Para
além do prazeroso reencontro com pessoas que partilham o gosto pela Literatura,
as sessões “Ler na Livraria”, promovidas pelos responsáveis pela icónica livraria
LeyaSolmar, em Ponta Delgada, revestem-se da grande vantagem de trazerem ao
conhecimento ou, pelo menos, à memória obras de referência que, por um ou outro
motivo, se encontravam na obscuridade do esquecimento. Foi o caso de «Descobri
Que Era Europeia», da autora açoriana Natália Correia, naquele sábado
selecionado e comentado pela professora e escritora Leonor Sampaio Silva.
A
edição que possuo – da editora Ponto de Fuga, março de 2018 – é a mais recente
e é um pouco mais alargada do que a obra original, uma vez que se refere, ao
contrário da primeira, às três viagens que a autora de «A Ilha de Circe»
efetuou aos Estados Unidos da América: a primeira em 1950, com apenas vinte e
seis anos, a segunda em 1978, a convite da Brown University e a última em 1983,
em representação do então Presidente da República, General Ramalho Eanes, por
ocasião da comemoração, naquele país, do Dia de Portugal, de Camões e das
Comunidades.
Apesar
de se reportar a três momentos temporais distintos e outras tantas viagens, o
âmago do texto incide, essencialmente, no relato da primeira viagem àquele
país. Nele, Natália procura retratar a essência do “american way of
life”, assimilado através de inúmeras incursões por cidades da costa leste
dos Estados Unidos da América, nomeadamente, Boston, Washington ou Nova Iorque,
colocando-o em contraponto com a sua própria visão europeísta.
Apesar
de se tratar de uma “obra de início de carreira”, como outros a catalogaram,
Natália Correia adensa-a com uma interessante conjugação de géneros,
pressagiando, claramente, o virtuosismo literário que lhe viria a ser
reconhecido, posteriormente. Investidas pelo relato de viagem, reportagem,
texto diarístico, prosa ficcional ou poesia criam um todo estruturalmente
harmonioso e de leitura bastante interessante. O que poderia ter sido apenas um
texto híbrido, descritivo e sem grandes linhas orientadoras, revela-se um
documento profético (até no que à política económica da Europa concerne),
exuberante e de uma profunda riqueza literária, onde a autora analisa
comparativamente e em constância, o modo de vida de um lado e do outro do
Atlântico.
Nesta
viagem há ainda uma profunda jornada autorreflexiva até ao íntimo da própria
autora que assume, aliás, que principia a expedição com muitas questões por responder,
«Trouxe curiosidades para a América (…)», sendo que, no regresso, a poucas
ou nenhumas conseguiu dar resposta plenas, «Nenhuma das minhas curiosidades foi
satisfeita.». Não obstante, conclui que americanos e europeus são «estruturalmente
diferentes» e o seu desapontamento com «a terra prometida» fá-la perceber que o
seu lugar no mundo passará sempre pelo velho continente. Embora encontre no «Novo
Mundo» laivos civilizacionais aceitáveis (quase sempre assentes em origens
europeias), nomeadamente em contacto direto com algumas pessoas ou em visita a
determinados espaços – galerias de arte, por exemplo – há por diversas vezes
referência à falta de raízes daquele país, à superficialidade da sua cultura
estética, o que lhe causa um monumental desencanto.
Serão,
aliás, esses sentimentos de desilusão e frustração, cumulativamente com a sua
integridade intelectual e consequente afastamento do ‘politicamente correto’,
associados a uma escrita crua, corrosiva, pautada por disfemismos, ironia e por
um sentido de humor apuradíssimo, que levaram a que muitos considerassem este
texto «de cabal antipatia pelo american way of life (…)», como ficou
registado pela mão da própria autora à partida para a sua segunda viagem aos
EUA.
Natália
Correia, fruto talvez da sua personalidade assumidamente mal-humorada, não se
inibiu de, textualmente, apoucar muitos dos que, de certa forma, a terão
exasperado durante esta viagem: ora pela vivência de situações envoltas em
falta de idoneidade, «(…) percebi que a pressurosa ajuda do homenzinho,
insistindo em retirar os embrulhos do táxi, obedecia a intuitos bem poucos
generosos.», ora pela interação com indivíduos cujos discursos chegavam a ser
insultuosos à inteligência da autora, «O homem conhece a Europa.
Esteve em Espanha e quer saber que língua se fala em Portugal. Foi a este
sujeito que estive para responder que em Portugal éramos todos mudos. Mas não o
fiz, com receio de que ele acreditasse…».
No
atinente à segunda e à derradeira viagens àquele país, percebe-se uma certa
pacificação da autora com a região: «Regresso agora à América do Norte, e o
impacto europeizante que me acolhe encandeia-me logo à chegada. Que modificação
se operou
nesta caminhada do tempo, não tão longa para justificar esta drástica
rutura do velho isolacionismo norte-americano face à vida europeia, ao
ponto de ter eu a sensação de me achar numa Europa que já não encontro na sua
velha colocação geográfica e cultural?», no entanto, claramente insuficiente
para que lhe suscite qualquer tipo de especial deslumbramento.
A
terminar, deixo-vos duas citações retiradas do texto de 1950 que considero
dignas de registo, talvez pela atualidade com que se revestem:
«O
protesto é uma democracia de recurso.»
«(…) o
meu ceticismo ante os meandros da política internacional inclinava-me a não
acreditar na “pureza de intenções dos países empenhados em defender os
interesses de outras nações”»
A todos, um abraço dos maiores!
Natália Correia, Descobri Que Era Europeia, Ponto de Fuga, 2018
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