANTROPOLÓGICO 

Fruto da curiosidade, assim como de avisadas sugestões que foram chegando, encetei, recentemente, a leitura de «Raiz Comovida», o I primeiro volume da obra completa de Cristóvão de Aguiar, uma trilogia romanesca que engloba as obras «A Semente e a Seiva», «Vindima de Fogo» e «O Fruto e o Sonho». 

Tendo sido Cristóvão de Aguiar “um dos principais responsáveis pela afirmação cultural dos Açores após o 25 de Abril”, como bem afirmou Mário Mesquita, é muito provável que me chegue a censura pelo atraso com que enceto a leitura desta obra de referência da literatura açoriana, ou, pelo menos, que me surjam conselhos sobre como priorizar as minhas opções literárias. Num assumido e até um pouco envergonhado "mea culpa", responderei, sem quaisquer constrangimentos, que terão toda a razão, estivesse eu mais atento, não me teria escapado a sentença de João de Melo, notável escritor açoriano, que se referiu a este texto como “uma experiência linguística sem precedentes”, motivo mais do que suficiente para lhe lançar um cuidado olhar. 

Não obstante, por saber tratar-se de uma leitura de relevo e, por isso, antecipá-la demorada, marcada, muitas vezes, por idiossincrasias linguísticas e outras dificuldades lexicais, como um linguajar popular ilhéu, bem arredado dos cânones escolarizados e urbanos tradicionais (não raras vezes há de o leitor valer-se do Glossário que encerra a obra), optei, primeiramente, por ler outras obras do autor, destacando-se o «Braço Tatuado» (Publicações Dom Quixote) almejando, dessa forma, a entrada no universo literário do autor, antes de me aventurar neste Raiz Comovida. Tolice minha, confesso! Não me custa adiantar que não haverá o que nos prepare para a leitura deste livro: um verdadeiro tratado da linguagem, revestido por um brilhantismo literário como há muito não lia.

Há neste volume uma verdadeira homenagem, para além de um retrato fiel, a todo aquele mundo rural e açórico de que já poucos terão memória, e refiro-me não apenas à riqueza do linguajar popular das gentes rurais micaelenses, onde o erudito não tinha lugar, mas também, e sobretudo, às imagens sociológica, económica, religiosa, que aqui nos são dadas a conhecer, e que versam temas quotidianos tão díspares como a importância da matança do porco para a economia familiar, as sempre muito curiosas e por vezes bem acesas disputas entre associações musicais vizinhas, os diversos rituais religiosos, muitas vezes esvaziados de Fé, mas sempre vividos com grande fulgor social, não olvidando as curiosas peripécias ocorridas quer em momentos sacros quer em profanos, os namoricos, sejam os permitidos e à janela, sejam aqueles ocultados pela tenacidade de um amor proibido, mas aqui também se alude à emigração, às idas para a América das oportunidades, as que seguiam os trâmites legais, mas também as outras, as fugas “embarcadas de calhau”, a homossexualidade e tantos outros. No fundo, retrata-se a dureza (e por que não dizer miséria?) da jorna, uma constante nos mais diversos meios de subsistência que a ilha tinha à disposição, oferecendo em troca nada mais do que a mísera “côdea de pão”, que, dividida pelos que se sentavam à mesa, mal dava para matar a fome.

Cristóvão de Aguiar oferece-nos, então, um quadro antropológico centrado na ruralidade ilhoa “isolada e empobrecida”, e que se espraia pelas primeiras décadas da segunda metade do século XX, desenhando uns Açores idos, mas cuja história convém conhecer, pelo que, em boa hora, a Edições Afrontamento eternizou, por ocasião dos cinquenta anos de vida literário do autor, toda a sua obra em diversos volumes.

Quando se fala de Cristóvão de Aguiar torna-se frequente a referência a sua forma complexa de ser e de se relacionar com os outros, menção compensada, de imediato, pelos rasgados elogios à qualidade da sua escrita. Miguel Real (conceituado crítico literário), por exemplo, assume dificuldade para discernir qual das obras literárias pode ser considerada a mais importante obra romanesca açoriana pós-25 de Abril de 1974, se a trilogia de «Raiz Comovida», se o volume singular de «Gente Feliz Com Lágrimas», do virtuoso escritor João de Melo, sendo que não alcançando resposta que o satisfaça, assume que “são duas obras que enfileiram na galeria dos grandes romances da história literária portuguesa do século XX.”

Conquanto não possa invocar as “razões afetivas” que outros moveram até ao apelo à leitura, posso, todavia, concordar com esses quando o adjetivam de “magistral” e o classificam como uma “referência inestimável”, porque, em boa verdade, é disso mesmo que falamos. 

Cristóvão de Aguiar nasceu no Pico da Pedra, na ilha de São Miguel, onde iniciou a sua formação académica, tendo depois ingressado na Universidade de Coimbra, onde frequentou o Curso de Filologia Germânica, interrompido pela mobilização para a Guerra Colonial, tendo prestado serviço na Guiné. Finda essa campanha militar, regressa a Coimbra, terminando os seus estudos e encetando um período profícuo em termos literários e profissionais. Ao longo dos anos, ganhou diversos prémios, tendo sido agraciado com o grau de comendador da Ordem do Infante Dom Henrique, pelo então Senhor Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio.

Sobre este autor, escreveu Luis Fagundes Duarte: “[…] o escritor que até hoje melhor conseguiu seguir os rastos daquela esteira de pó, desenhada pelos mortos e outras ausências, que define o percurso da tradição cultural que nos identifica como membros de uma comunidade - a comunidade açoriana.” 


Atrevo-me a deixar um estímulo à leitura, na esperança de que outros se possam sentir impelidos a ler esta maravilha da literatura açoriana.

