quarta-feira, 22 de junho de 2022

Os Velhos


“Ir morrendo é pior do que morrer”

Paula de Sousa Lima, Os Velhos


É incontestável a animação literária e cultural vivenciada no arquipélago e em São Miguel, em particular. Tem sido uma temporada incomum, com fulgor extraordinário e com uma qualidade que muito nos deve orgulhar.

Um dos livros lançados e, seguramente, um dos mais esperados foi Os Velhos, o mais recente romance de Paula de Sousa Lima, autora, entre outros de O Outro Lado do Mundo (Prémio de Humanidades Daniel de Sá), Pretérito Quase Perfeito e Outros Contos, Variações em Dor Maior, Os Últimos Dias de Pôncio Pilatos ou O Paraíso (Finalista do Prémio Leya). O seu lançamento ocorreu na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada, tendo sido responsável pela apresentação pública, o professor e crítico literário Vamberto Freitas, que a todos presenteou com uma intervenção de excelência.

A escolha de Os Velhos para título desta obra é perfeita, sendo por aí mesmo que se inicia o forte abalo nas convicções do leitor. Ainda antes de abrirmos o livro e de o folhearmos é, de imediato, evocado um mundo para o qual olhamos muitas vezes com desconforto, ou, pelo menos, relanceamos com um espírito longínquo e reticente: a velhice. Não me custa crer que haja quem o vá preterir nos escaparates, pela conveniência de não se confrontar com o assunto que ali vem explanado. Estudado antropologicamente, não é incomum furtarmo-nos ao tema, talvez por a velhice representar a condição final do Ser Humano, por não gostarmos de enfrentar o limiar da passagem para a dimensão seguinte, ou, talvez ainda, por ser nessa fase que teremos de abandonar, em definitivo, aquela ideia tonta que nos alimenta a mocidade e idade adulta e que se relaciona com a imortalidade. Só aí, quando já ecoarem os passos de um caminho inevitável e sem retorno, é que nos daremos conta da nossa própria finitude. Paula de Sousa Lima lança já um alerta para aqueles mais incautos. Por outro lado, mesmo não assumindo ainda essa condição etária, a velhice de outrem, de um familiar próximo, por exemplo, é encarada, demasiadas vezes, como um verdadeiro empecilho na engrenagem do dia-a-dia: todos temos as nossas obrigações e contas para pagar, e, por isso, precisamos de tempo e disponibilidade física e mental para desenvolvermos a nossa atividade profissional. Há também o imperativo dos ginásios ou das corridas ao fim do dia, aqueles encontros das quintas-feiras com os amigos de sempre, as mil e uma atividades extracurriculares dos filhos e, claro, restando algum tempo, pois que se empregue no restabelecimento de energias numa qualquer socialização que se agende. Ficam os velhos para trás.

Em Os Velhos é intensa a crítica social, sobretudo à forma como, tantas vezes, são tratados os nossos idosos, como são preteridos e/ou ludibriados em troca das trivialidades que nos vão alimentando o ego e, sobretudo, a carteira. Colocam-se a nu as fragilidades de um sistema de apoios sociais que, quando funciona, fá-lo muito deficitariamente. Mostra-se, sem pudor, como se maltratam aqueles que mais mimados e protegidos deviam ser. Se quiséssemos assumir uma postura simplista neste comentário, poderíamos apenas escrever que Paula de Sousa Lima redigiu um belo livro sobre pessoas velhas e as suas circunstâncias pessoais e familiares. Mas, pelo contrário, se optarmos por dar conta de uma leitura mais séria e aprofundada do volume em apreço, então teremos de enunciar que foi escrito um livro extraordinário sobre a sociedade atual e sobre a hierarquização dos valores que a regem, especificamente, sobre a forma como lidamos com as pessoas integradas nos escalões etários mais altos. «(…) são estes os dias modernos, implacáveis, que não deixam lugar aos velhos, que determinam esconder os velhos, apartá-los da vida (…)»

Valendo-se das vivências de três personagens principais, da história do nosso próprio país, assim como de uma estrutura assente em duas sequências divididas em vários andamentos, onde se entremeiam analepses com o tempo da narração, Paula de Sousa Lima retrata e censura toda uma sociedade patriarcal, com especial enfoque naquela da segunda metade do século XX, onde, acoberto dos imperativos de uma Ditadura velhaca, o poder do homem sobre a mulher era tido como normal, e, por isso, o espancamento e violação, o agrilhoar da mulher numa pocilga ou expulsá-la de casa, o adultério ou a censura eram atos desculpáveis e causados exclusivamente pelo comportamento feminino. 

