Como acontecera com o seu antecessor, neste volume, o autor dá a conhecer uns Açores substancialmente diferentes dos que hoje se assumem como expoente turístico nacional e europeu. Em cada estória é aberta uma janela para um passado não muito distante – décadas 60 e 70 do Século XX –, mas, felizmente para todos, consideravelmente diferente da realidade em que hoje vivemos. Sem que com isso se procure quaisquer alusões políticas, será caso para sublinhar o tanto que evoluímos em tão pouco tempo.
O título que empresta nome ao livro é o mesmo da narrativa de abertura, e recupera a crise sismovulcânica ocorrida no Pico, no início do Século XVIII, assim como a peste bubónica que afetou o Faial pela mesma altura. Uma vez mais, o autor parte de uma forte componente histórica para desenvolver as suas narrativas, intercalando eventos factuais com a necessária componente ficcional, criando, dessa forma, um ambiente de verosimilhança que, entre outros, capta a atenção do leitor.
Como foi já apontado por outros leitores, há no livro uma narrativa que se destaca das demais, não apenas por extravasar o universo picoense mas, sobretudo, por se assumir com premissas e qualidade suficientes para algo de maior monta: a viagem de um petiz a bordo do vetusto “Carvalho Araújo”, desde a ilha das Flores até São Miguel, onde viria a prosseguir estudos, ingressando no Seminário Menor de Santo Cristo. Esta narrativa nasce da memória do próprio autor, que realizou esta mesma viagem e a descreve com admirável minúcia, oferecendo-nos um relato tão preciso e impressionante que ninguém ousaria afirmar tratar-se de uma memória com mais de cinquenta anos. Nessa medida, seria muito conveniente eternizar este período tão interessante numa outra obra, eventualmente um romance ou mesmo um livro de memórias.
Permitindo-nos uma pequena deriva, tem sido muito interessante verificar em conversas ou em leituras diversas, a forma como diferentes autores açorianos (Professor Carlos Fagundes incluído) se referem ao “Carvalho Araújo” e às suas viagens. Descrevem-nas sempre como muito difíceis, salientando, particularmente, o tempo despendido em cada viagem, assim como as recorrentes dificuldades gástricas, mas fazem-no sempre com muito enlevo, detalhe e até com um notório resquício de saudade. Tenhamos presente a importância que o velho paquete trazia à vida das pessoas e à economia açoriana e madeirense, em geral, justificando-se, talvez por isso, um certo romantismo em torno destas travessias atlânticas, fossem abordo desta ou de outras embarcações da “Empresa Insulana de Navegação”.
A riqueza desta obra não se esgota no que fica dito, passando também pelo detalhe e subtileza com que o autor se muniu para caracterizar o povo português e açoriano, em particular. Assuntos triviais da vida quotidiana e outros de maior relevo histórico são tratados com delicadeza e aparente simplicidade, o que, já sabemos, é de dificílima execução. Por entre estas páginas há muito daquilo que nos faz portugueses açorianos, desde logo a capacidade de reação perante as adversidades resultantes das diferentes calamidades naturais que recorrentemente nos assolam, assim como o humanismo e a generosidade daqueles que, mesmo de parcos recursos, não hesitam no momento de disponibilizar o pouco de que dispõem ante miséria do vizinho, ou mesmo do desconhecido. Outra das características transversais a muitos destes textos é o recurso ao sentido de humor, mesmo naquelas situações que se revestem de risco e perigosidade.
Como escreveu Manuel Serpa no interessante prefácio que abre a obra, “É sempre com redobrada expetativa que acolhemos as novas iniciativas literárias do Carlos Fagundes”, que tem trilhado um percurso em crescendo, pautado pelo brilho da qualidade literária e revestido de um enorme interesse sociocultural. É muito importante que haja quem se disponha a eternizar modos de vida, usos e costumes idos que, de outra forma, cairiam miseravelmente no olvido, perdendo-se, assim, muito daquilo do que fomos e do que está na génese do que hoje somos. Quando encontramos quem o faça, com a vantagem de o fazer com mestria literária, cabe-nos, naturalmente, agradecer e, com ânsia assumida, esperar pela obra que se seguirá.
Carlos Fagundes, «A Montanha Cobriu-se de Lava e Outras Estórias», Letras Lavadas edições, 2023
Sem comentários:
Enviar um comentário