“24 - Namoros de Janela Baixa

No tocante às raparigas casadoiras, era demais tamanha aperreação; pareciam freiras arrochadas no convento da casa; tudo quanto passa das marcas não dá muito certo; já lá diziam os antigos, com alguma razão, quem muito aperta, pouco arrocha; aperreadas dentro de quatro paredes durante dia e noite, só tinham licença de aparecer um nico à janela nas tardes pasmadas dos domingos e dias santos e, mesmo assim, nada de rédea solta, que as coriscas das mães eram umas cegonas, sempre de olho arregalado e nariz empinado, a farejar se havia mouro na costa, não fosse algum mais manhoso comer-lhe a filha de longe com olhares cobiçosos ou dar-lhe umas palavrinhas de boca pequena; mas a Divina Providência não se deixa dormir, e não há pior semente do que a da língua; o Ti Clemente Bufão tinha duas filhas gémeas, duas belas fêmeas, e o pai “gavava-se” de que não havia nenhum “fideputa” que se consolasse de as namorar e desfrutar, isto porque de uma vez bispou um fralda cagada qualquer rondando-lhe a casa, e o rapaz não era nenhuma peste, mas o Ti Clemente achava lá na sua que nenhuma das filhas regia para ele; vai daí, ao chegar ao fundamento de que o rapaz andava mesmo arrastando a asa lá pelas suas bandas, pregou as janelas da frente, e nenhuma das raparigas se podia chegar a elas; com as janelas pregadas a sete pregos, o Ti Clemente julgava que não podia haver mais dúvidas quanto a malícias de olhos ou falas de boca pequena entre eles; enganou-se redondamente; nunca mais houve, na verdade, a mais pequenina pitada de olhares trocados nem arreganho meiguiceiro de dentes; estava o Ti Clemente mui descansado e satisfeito com o seu tèsto proceder, quando, um belo dia, a mulher lhe veio dar a saber que ambas as filhas estavam cheias como vacas quase a parir; e mais, estavam pejadas do mesmo candeeiro de folheta, “inté” se dizia, por pilhéria, que uma delas estava de barriga do Divino Espírito Santo e o certo é que um dos “chinchins” ficou mesmo com o apelido de Menino Jesus; o Ti Clemente não queria acreditar no que ouvia à mulher e subiu aos arames da ruindade; ficou de cabeça desarrematada, queria à fina força pôr uma demanda em tribunal, mas, vendo que pouco ou nada amanhava, a não ser consumição e falatório ainda mais grande, pois o rapaz devia casamento às duas e só com uma se podia casar; com o desgosto, pegou o Ti Clemente em si e embarcou para a terra da América; uma das gémeas casou mais tarde com o rapaz que a tinha enganado, os pequenos tratavam-se por irmãos, chegando a zoar pela freguesia que aquilo era uma noite com uma e outra com a outra, o jogo da vez e outra, como no do pião - uma grande escândula que aconteceu na freguesia e neste ponto dou razão aos antigos quando diziam que quem muito aperta, pouco arrocha; se as raparigas tinham derriço que principiava nas festas do Divino ou nas da Senhora da Boa Viagem, penavam os olhos da cara para darem dois dedos de conversa com o noivo, que andava numa arredouça, para baixo e para cima, ou, “intance”, se as pernas pediam descanso, ia servindo de espeque a alguma parede ali ao pé, na mira de uma ocasião mais coisa e tal para despejar a saquinha dos sentimentos; as mais das vezes, era trabalho botado ao vento, e o rapaz ficava mais brabo que o mar das Calhetas, quando, por riba, lhe sopra o mata-vacas e não havia outro remédio senão esperar com paciência pelo Domingo que vinha […].” (págs. 129, 130)

A terminar, e porque já longa vai a prosa, talvez não fosse descabido, um olhar um pouco mais acutilante por parte da Secretaria Regional da Educação e dos Assuntos Culturais sobre estas pessoas que, através do seu trabalho, reconhecido virtuosismo e talento, para além de um assinalável comprometimento que já vem de longe, souberam eternizar cabalmente o que é isto de se ser açoriano. Nesse sentido, parece-nos imperioso, que sejamos um pouco mais arrojados, e sobretudo mais ecléticos, e tenhamos a coragem de conceder atenção à literatura de qualidade, atempando esse reconhecimento, para que possa ser celebrado condignamente: Não nos causaria quaisquer pruridos ver o nome de Daniel de Sá como patrono da EBI da Maia, assim como o de Cristóvão de Aguiar na da Ribeira Grande ou de João de Melo na do Nordeste, como aliás já acontece em outras unidades orgânicas de região. Entre outros, Dias de Melo e Vasco Pereira da Costa merecem, há muito, uma reedição dos seus belíssimos contos, sob pena de caírem no olvido coletivo; Pedro da Silveira, Emanuel Félix e Marcolino Candeias são relembrados quase exclusivamente pela iniciativa privada, e que atingem um público muito reduzido. Relembro, ainda, Fernando Aires, o expoente mais cintilante da diarística nos Açores e um dos melhores do país, e não tenho conhecimento de quaisquer iniciativas governamentais, no sentido de eternizar a obra e relembrar o homem. Houve o descerrar de uma placa em sua residência, mas a cargo da família e, apenas mais tarde, uma outra da responsabilidade da autarquia. Embora abra espaço a informação que me possa ter escapado, não obstante as diligências tomadas, parece-me francamente pouco, para retribuir o tanto que o autor nos deixou. Não haverá, nas nossas escolas, leitores interessados em ler os seus diferentes diários? Que se dissemine a obra. E os virtuosos Urbano Bettencourt ou Emanuel Jorge Botelho, em que têm contribuído os responsáveis governativos no sentido de prestar o justo tributo, ou, pelo menos, legitimamente reconhecer os tão profícuos trabalhos que têm desenvolvido ao longo de décadas, seja resgatando do esquecimento nomes que merecem um pouco mais de atenção, seja pela proficiente obra que ambos têm vindo a desenvolver. 

Há aqueles que, não residindo em território arquipelágico, muito se têm batido pelos Açores e pelas suas gentes, seja no Continente, seja na Diáspora, carregando muito da nossa terra até aos novos mundos, dando a conhecer, ensinando, incorporando os Açores e as vivências açorianas na mundividência alargada que se exige aos novos habitantes destes novos mundos. 

Eu corroboro aquela máxima que garante que a génese de um povo reside na sua cultura, pelo que descredibilizá-la será, em última instância, desvirtuar toda a história desse povo, lançando-o a um deus-dará cultural, e substancialmente pernicioso. Estou certo de que não será a pretensão deste elenco governativo, que já mostrou bastas vezes ser capaz de tratar a Cultura com o cuidado que se impõe, por isso, é da mais inteira justeza olhar para estas pessoas e para o seu trabalho, procurando dignificar umas e outro, conforme é seu legítimo merecimento, pelo tanto que nos têm dado.

Cristóvão de Aguiar, «Raiz Comovida», Edições Afrontamento, 2015

terça-feira, 1 de agosto de 2023

A MONTANHA COBRIU-SE DE LAVA E OUTRAS ESTÓRIAS


O professor Carlos Fagundes, florentino de nascença, apaixonado pela ilha do Pico e desde há muito radicado em Paredes, concelho nortenho de Portugal Continental, lançou recentemente o seu segundo livro, intitulado «A Montanha Cobriu-se de Lava e Outras Estórias», um conjunto de narrativas que têm o Pico como chão da sua ação. É inegável a riqueza do trabalho que o autor tem vindo a desenvolver no âmbito cultural, antropológico e até de índole histórico, direcionando-nos o olhar e a atenção para factos, vivências ou eventos de crucial importância, mas que, por algum motivo, tombaram na escuridão do esquecimento. Se com «Entre o Mar e a Rocha» – o seu primeiro livro – o tinha conseguido, a verdade é que não desapontou e nesta segunda incursão pela narrativa curta conseguiu manter a divícia da sua prosa, a fineza vocabular, a vivacidade narrativa e o interesse geral, captando a atenção do leitor desde a primeira à última estória narradas. 

Como acontecera com o seu antecessor, neste volume, o autor dá a conhecer uns Açores substancialmente diferentes dos que hoje se assumem como expoente turístico nacional e europeu. Em cada estória é aberta uma janela para um passado não muito distante – décadas 60 e 70 do Século XX –, mas, felizmente para todos, consideravelmente diferente da realidade em que hoje vivemos. Sem que com isso se procure quaisquer alusões políticas, será caso para sublinhar o tanto que evoluímos em tão pouco tempo. 

O título que empresta nome ao livro é o mesmo da narrativa de abertura, e recupera a crise sismovulcânica ocorrida no Pico, no início do Século XVIII, assim como a peste bubónica que afetou o Faial pela mesma altura. Uma vez mais, o autor parte de uma forte componente histórica para desenvolver as suas narrativas, intercalando eventos factuais com a necessária componente ficcional, criando, dessa forma, um ambiente de verosimilhança que, entre outros, capta a atenção do leitor.

