quinta-feira, 27 de abril de 2023

As Vinte e Sete Cartas de Artemísia




«A liberdade surgirá depois de se atear fogo a todas as gavetas de cómodas velhas, guardadas em sótãos. A esperada alteração política no país não sobreviverá pela verdade da ciência, mas pela criatividade da poesia».

Henrique Levy, As Vinte e Sete Cartas de Artemísia

 

Henrique Levy tem edificada obra – rica e proficiente –, assente em diferentes modos e géneros literários. Entre outros, é autor de sete romances e oito livros de poesia, o que atesta o empenhado labor e virtuosismo deste poeta e romancista português, com nacionalidade cabo-verdiana, radicado na ilha de São Miguel, nos Açores.

Conquanto haja ainda textos por ler (concretamente, os mais antigos), é possível afirmar, com relativa segurança, que são diversos os caminhos percorridos pela sua obra, sendo certo também que há um elemento agregador que perpassa muitos dos seus trabalhos: é de forma explícita que Levy exalta a condição de Ser mulher, evidenciando uma visão do mundo através de uma lente crítica e trajada no feminino, explorando, assim, todo o pensamento e forma de estar, ante uma sociedade muitas vezes injusta e outras tantas misógina e/ou patriarcal. Através da leitura e análise aos seus mais recentes trabalhos, é notória a solicitude e disposição do autor para resgatar da névoa do esquecimento vultos femininos, que merecem o destaque que o tempo ou uma incompreensível indiferença lhes sonegou.

Em Vinte e Sete Cartas de Artemísia, obra galardoada com o “Prémio Literário Natália Correia”, em 2022, e editada pela Câmara Municipal de Ponta Delgada, Henrique Levy eleva essa condição feminina, escrevendo um romance robusto, profundamente original não apenas no pensamento que aprofunda e procura veicular, mas sobretudo na arquitetura formal que tão bem o escora. O autor serve-se da epistolografia e, munindo-se de estratégias narrativas singulares, mas capazes, consegue, de forma brilhante, colocar a narradora (mulher, pois claro!) a discorrer sobre inquietudes mundanas, enquanto desenvolve pensamento crítico e filosófico, alvitrando sobre questões de grande relevo para o país, e isto ao mesmo tempo que cursa Letras na Universidade, lava as vidraças dos altos edifícios do centro urbano que a acolhe temporariamente, ou lança à terra a enxada, cavando o mundo rural e ilhéu que a viu nascer.

Como se afirmou, este é um romance voltado para o feminino, erigido quase exclusivamente a partir de personagens mulheres, tendo o autor optado por lhes consignar as características específicas de garante da subsistência dos agregados familiares, habitualmente entregues ao homem: a força, a determinação, a coragem, a resiliência, o trabalho ou a argúcia são atributos bem evidentes em todas as personagens mulheres que surgem ao longo da obra. Esta opção pela afirmação da mulher ganha redobrado enfoque, considerando a localização espácio-temporal da ação: um espaço ilhéu, durante os anos de Ditadura, aqueles que antecederam a Revolução de Abril, e numa altura onde à mulher cabia apenas a execução submissa das tarefas de ordem doméstica e pueril. Por oposição, à figura masculina, que gozava, então, de uma condição de relativa superioridade em relação à mulher, fica reservada no romance uma participação substancialmente inferior, e desempenhando apenas papéis marcados pela fragilidade física e psicológica ou pelas más condutas sociais e políticas. Numa demanda crítica, parece-nos importante assinalar o recurso aos adjetivos “Velho” e “Antigo” na caracterização toponímica do espaço da ação. Era uma “Cidade Velha” e um “Porto Antigo” os espaços bafientos onde se perpetravam injustiças, a misoginia e se impunham os normativos ditatoriais.

Valendo-se de uma prosa profundamente poética, pese embora a feiura de alguns relatos ali veiculados, poder-se-á afirmar que esta é uma clara manifestação de amor à própria poesia; a poesia que salva, que confere liberdade e que, em jeito de citação, é aqui trazida amiúde, emprestando um pouco mais de sensibilidade ao texto. Aliás, e em abono da verdade, não são apenas os versos das poetizas cuidadosamente selecionadas por Levy que trazem beleza ao texto. É da mais inteira justeza lembrar as várias referências bíblicas e filosóficas convocadas e que chegam a adornar o romance, para além de confirmarem as linhas de pensamento desenvolvidas pela narradora. Reitere-se que, pela temática abordada, deveria o texto arrogar-se profundamente pétreo, sob pena de não se assumir crível aos olhos do leitor, todavia, o virtuosismo do autor conferiu-lhe sagacidade suficiente para o dotar de beleza estética e fealdade temática, em doses exatas.

O romance Vinte e Sete Cartas de Artemísia assume-se como um texto profundamente marcado pela crítica social e política a um país que olha com indulgência para o adultério masculino, mas que o condena veemente se praticado no feminino, um país que trava uma incompreensível Guerra Colonial e que ao mesmo tempo se vê mergulhado no bafio de uma Ditadura castradora de liberdades individuais e coletivas, que lançava o povo para a inevitabilidade da miséria, enquanto conferia benesses desmedidas a uns quantos que, com o caudilho, mantivessem relações de interesse económico. Por outro lado, este é também um romance marcado pela declarada apologia da luta política pela igualdade de género, pelos direitos dos operários, pela oposição à repressão imposta pela Ditadura, pelos direitos dos estudantes, corporizando-se esta luta quer na resistência por parte da narradora, quer essencialmente pelo percurso de Piedade, a personagem que surge mais inconformada ao longo de toda a narrativa.

Como bem o caracterizou o Júri do “Prémio Literário Natália Correia”, este é «[…] um romance notável pela originalidade de escrita e de pensamento, em que se cruzam inquietação e sabedoria nas indagações respeitantes à condição humana.»

A terminar, uma palavra de apreço dirigida à Câmara Municipal de Ponta Delgada, não apenas pela bonita edição com que dignifica o romance de Henrique Levy, mas sobretudo pelo importante investimento cultural que representa este prémio literário. Oxalá se mantenha esta aposta, continuando, assim, com o engrandecimento do nome e a obra de Natália Correia. 

 

Henrique Levy, As Vinte e Sete Cartas de ArtemísiaCâmara Municipal de Ponta Delgada, 2022)

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