Embora expectável considerando as obras já publicadas e pelo que vai escrevendo regularmente na imprensa regional, não podemos deixar de sublinhar o meticuloso cuidado empregue no discurso, na sintaxe, na semântica e na morfologia, pelo que, como sempre, ler Paula de Sousa Lima é também expandir o conhecimento da Língua: «(…) diz-se aborreceu, mas a palavra é fracota, melhor seria exasperou, desesperou, enfureceu, agastou, assanhou, enraiveceu, encolerizou, embraveceu, irou, danou (…)»

Dir-se-ia que foi um verdadeiro ato de coragem escrever desta forma sobre esta temática. Para além de se assumir como um texto profundamente inovador, vem, ao mesmo tempo, contribuir para a discussão que, por estes dias, volta à montra da nossa sociedade, e que se relaciona com a despenalização da morte medicamente assistida. Sendo certo que não é questão exclusiva dos mais velhos, não deixa de ser verdade que são eles quem mais a procura e deseja, pelo que também aqui se poderão colher argumentos para consolidar opiniões.  

Como tão bem enunciou Vamberto Freitas na apresentação desta obra, Paula de Sousa Lima demonstrou a “original capacidade de fazer arte com um tema proibitivo”. Embora seja triste e angustiante; conquanto seja errado e condenável colocarmos os nossos velhos nesse patamar tão rebaixado é esta a verdade crua em que vivemos. Nesse sentido, tenhamos também a capacidade de fazer arte com quem nos precedeu e assegurou que hoje pudéssemos deter uma existência integrados numa sociedade moderna, mas que se quer um pouco mais justa e aperfeiçoada.

Que este Os Velhos nos inculque as perguntas certas e nos guie até às respostas que realmente fazem a diferença.

Paula de Sousa Lima, Os Velhos, Letras Lavadas edições, 2022

📷 Letras Lavadas edições

terça-feira, 14 de junho de 2022

NARIZ DE SANTO E OUTROS MOMENTOS



Há autores que, de tão especiais, nos marcam profundamente, seja pela substância, seja pela forma daquilo que partilham. É caso de Tomaz Borba Vieira, cuja obra literária (e não só) tenho acompanhado com redobrado interesse e especial agrado, desde há já muitos anos. Além de virtuoso pintor, Tomaz Borba Vieira manifesta-se também como um escritor talentoso, um exímio contador de histórias e uma pessoa absolutamente admirável! Dito isto, mais do que um gosto, foi uma honra das maiores poder ler e prefaciar a sua mais recente obra Nariz de Santo e Outros Momentos, editado pela Letras Lavadas Edições. Partilho convosco trechos desse prefácio, transcritos na página da editora. https://www.letraslavadas.pt/en/nariz-de-santo-e-outros-momentos/

 “(…) Ao primeiro contacto, notará o leitor alguns dos traços mais enraizados na escrita de Tomaz Borba Vieira, e que se consubstanciam por uma aparente simplicidade de difícil execução, e por uma contínua fluidez, sem grandes derivas à órbita do supérfluo, o que lhe confere um andamento aprazível e capaz de suster a atenção do leitor. Tomaz Borba Vieira é, como percebemos, um contador de histórias, tornando-se praticamente impossível dissociar estas marcas discursivas da figura autoral.

Como em outras obras suas, também em Nariz de Santo e Outros Momentos são narradas, de forma quase singela, múltiplas vivências e outras tantas viagens sentimentais a diferentes épocas e geografias. Com efeito, as balizas temporais definidas pelo autor fazem-nos calcorrear a sua própria memória, resgatando desse passado um tempo vivido intensamente junto da família e amigos mais ou menos próximos. (…)

Desta vez, apresenta-nos quinze narrativas muito bem cuidadas, repletas de apontamentos históricos, psicológicos e sociais vistos e filtrados a partir da sua cosmovisão, conferida por toda uma vida repartida por diversas geografias mundiais, sem, todavia, renegar a sua conceção primeira de freguês de uma simples povoação, onde, invariavelmente, buscava o retemperar de forças, o reajustar de emoções e até a inspiração. São-nos oferecidos pequenos relances de outros tantos rasgos temporais, onde nos é possível vislumbrar a riqueza das relações familiares, dos hábitos sociais e quotidianos, onde podemos observar as relações de amizade entre  pessoas muito simples ou outras de maior relevo histórico-cultural, onde poderemos apreciar a comicidade fina que perpassa toda a obra e onde poderemos ainda encontrar a centelha que motiva Tomaz Borba Vieira e que se alarga num espectro desde a Pintura à Biologia, da Náutica à Religião, da História à Geografia, entre tantas outras.

Não que necessária fosse mais alguma confirmação, mas este Nariz de Santo e Outros Momentos vem atestar a maturidade e a robustez literária que Tomaz Borba Vieira já alcançou no seio das letras açorianas; vem confirmar, em definitivo, o seu lugar junto dos nomes maiores da literatura de raiz açoriana.” 

 📷 Letras Lavadas Edições

Tomaz Borba Vieira, Nariz de Santo e Outros Momentos, Letras Lavadas Edições, 2022