Como foi já apontado por outros leitores, há no livro uma narrativa que se destaca das demais, não apenas por extravasar o universo picoense mas, sobretudo, por se assumir com premissas e qualidade suficientes para algo de maior monta: a viagem de um petiz a bordo do vetusto “Carvalho Araújo”, desde a ilha das Flores até São Miguel, onde viria a prosseguir estudos, ingressando no Seminário Menor de Santo Cristo. Esta narrativa nasce da memória do próprio autor, que realizou esta mesma viagem e a descreve com admirável minúcia, oferecendo-nos um relato tão preciso e impressionante que ninguém ousaria afirmar tratar-se de uma memória com mais de cinquenta anos. Nessa medida, seria muito conveniente eternizar este período tão interessante numa outra obra, eventualmente um romance ou mesmo um livro de memórias.

Permitindo-nos uma pequena deriva, tem sido muito interessante verificar em conversas ou em leituras diversas, a forma como diferentes autores açorianos (Professor Carlos Fagundes incluído) se referem ao “Carvalho Araújo” e às suas viagens. Descrevem-nas sempre como muito difíceis, salientando, particularmente, o tempo despendido em cada viagem, assim como as recorrentes dificuldades gástricas, mas fazem-no sempre com muito enlevo, detalhe e até com um notório resquício de saudade. Tenhamos presente a importância que o velho paquete trazia à vida das pessoas e à economia açoriana e madeirense, em geral, justificando-se, talvez por isso, um certo romantismo em torno destas travessias atlânticas, fossem abordo desta ou de outras embarcações da “Empresa Insulana de Navegação”. 

A riqueza desta obra não se esgota no que fica dito, passando também pelo detalhe e subtileza com que o autor se muniu para caracterizar o povo português e açoriano, em particular. Assuntos triviais da vida quotidiana e outros de maior relevo histórico são tratados com delicadeza e aparente simplicidade, o que, já sabemos, é de dificílima execução. Por entre estas páginas há muito daquilo que nos faz portugueses açorianos, desde logo a capacidade de reação perante as adversidades resultantes das diferentes calamidades naturais que recorrentemente nos assolam, assim como o humanismo e a generosidade daqueles que, mesmo de parcos recursos, não hesitam no momento de disponibilizar o pouco de que dispõem ante miséria do vizinho, ou mesmo do desconhecido. Outra das características transversais a muitos destes textos é o recurso ao sentido de humor, mesmo naquelas situações que se revestem de risco e perigosidade. 

Como escreveu Manuel Serpa no interessante prefácio que abre a obra, “É sempre com redobrada expetativa que acolhemos as novas iniciativas literárias do Carlos Fagundes”, que tem trilhado um percurso em crescendo, pautado pelo brilho da qualidade literária e revestido de um enorme interesse sociocultural. É muito importante que haja quem se disponha a eternizar modos de vida, usos e costumes idos que, de outra forma, cairiam miseravelmente no olvido, perdendo-se, assim, muito daquilo do que fomos e do que está na génese do que hoje somos. Quando encontramos quem o faça, com a vantagem de o fazer com mestria literária, cabe-nos, naturalmente, agradecer e, com ânsia assumida, esperar pela obra que se seguirá.

Carlos Fagundes, «A Montanha Cobriu-se de Lava e Outras Estórias», Letras Lavadas edições, 2023  

quarta-feira, 5 de julho de 2023

Prosas Às Quartas


Num olhar mais ou menos atento sobre o panorama literário açoriano, torna-se impossível ficar indiferente ao número e à qualidade de iniciativas que visam a promoção da leitura, da escrita e do livro, de uma maneira geral. É um claro motivo de orgulho, parecendo-nos muito salutar esta vontade de assumir um dinamismo que, cremos, não encontrará paralelo no resto do país: lançamento de livros, reedições de outros, festivais literários, colóquios, feiras do livro, prémios literários (alguns de âmbito nacional), um Plano Regional de Leitura próprio (embora em vivência de um período mais ou menos letárgico), os modernos BookToks, a recuperação das vetustas bibliotecas itinerantes ou os Clubes de Leitura que pululam são alguns dos bons exemplos. Em uníssono, estas atividades têm redundado em relatos otimistas, dando conta do aumento do número de vendas, que se espera, se traduza num efetivo aumento do número de leitores.

Para além do que fica dito, esta temporada literária ficará marcada, ainda, pela dinamização de alguns cursos de escrita criativa, uma atividade que, não sendo muito usual entre nós, pelo menos enquanto atividade aberta ao público em geral, apresenta um conjunto de mais-valias muito interessante, desde logo, o desenvolvimento de competências de escrita: a qualidade textual, as estruturas e microestruturas textuais específicas de cada género, para além do normal desenvolvimento vocabular e de técnicas narrativas.

Ora, um desses cursos foi o coordenado pela professora Paula de Sousa Lima, reconhecida escritora açoriana que, munida do seu pragmatismo habitual, o tornou público em setembro último: “Amigos, vou dar, na Escola Secundária das Laranjeiras, um Curso de Escrita Criativa. Decorrerá uma vez por semana, em horário a combinar, e é gratuito. Podem inscrever-se na Escola. Aguardo-vos.” A este apelo responderam cinco pessoas, Carla Couto, Isabel Silva, Margarida Viveiros, Sofia Estrela e Vera Cymbron.

Segundo palavras da própria coordenadora, “a literatura não se pode ensinar”, pelo que foi o amor que todas lhe dedicam que as levou até àquele espaço de partilha, a cada quarta-feira, e durante todo este ano letivo que agora termina. Tendo optado pelo modo narrativo como base do Curso, houve trabalho no âmbito de diversas modalidades textuais, que se estenderam desde a “descrição, ao diálogo, a reflexão…”, e que resultaram numa expressão de enorme talento, com a criação de textos de qualidade reconhecida, por parte de todas as intervenientes.

Chegadas ao final do ano letivo, e dada a qualidade e consistência apresentadas, considerou a Coordenadora não ser “legítimo […] deixar os textos delas votados ao olvido na penumbra do (seu) computador”, e, em boa hora, se decidiu pela publicação deste volume, que granjeou o nome de Prosas Às Quartas, (um nome que assenta na perfeição) por ser tão difícil a escolha de outro, considerando a diversidade textual que ali vem expressa.

Pese embora a heterogeneidade apresentada, há no Humanismo um denominador comum. Torna-se frequente ler sobre a condição humana e as inter-relações que se vão criando ao longo da existência, para além das vicissitudes típicas entre personagens que são mais ou menos próximas: expiação, doença, casamentos, relação entre pais e filhos, a força e a fraqueza humanas, mas também a sexualidade, a saudade, a coragem. Embora a civilidade sugira o contrário, até porque é notória a qualidade em qualquer um dos textos apresentados pelas cinco autoras, não há como deixar de sublinhar e enaltecer – até – a forma extremamente bela e claramente talentosa como se optou por encerrar este volume. Foi uma agradabilíssima surpresa, o corolário de muito talento, e de quem se exige mais e mais.

Às escritoras que aqui se apresentam, muitos parabéns pelo trabalho desenvolvido e pelo arrojo e qualidade com que cunharam os textos agora editados. Há que manter essa chama viva e continuar a escrever, colocando em prática todas as sugestões que terão recebido ao longo de todos estes meses. À Coordenadora deste projeto, muitos parabéns pelo dinamismo e persistência, por todo esse amor à língua portuguesa e pelos constantes e elevados contributos com que tem engrandecido a nossa Literatura.

Vários (Coordenação de Paula de Sousa Lima), Prosas Às Quartas, Letras Lavadas edições, 2023

quarta-feira, 28 de junho de 2023

HUMOR EM MARTINS GARCIA: CONDUTOR NUMA VIAGEM AO PASSADO.


Aqueles encontros matinais enchiam-me as quartas-feiras de ânimo e o espírito de perguntas. Era inevitável, sempre que nos despedíamos e me dirigia ao carro, seguia em meditativo silêncio, de mente a transbordar questões, ideias e novas perspetivas sobre muitos dos assuntos que colocávamos na agenda, à medida que a naturalidade da conversa fluía, e isto sempre embalados pelo marulhar das ondas que nos vigiavam de perto. É a confirmação da sabedoria paterna, que sempre me inculcou a ideia de que aprendemos muito mais com aqueles que sabem muito mais do que nós. La Palisse?, pois, de certo, mas, convenhamos, nem sempre é fácil interagir com uma mente brilhante como é a do meu amigo e, apenas a afeição que ele me dispensa, me permite estar à vontade, sem grandes receios de dizer uma qualquer banalidade.

Desta vez, partíamos em busca da discussão em torno do humor na literatura açoriana, e depois de aflorarmos os conceitos de sarcasmo e de ironia, assim como possíveis diferenças entre ambos, concluía o meu interlocutor que a ironia é sempre preferível ao sarcasmo, porque pede mais distância. Animava a ideia acrescentando que o sarcástico se encontra demasiado envolvido e emotivo, com fúria e raiva.  Já eu limitava-me a cuidar que era mais fácil apreciar a ironia do que o sarcasmo, já que a noção de sarcasmo implicaria uma ideia de confronto, veiculada num tom mais provocatório. Haveria uma “maldadezinha” por entre o discurso. Já a ironia seria mais branda no seu propósito, teria um fim tendencialmente mais humorístico. Concordámos. Concluímos ainda que o tom inglês (de que ambos gostamos) é claramente mais irónico do que sarcástico. Formulará o leitor as suas próprias impressões, enquanto me penitencio pela deriva ao assunto que nos trouxe a esta crónica: o humor na literatura açoriana.

O nome de José Martins Garcia caiu de chofre sobre a mesa daquele Snack-bar. Estranhei, porque dele, e por via de uma longínqua edição do “Concurso Nacional de Leitura” a que concorreram uns alunos, lera apenas O Medo, e, há uns anos, comprara Os Contos Infernais, todavia, não era pelo humor que me recordava destes títulos. Convém acrescentar que o meu interlocutor é detentor uma memória prodigiosa e, de súbito, lança, Pátria, uma belíssima crónica de uma viagem entre França e Portugal, inserida no volume Receitas Para Fritar A Humanidade, para acrescentar logo depois que se referia a um texto revestido de um tom humorístico extraordinário, para além de um sentido crítico muito apurado, especialmente quando Martins Garcia se propôs mostrar idiossincrasias de franceses, espanhóis e portugueses. Ao perceber o meu crescente interesse, elucidou-me, acrescentando tratar-se do relato de uma viagem de autocarro, feita pelo autor, desde Paris até Lisboa, sempre acompanhado por um conjunto de emigrantes que, à medida que avançavam os quilómetros, lá se iam revelando numa graça muito bem captada pelo autor açoriano.

Sem nada mais aditar, vejo-o a tomar notas, garantindo que me faria chegar o texto e o humor do autor que tão bem conhecera.

Confesso que não tive tempo de abrir a porta de casa e já o telemóvel denunciava a diligência do meu amigo. Já se encontrava na minha caixa de correio eletrónico não apenas a sua simpatia e amizade, mas também uma digitalização do texto prometido, com direito a capa, contracapa, folha de dados e o desejo de umas boas gargalhadas.

Considerando que só se deve agradecer um livro após a sua leitura, e terminada horas depois a de Pátria, coube-me agradecer-lhe o envio, mas fi-lo efusivamente, porque, para além de ter encontrado o humor que prometera, permitiu-me também uma agradabilíssima viagem no tempo, até às minhas raízes nortenhas. Praticamente toda a minha família materna emigrou para França a partir da década de 60 do século passado e, enquanto não amealharam o suficiente para mercar um carrito, faziam a viagem de férias e de regresso à terra em furgonetas de passageiros, similares à icónica Volkswagen “Pão de Forma”. Facto curioso, as condições descritas por eles a cada ano ganharam réplica ao longo da leitura do texto de Martins Garcia, pese embora a viagem dos meus fosse efetuada em modo “voo direto, sem direito a quaisquer transfers”. Que maravilha. Assim que nos apercebíamos de que a carrinha do “Neca” - assim se chamava o senhor dos fretes - arribava, era uma algazarra em direção ao largo, mesmo ao cimo da nossa rua, e depois continuava em direção à casa da minha avó, onde ficavam instalados esses familiares.

Com a ingenuidade de uma meninice saudosa, ansiávamos que se tivessem lembrado de nós e nos trouxessem um binquedinho lá de França, se possível daqueles que não se viam por terras lusas, ou, em alternativa, alguma peça de roupa de uma qualquer marca conceituada: Adidas ou Le Coq Sportif estavam no topo da lista de preferências. Esperávamos também que a generosidade deles se fizesse acompanhar de uns caramelos espanhóis, mas, para tal, foi-nos dito que era preciso que o Neca estivesse de boa catadura e parasse a furgoneta na cidade certa, no lado de lá da fronteira.

Estou convicto de que o sentimento que nos preenchia o coração nesses anos de infância, não há de ser muito diferente daquele sentido no espírito da criançada açoriana, assim que corria a notícia da chegada de um barril d’América. Hei de perguntar isso mesmo ao meu amigo, na próxima quarta-feira, ele que há de ter ouvido bastos relatos a propósito.

Da crónica de Martins Garcia nada mais acrescento, mas convido-vos a lê-la com especial atenção, é que, para além de umas valentes risadas, ainda vos pode calhar em sorte uma viagem no tempo, completamente “à pala” e sem um Neca para chatear!

📷https://www.razaoautomovel.com


(Diário dos Açores, 28 de junho de 2023)

terça-feira, 27 de junho de 2023

MANUAIS DIGITAIS: SIM OU NÃO?


Chegados ao final do ano letivo, impõe-se um balanço à opção tomada pela Tutela e que determinou o uso dos manuais digitais, nas turmas de quinto e oitavo anos de escolaridade, nas escolas da Região.

Confesso que suspeitei dos benefícios pedagógicos que esta opção prometia logo desde o início deste processo. Mesmo antes de efetuar formação especializada com pessoal qualificado, era possível antecipar muitos dos problemas que, neste momento, se verificam, e que, inevitavelmente, condicionaram as avaliações finais destes alunos.

Concordo que à escola caiba um papel fundamental na preparação do indivíduo para a digitalização que se operacionaliza na sociedade atual, mas creio também que ela (a escola) não se deve reduzir a isso, nem que essa preparação possa colocar em causa o progresso harmonioso de determinadas competências, tidas como fundamentais para o desenvolvimento integral do indivíduo.

Considerando que, por tantas vezes, os países do norte da Europa são tomados como exemplo, veja-se o desconforto do Ministério da Educação sueco ante a digitalização na escola, chegando mesmo a Senhora Ministra da Educação a afirmar que nenhum «tablet» pode substituir as vantagens de um livro. Aliás, foram um pouco mais longe, e solicitaram relatórios técnicos a 60 especialistas (!) na matéria, sendo que todas as organizações envolvidas chegaram à mesma conclusão: “Todos os estudos sobre o cérebro das crianças mostram que elas não beneficiam com o ensino baseado em ecrãs”.

Por cá, e tanto quanto pudemos ler na comunicação social açoriana (Açoriano Oriental de 13 de junho de 2023), está o Tribunal de Contas a verificar a eficácia material e financeira da implementação destes Manuais Escolares Digitais e, quanto a essa vertente, nada me apraz acrescentar, por representar algo que me transcende, todavia, na mesma notícia, cita-se a Senhora Secretária Regional da Educação e dos Assuntos Culturais, que afirma que “Em termos de resultados educativos, ainda é muito prematuro nós podermos fazer essa aferição”.

Estou longe de me assumir contra a digitalização, e mais ainda contra a mudança de paradigmas, não sou extremista ao ponto de pedir que se extingam os «tablet» ou outros dispositivos dentro da sala de aula. Quando bem utilizados, são úteis e isso é irrefutável. Todavia, o que me pareceu extemporâneo e muito perigoso foi a retirada imediata dos manuais escolares das salas de aula. Lamentavelmente, houve alunos que, este ano letivo, raramente tocaram um livro e lê-lo, enfim… Deixou de se sentir as páginas e o cheiro do livro.

O recurso exclusivo a «tablet» ou computadores potencia a falta de atenção e concentração, advindas, não apenas das incontáveis funcionalidades que a máquina possui, mas também das constantes notificações, barulhos, falta de bateria ou outros, que a dita emite. Pelo contrário, nos manuais físicos essa interrupção é residual, aumentando inversamente o tempo e a qualidade da atenção e concentração, que redundam, naturalmente, numa maior retenção de informação e consequente produção de conhecimento. Num breve esforço, recordemos os motivos que estiveram na base da opção pelas aulas assíncronas, aquando dos sucessivos confinamentos a que os nossos alunos estiveram sujeitos. Se me recordo, na altura, garantia-se que a exposição excessiva dos miúdos aos ecrãs era muito cansativa e perniciosa e, por isso, muito menos proveitosa e recomendável. Minimizaram-se esses problemas recorrendo à assincronia das aulas.

Embora me tenham chegado inúmeros relatos de colegas de outras áreas, não quero generalizar, mas no que à lecionação das áreas curriculares disciplinares de Português e Inglês concerne, e concretamente em momentos de leitura, os alunos revelaram mais cansaço e mais dificuldades de acompanhamento da leitura em voz alta, comparativamente com o mesmo exercício em manual físico. Dizem-me que noutras áreas também foi assim, concretamente na leitura e compreensão de enunciados escritos. Depois, e reportando-me somente aos mais pequenos, tiveram sempre muitas dificuldades em articular a leitura com o modo de «Zoom», tantas vezes necessário, dadas as dificuldades de visualização do próprio texto.

Passada a euforia inicial de ter um «tablet», pela primeira vez, houve alunos que desmotivaram logo à segunda semana: demoravam a encontrar a página correta ou o exercício a realizar; o seu equipamento não permitia determinada funcionalidade ou não lia determinado tipo de ficheiro que era lido pelo do colega do lado; houve o constantemente o problema da falta de bateria, o que, parecendo que não, prejudicou sobremodo o aluno, que, naquela aula, não conseguiu acompanhar o lecionado, nem mesmo olhando para o do colega do lado; houve os problemas recorrentes com a rede, seja em casa ou mesmo na escola, o que impossibilitou totalmente o seu uso; recordo o lamentável processo de redação no próprio manual, com recurso à caneta digital, que foi verdadeiramente anedótico, pelo que, em pouco tempo, os alunos deixaram de usar esta forma de escrita, optando pelo registo das respostas nos seus cadernos diários.

Tenhamos presente que os alunos do 5.º ano são crianças de dez ou onze anos e não têm desenvolvidas competências, dentre as quais a autonomia, para o manuseio desta máquina, e em casa, o problema agudiza-se, por não terem quem os acompanhe condignamente. É certo que à escola cabe ministrar essa aprendizagem, mas não substituindo o livro pelo «tablet» ou computador. Permitam-me a comparação, mas não é durante a batalha que se ensina a manusear a arma.

Que coexistam máquina e livro. A favor da tecnologia, podemos falar de sustentabilidade, da comodidade, da personalização ou da acessibilidade, pelo que o ideal era mesmo que coexistissem, num complemento harmonioso.

A bem das aprendizagens dos alunos, esta não foi uma medida prudente e, considerando a realidade com que trabalho, não sou o único a pensar dessa forma. Note-se que, ao longo do ano letivo, recebi várias solicitações de pais e encarregados de educação para que os seus educandos passassem a utilizar os manuais físicos, em detrimento dos manuais digitais. Invariavelmente, respondi que o «tablet» era obrigatório, sob pena de não cumprirem com aquilo a que se propuseram aquando do início de ano letivo. Todavia, houve casos em que permiti que os discentes trouxessem os dois suportes para as aulas, sendo que os relatos desses pais, garantiam que as aprendizagens dos seus educandos haviam melhorado a partir desse ponto. Eu, enquanto professor desses alunos, atesto a veracidade do que os seus pais afirmaram. Ademais, houve outros pais e encarregados de educação que, na semana passada, durante o momento da entrega das avaliações finais, solicitaram que, no próximo ano letivo, os seus educandos não tivessem os «tablet», ao que lhes respondi que se deveriam dirigir ao Conselho Executivo da Unidade Orgânica e que lá apresentassem as suas exigências, uma vez que essa decisão extravasava as minhas competências. Sei de alguns que o fizeram.

Recolhidas as opiniões dos vários Departamentos Curriculares da minha escola, redigimos um documento onde manifestámos profunda preocupação com todas estas questões, sendo que, até à data, não obtivemos quaisquer respostas. Por outro lado, em diálogo com os colegas de profissão de outras unidades orgânicas, não encontrei ainda um que me garantisse preferir o digital sobre o manual físico, pelo que estou expectante para ver o que acontece no próximo ano letivo.

Sei de antemão que os recursos são finitos e que a utopia da opção por ambos os suportes será incomportável, todavia, oxalá nunca se olvide aquela máxima que garante que os gastos em educação são sempre um investimento e nunca uma despesa; oxalá se devolva o manual às salas de aula, oxalá se devolva o livro aos nossos alunos.

📷 https://www.alagoinhashoje.com

sexta-feira, 23 de junho de 2023

JÉNIFER, OU A PRINCESA DA FRANÇA As Ilhas (Realmente) Desconhecidas


Este é um livro diferente. Em boa verdade, não é apenas um livro, assume-se também como uma fotografia; um fidelíssimo retrato do pobre estado em que todos nos encontramos, sim, porque este é um desígnio comum, um problema que nos diz respeito a todos, e pelo qual todos devemos assumir responsabilidade.

 A cada página, um esmurrar de estômago pelo confronto com aquilo que, efetivamente, é a realidade de tantos açorianos. Por trabalhar há muitos anos (talvez há demasiados) numa zona arredada dos grandes centros urbanos e culturais, assumo com relativa segurança que, o que nos é dado a ver nas urbes açorianas, Ponta Delgada, Lagoa, Ribeira Grande, Angra do Heroísmo, Praia da Vitória ou Horta, está longe, bem longe da realidade e das verdadeiras condições de vida de grande parte (quiçá, a maior parte) dos açorianos. E é pena que assim seja, e mais ainda que não se vislumbrem alterações significativas nos anos vindouros. 

A ação deste texto ocorre na ilha Terceira e de Jesus Cristo, mas foi com relativa facilidade que, através desta leitura, calcorreei ruas e percorri bairros em São Miguel. Vi micaelenses com os quais interajo quotidianamente a fazerem exatamente o que fazem todos os dias, e questionei-me sobre como poderia o autor discorrer sobre  aquilo. É triste e deveras preocupante a facilidade com que se replica esta pesarosa narrativa por tantos espaços, talvez até pelos nove que compõem o arquipélago, mas, por não os conhecer a todos, não posso ousar a generalização.

Ao longo das últimas duas décadas, e a cada ano letivo, invariavelmente, tanto eu, como qualquer um dos meus colegas, temos duas ou três “Jénifers” dentro das nossas salas de aula. Entram atrasadas, vêm mudas e sentam-se na secretária do fundo. Chegam sempre com muito sono. Nunca querem estudar e motivá-las para quaisquer atividades escolares nunca é tarefa fácil. E os motivos? Bem, em boa verdade, todos os conhecemos.

Por há muito ser assim, oxalá não falte ânimo nem virtude ao escritor, para que a denúncia possa voar um pouco mais alto e se oiça um pouco melhor. Que continue a trazer à lupa do mediatismo a pobreza em que os Açores estão mergulhados.

Joel Neto, «Jénifer, ou a Princesa da França As Ilhas (Realmente) Desconhecidas», Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2023


segunda-feira, 12 de junho de 2023

CHÁ NOS AÇORES UMA TARDE NA GORREANA



Nunca é demais difundir e valorizar o património cultural de uma região, sobretudo se essa ocupar um lugar na cauda de quase todos os índices de desenvolvimento humano. Contribuir para o aperfeiçoamento da democracia cultural deve ser um desígnio cívico claramente assumido e, por nada, nos devemos alhear dele, sob pena de contribuirmos para o embrutecimento dos espíritos, já tão apoucados pelo uso excessivo de redes sociais e consequente consumo de informação de qualidade duvidosa.

Foi com este intento que, num fim de tarde primaveril, na vetusta, mas sempre muito estimada, Fábrica de Chá Gorreana (1883), foi lançado o livro «Chá Nos Açores Uma Tarde Na Gorreana», da responsabilidade da Araucária, uma editora que se tem afirmado nos Açores e em São Miguel, em particular pela qualidade que empresta aos livros com que trabalha. É digna de realce a forma como é tratado cada livro, olhado sempre como peça una e, por isso, valiosa, que importa mimar desde a sua conceção até ao ponto de venda. De facto, existem ainda editores nos Açores que trabalham com garbo, apontando o fito à qualidade daquilo que apresentam. Note-se que esta é a mesma editora de «Laudalino da Ponte Pacheco 1963-1975», uma obra singular, muito aclamada pelo público-leitor e muito bem acolhida pela crítica regional e nacional; um livro muito bonito, rico, um verdadeiro sucesso cultural, que, tal como este agora lançado, almeja elevar desde as profundezas do esquecimento ou pelo menos da memória de uns poucos, as velhas usanças e comportamentos sociais e económicos de um passado não tão longínquo, procurando resgatá-lo até aos nossos dias, difundindo-o por todos quantos se preocupem com o futuro.

Em simbiose perfeita, a elevada qualidade do texto, entremeando ficção com factos históricos, sociais, geográficos e económicos, da responsabilidade de Maria Emanuel Albergaria, aliada à exuberância e inegável riqueza da imagem (sobrecapa incluída), da autoria de Mariana Rio, unem-se para dar a conhecer a um público mais jovem a origem do chá na ilha de São Miguel. Esta associação recíproca entre palavra e imagem eleva-se a tal qualidade que se torna completamente impossível afirmar se será a imagem ilustrar o texto, ou se será o texto legendar o desenho. Em boa verdade, não é que haja grande interesse em perceber isso, uma vez que, ao apreciar o conjunto, uma vai complementando a outra, sem que se sinta a necessidade de perceber qual a prevalecente e qual a suplementar. Unem-se ao serviço dos mais novos, proporcionando momentos de agradável leitura sensorial.

Num registo cuidado, mas percetível à literacia dos mais petizes, é abordada a proveniência do chá, assim como quais foram os  principais impulsionadores e razões que sustentaram a busca por novas formas de negócio; são levantadas questões sobre a forma de cultivo, havendo mesmo uma pequena deriva até aos antecedentes que marcaram a introdução da planta no arquipélago, reportando-se a autora aos finais do século XVIII e à primeira metade do século XIX, elucidando o jovem leitor sobre aquele que ficou conhecido na história dos Açores como “Ciclo da Laranja”, sem olvidar, claro está, a importância económica e a influência cultural que os ingleses tiveram sobre os açorianos. 

Para além do texto e das ilustrações anteriormente mencionados, faz parte ainda deste «Chá Nos Açores Uma Tarde Na Gorreana» um interessante número de fotografias que percorre a história das gerações que fizeram daquela fábrica o que ela representa atualmente. Além disso, este conjunto dilata sobremaneira a importância documental de todo o volume, permitindo novas formas de granjear informação. Adite-se que houve ainda o cuidado de legendar e datar cada fotografia, conferindo ao leitor a possibilidade de visualização pictórica daquilo que vai retendo ao longo da leitura. Outro detalhe que capta a atenção do leitor é o tratamento dado às notas de rodapé, que deixam de o ser, uma vez que, habilmente e servindo-se da excelência da conceção gráfica, as mesmas surgem como que integradas no próprio texto, fazendo com o jovem leitor as procure, ao invés (como é habitual) de as evitar.

Este será um volume que, a par de outros, como «O Barco e o Sonho» de Manuel Ferreira, adaptado por Sandra Bairos, ou «Mandem Saudades», de Mário Augusto facilmente poderão integrar o conjunto de obras a trabalhar nas escolas, no âmbito da disciplina de História Geografia e Cultura dos Açores, tal a riqueza nele existente, mormente no que aos aspetos culturais concerne.

A terminar, sublinhamos o repto, reiterado por muitos, lembrando que seria muito interessante reunir apoios na persecução da tradução da obra para língua inglesa, não apenas atendendo ao elevado número de turistas que nos visitam, mas, sobretudo, considerando a aproximação emocional de toda a diáspora açoriana à exploração do chá na ilha de São Miguel e àquela fábrica , em particular.

Maria Emanuel Albergaria, «Chá Nos Açores Uma Tarde Na Gorreana», Araucária, 2023

#livrosecoisasdessas

sábado, 27 de maio de 2023

«COMO UM MARINHEIRO EU PARTIREI – UMA VIAGEM COM JACQUES BREL»

 

Uma viagem aos últimos anos de vida de Brel, à sua passagem pela Horta, à fuga aos holofotes e a tudo o que de mais pernicioso a fama pode transportar: eis o primeiro ancoradouro e talvez o mais evidente dos vários que compõem este livro. Todavia, a riqueza literária não se esgota e vai robustecendo, à medida que se desenham outras escalas, sobretudo aquela que decorre num mapa interior, a viagem ao íntimo, até ao quadrante mais pessoal e mais oculto do narrador e para o qual nenhum azimute o poderá carrear. Neste âmbito e num registo emocionado, somos levados a recordar que escolher é deixar de fora, e que optar, para além de um risco, implica sempre uma perda.

Este é um livro de exceção, que merece ser amplamente lido pelas mais variadas geografias, mas particularmente nos Açores e pelos açorianos, já que é narrado um bom naco da sua história que, possivelmente, será desconhecido da maior parte das pessoas. Ademais, representa uma viagem emocionante que resulta de uma forma de estar e de “viver perigosamente”. É preciso ir ler, “é preciso ir ver”.



Nuno Costa Santos, «Como Um Marinheiro Eu Partirei - Uma Viagem Com Jacques Brel», Penguin, 2023



sexta-feira, 12 de maio de 2023

O BARCO E O SONHO (Agora para os mais novos)



Por estes dias, considerando ainda a comemoração do “Mês do Livro”, dinamizou-se um conjunto de atividades na minha escola, tendo como base o conto açoriano «O Barco e o Sonho», escrito por Manuel Ferreira, no ano de 1970. Os mais velhos recordar-se-ão, com certeza, do sucesso alcançado pela sua primeira edição ou da sua posterior adaptação para televisão, mas, quando questionados, os mais novos pouco ou mesmo nada sabem sobre esta aventura, o que é lamentável, já que ali se encontram muito bem ilustrados a vontade, a força, o arrojo, a tenacidade, no fundo alguns dos traços e valores mais intrínsecos ao Ser português, e ao Ser ilhéu açoriano, em particular, sempre afoito, sempre em busca do garante de uma vida melhor, mais digna, assim a necessidade o dite.



Não sendo original na demanda, parece-me que o estudo deste conto deveria ser encarado, pelo menos, como fundamental no percurso académico dos alunos da região (em Português ou História, Geografia e Cultura dos Açores, por exemplo), por isso, foi com imensa satisfação que tomei conhecimento da existência de uma recente adaptação para crianças e jovens, da responsabilidade da professora mariense Sandra de Sousa Bairos, e muito bem ilustrada por Beatriz Arruda, talentosa "designer" micaelense. 


Não havendo aqui lugar a exageros, falo de uma admirável edição: fresca, atrativa, fiel à façanha vivida pelos destemidos Vítor e Evaristo e, acima de tudo, perfeitamente acessível ao público mais jovem, seriamente arredado destas andanças literárias. 


Esta adaptação chega-nos integrada num projeto mais amplo, "Palavras da Minha Terra", que, harmoniosamente, procura despertar o interesse dos mais novos pelos textos e pelos autores açorianos de qualidade reconhecida. Muitos parabéns aos dinamizadores deste projeto! Oxalá encontrem sempre os apoios de que necessitam e muito obrigado por levá-lo até à Maia e aos nossos alunos.



Manuel Ferreira, «O Barco e o Sonho», adaptado por Sandra Sousa Bairos, Nova Gráfica, 2019

quarta-feira, 10 de maio de 2023

Mãe, Doce Mar

 


«Tinha doze anos quando conheci a minha mãe – esta frase dá para tudo, até para abrir um romance.

E, no meu caso, é verdade.»

João Pinto Coelho, Mãe, Doce Mar

 

Foi ao quarto livro que João Pinto Coelho derivou a sua torrente narrativa de um continente europeu assolado pela perniciosa ambição do nacional-socialismo – ali perpetrada até cerca de meados do século XX, sobretudo sobre o povo judeu –, localizando a ação deste Mãe, Doce Mar, na outra margem deste vasto rio atlântico[i], de onde nos dá conta da história de uma família, que, não conseguindo furtar-se a um destino previamente traçado, trava as suas batalhas até ao surpreendente desfecho da narrativa.

Servido por um plot muito bem idealizado e de uma arquitetura narrativa que o sustenta na perfeição, este romance cruza factos históricos, lendas e espaços mais ou menos icónicos com uma dimensão ficcional assinalável, o que redunda num constante interesse por parte do leitor, que procura – com ânsia, arriscaríamos – as respostas às dúvidas que o narrador vai arremessando ao longo do seu discurso e que, de forma congruente, tarda em responder. Não obstante o sucesso alcançado com os três romances que a este antecederam, a maturidade narrativa do autor é cada vez mais notória, percebendo-se uma tendência de fuga à descrição simples, procurando-se antes criar ambientes e dar a conhecer os factos através da ação das próprias personagens. Assinalável é também o cuidado de fuga ao exagero estrutural, isto é, servindo-se de um tempo múltiplo, que converge depois num só, onde tudo encaixa e faz sentido, poderia o autor ter-se deixado levar, explanando em demasia trechos de um pretérito que, sendo necessários conhecer, não determinam nem diminuem a diegese: chegam na medida exata.

Como antes referido, a Mãe, Doce Mar antecederam três obras de fôlego, granjeando, qualquer uma delas, enorme sucesso junto do público-leitor. Ocupando-se com o padecimento do povo judeu ante inimigos de geografias distintas, mas unidos na nefanda ilusão do extermínio, João Pinto Coelho urdiu narrativas robustas, que assentaram num conhecimento acumulado durante mais de duas décadas de estudo e investigação, sobre a perseguição aos judeus, tendo integrado mesmo duas ações do Conselho da Europa que tiveram lugar nos antigos campos de Auschwitz, iniciativas que contaram com a valorosa contribuição de sobreviventes da Shoa ou Holocausto. Assentar a narrativa no rigor histórico inibe sobremodo a abertura de “brechas por onde se adentrem equívocos ou medrem ambiguidades e imprecisões”, como escrevemos a propósito de A Madrugada em Birkenau, obra de referência no estudo da temática, tendo por base, essencialmente, os testemunhos das vivências de Simone Veil. A este propósito, são públicas e evidentes as controvérsias com aqueles que se ocuparam com a mesma temática, mas tratando-a, segundo o próprio, com graves imprecisões, levando-o a salientar a “ignorância e desfaçatez” desses que assim escreveram. Dir-se-ia, por isso, que João Pinto Coelho corrobora o pensamento de Veil (francesa judia, presa e deportada), procurando nas suas obras perpetuar a ideia de que «[…] não temos o direito de reescrever a história.» Serve-nos esta pequena deriva para evidenciarmos o cuidado com que o autor se mune de informação para posteriormente a trabalhar e redigir texto que seja ao mesmo tempo credível, fidedigno e revestido de qualidade literária. Neste romance, são trazidos ambientes bem conhecidos do autor, pelas temporadas que passou nos Estados Unidos da América, país onde, inclusivamente, trabalhou num teatro profissional, atividade replicada no romance e tratada com notável propriedade, assumindo importante função no desenrolar de toda a trama. Tal como nas obras de Isabel Rio Novo, por exemplo, também nas de João Pinto Coelho é bem evidente o cuidado com que se mune de informação pertinente que depois é colocada ao serviço da credibilidade da própria história.

Embora haja nesta obra, ainda que pontualmente, referências a dificuldades económicas, atravessadas mormente por determinadas instituições (companhias de teatro), perpassa todo o romance uma certa ideia de desafogo financeiro. É aqui retratada também a América das oportunidades, o tempo do Self-Made Man, que dá azo, inclusivamente, a que Frank O’Leary, um padre jesuíta, goze do esforço e do trabalho árduo do pai e não se iniba de circular pelas artérias da cidade ou do campo num peculiar Rolls-Royce, ornado com cores que, não chegando a ser ridículas, não deixam ninguém indiferente. Em Mãe, Doce Mar não são raras as ocasiões onde é possível trazer à memória e até intentar formidáveis paralelismos com o The Great Gatsby, esse texto de referência da literatura americana: não o diremos em termos de crítica à decadência moral e ao consumismo e materialismo desenfreados, como acontece no romance de Fitzgerald, mas sobretudo em termos de recriação de ambientes faustosos, onde a divícia é colocada ao serviço da caracterização.

Se alguns prognosticavam que João Pinto Coelho ficara refém do arrojo evidenciado na sua trilogia dedicada ao padecimento do povo judeu, sobretudo da obra Os Loucos da Rua Mazur, o autor, vencedor do “Prémio Leya”, em 2017, mostra cabalmente que não, provando que os seus interesses não se esgotam naquela matéria, enquanto confirma a sua enorme capacidade de trabalho e competência literária noutras temáticas tão distintas daquela que o trouxeram até às luzes da ribalta literária. Ao longo dos últimos anos, e num amplexo que abrange o mundo, João Pinto Coelho – evidenciando grande capacidade de trabalho e com todo o mérito –, tem logrado uma posição cimeira que há muito extravasa a divisa nacional. Traduzido em diversas línguas, e reconhecido entre pares, o autor assume-se hoje como uma voz incontornável do que melhor se produz em literatura portuguesa.

João Pinto Coelho, Mar, Doce Mar, D. Quixote, 2022

 



[i] Alusão à obra de Onésimo Teotónio Almeida, Rio Atlântico, Edições Salamandra, Lisboa, 1997

quinta-feira, 27 de abril de 2023

As Vinte e Sete Cartas de Artemísia




«A liberdade surgirá depois de se atear fogo a todas as gavetas de cómodas velhas, guardadas em sótãos. A esperada alteração política no país não sobreviverá pela verdade da ciência, mas pela criatividade da poesia».

Henrique Levy, As Vinte e Sete Cartas de Artemísia

 

Henrique Levy tem edificada obra – rica e proficiente –, assente em diferentes modos e géneros literários. Entre outros, é autor de sete romances e oito livros de poesia, o que atesta o empenhado labor e virtuosismo deste poeta e romancista português, com nacionalidade cabo-verdiana, radicado na ilha de São Miguel, nos Açores.

Conquanto haja ainda textos por ler (concretamente, os mais antigos), é possível afirmar, com relativa segurança, que são diversos os caminhos percorridos pela sua obra, sendo certo também que há um elemento agregador que perpassa muitos dos seus trabalhos: é de forma explícita que Levy exalta a condição de Ser mulher, evidenciando uma visão do mundo através de uma lente crítica e trajada no feminino, explorando, assim, todo o pensamento e forma de estar, ante uma sociedade muitas vezes injusta e outras tantas misógina e/ou patriarcal. Através da leitura e análise aos seus mais recentes trabalhos, é notória a solicitude e disposição do autor para resgatar da névoa do esquecimento vultos femininos, que merecem o destaque que o tempo ou uma incompreensível indiferença lhes sonegou.

Em Vinte e Sete Cartas de Artemísia, obra galardoada com o “Prémio Literário Natália Correia”, em 2022, e editada pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, Henrique Levy eleva essa condição feminina, escrevendo um romance robusto, profundamente original não apenas no pensamento que aprofunda e procura veicular, mas sobretudo na arquitetura formal que tão bem o escora. O autor serve-se da epistolografia e, munindo-se de estratégias narrativas singulares, mas capazes, consegue, de forma brilhante, colocar a narradora (mulher, pois claro!) a discorrer sobre inquietudes mundanas, enquanto desenvolve pensamento crítico e filosófico, alvitrando sobre questões de grande relevo para o país, e isto ao mesmo tempo que cursa Letras na Universidade, lava as vidraças dos altos edifícios do centro urbano que a acolhe temporariamente, ou lança à terra a enxada, cavando o mundo rural e ilhéu que a viu nascer.

Como se afirmou, este é um romance voltado para o feminino, erigido quase exclusivamente a partir de personagens mulheres, tendo o autor optado por lhes consignar as características específicas de garante da subsistência dos agregados familiares, habitualmente entregues ao homem: a força, a determinação, a coragem, a resiliência, o trabalho ou a argúcia são atributos bem evidentes em todas as personagens mulheres que surgem ao longo da obra. Esta opção pela afirmação da mulher ganha redobrado enfoque, considerando a localização espácio-temporal da ação: um espaço ilhéu, durante os anos de Ditadura, aqueles que antecederam a Revolução de Abril, e numa altura onde à mulher cabia apenas a execução submissa das tarefas de ordem doméstica e pueril. Por oposição, à figura masculina, que gozava, então, de uma condição de relativa superioridade em relação à mulher, fica reservada no romance uma participação substancialmente inferior, e desempenhando apenas papéis marcados pela fragilidade física e psicológica ou pelas más condutas sociais e políticas. Numa demanda crítica, parece-nos importante assinalar o recurso aos adjetivos “Velho” e “Antigo” na caracterização toponímica do espaço da ação. Era uma “Cidade Velha” e um “Porto Antigo” os espaços bafientos onde se perpetravam injustiças, a misoginia e se impunham os normativos ditatoriais.

Valendo-se de uma prosa profundamente poética, pese embora a feiura de alguns relatos ali veiculados, poder-se-á afirmar que esta é uma clara manifestação de amor à própria poesia; a poesia que salva, que confere liberdade e que, em jeito de citação, é aqui trazida amiúde, emprestando um pouco mais de sensibilidade ao texto. Aliás, e em abono da verdade, não são apenas os versos das poetizas cuidadosamente selecionadas por Levy que trazem beleza ao texto. É da mais inteira justeza lembrar as várias referências bíblicas e filosóficas convocadas e que chegam a adornar o romance, para além de confirmarem as linhas de pensamento desenvolvidas pela narradora. Reitere-se que, pela temática abordada, deveria o texto arrogar-se profundamente pétreo, sob pena de não se assumir crível aos olhos do leitor, todavia, o virtuosismo do autor conferiu-lhe sagacidade suficiente para o dotar de beleza estética e fealdade temática, em doses exatas.

O romance Vinte e Sete Cartas de Artemísia assume-se como um texto profundamente marcado pela crítica social e política a um país que olha com indulgência para o adultério masculino, mas que o condena veemente se praticado no feminino, um país que trava uma incompreensível Guerra Colonial e que ao mesmo tempo se vê mergulhado no bafio de uma Ditadura castradora de liberdades individuais e coletivas, que lançava o povo para a inevitabilidade da miséria, enquanto conferia benesses desmedidas a uns quantos que, com o caudilho, mantivessem relações de interesse económico. Por outro lado, este é também um romance marcado pela declarada apologia da luta política pela igualdade de género, pelos direitos dos operários, pela oposição à repressão imposta pela Ditadura, pelos direitos dos estudantes, corporizando-se esta luta quer na resistência por parte da narradora, quer essencialmente pelo percurso de Piedade, a personagem que surge mais inconformada ao longo de toda a narrativa.

Como bem o caracterizou o Júri do “Prémio Literário Natália Correia”, este é «[…] um romance notável pela originalidade de escrita e de pensamento, em que se cruzam inquietação e sabedoria nas indagações respeitantes à condição humana.»

A terminar, uma palavra de apreço dirigida à Câmara Municipal de Ponta Delgada, não apenas pela bonita edição com que dignifica o romance de Henrique Levy, mas sobretudo pelo importante investimento cultural que representa este prémio literário. Oxalá se mantenha esta aposta, continuando, assim, com o engrandecimento do nome e a obra de Natália Correia. 

 

Henrique Levy, As Vinte e Sete Cartas de ArtemísiaCâmara Municipal de Ponta Delgada, 2022)