sexta-feira, 11 de novembro de 2016

In Açoriano Oriental





- Se eu fosse Deus, não teria feito o Mundo assim.
 (in E Deus Teve Medo de Ser Homem)
Escrita pelo professor Daniel de Sá, esta novela apresenta-se como um documento singular, factualmente rico, e de tributo a um povo perseguido, humilhado e, repetidamente, dizimado! A história do povo judeu é-nos aqui descrita em dois planos temporais distintos. São relatados dois momentos históricos de persecução, de aniquilamento, de subjugação.
Resistindo a um arranjo cronológico fácil, Daniel de Sá intercala o seu relato,dando-nos conta quer do extermínio judeu levado a efeito pelos alemães Nazis de Hitler, em pleno Holocausto, ou «[…]“Shoa”, a palavra hebraica que os Judeus, mais propriamente do que nós, usam para designar o “Holocausto”, e que significa “Catástrofe”.», quer do aniquilamento exercido pelos romanos, quase dois mil anos antes de II Grande Guerra Mundial.
O autor centra a ação da novela nas atrocidades cometidas no Campo de Concentração de Auschwitz, e brinda-nos com um relato emocionado, vivo, comprometido com o descrito, o que não deixa de ser revelador da sua enorme sensibilidade e humanismo. Como referiu Joaquim Matos numa recensão à obra «Ele fala-nos das coisas como se as tivesse vivido, como se as tivesse sentido em situações concretas, com as feridas delas decorrentes ainda abertas, no corpo e na alma.».
Por outro lado, Daniel de Sá consegue, de forma singular, intercalar factos de enorme relevância histórica para a Humanidade, com a ficção que vai, paulatinamente, imprimindo no seu discurso: «[…] o que acontece na novela de Daniel de Sá é o equilíbrio perfeito entre o historiador e os factos históricos e entre o ficcionista e a ficção.*».
Pela voz de Aharon Csánady Halévy, ou melhor dito, pelas memórias do padecimento deste sobrevivente ao Holocausto, Daniel de Sá parte para uma profunda análise sobre a condição humana, sobre os limites de sofrimento que poderá um homem experienciar no limite da sua vida, e sobre a implicação dos mesmos na sua existência posterior: «A minha debilidade era tão grande que julgava que morria a qualquer momento.».
O autor conduz-nos, então, à reflexão sobre este padecimento através de um conjunto de memórias escritas pelo próprio Aharon. Paradoxalmente, a personagem tê-las-á escrito para delas se esquecer e, de alguma forma, se libertar de um passado medonho, aceitando-o, irremediavelmente: «Um homem não pode nunca esquecer voluntariamente. No entanto, eu quis fazê-lo, como quem apaga umas páginas mal escritas, mas quanto mais tenta o esquecimento por refúgio mais recorda o que não queria recordar.».
É notória na personagem uma certa resiliência, uma aceitação de um passado que foi hediondo, e uma consciência de que o mesmo lhe moldará sobremodo a existência, nos anos subsequentes ao cativeiro. Percebe-se, ainda, que, só a aceitação imperativa desse passado, permitirá uma vivência digna, ditosa e, de uma forma muito otimista, até, feliz! «E, depois disto, talvez eu consiga tocar violino novamente.».
Ademais, em E Deus Teve Medo de Ser Homem, Daniel de Sá eterniza um extraordinário paralelo entre a humanidade separada por quase dois milénios.
Valendo-se de uma personagem mística – que afirma ser o próprio Filho de Deus – , o autor produz um relato pautado ora pelo rigor, ora pela ficção, sobre o período de pregação e morte do próprio Jesus Cristo. Se, nessa altura, os romanos foram capazes das maiores crueldades, passados quase dois mil anos, os alemães Nazis não se mostraram mais humanos do que os primeiros; se aqueles não revelaram grande pudor em maltratar, perseguir e, até, crucificar judeus, sem quaisquer evidências que o justificassem, estes mostraram-se completamente impiedosos, frios e inumanos ao assassinarem mais de um milhão de judeus, só em Auschwitz. Uns mataram pela cruz, outros valeram-se dos crematórios!
E Deus Teve Medo de Ser Homem é uma novela absolutamente avassaladora, um retrato cru de dois períodos particularmente negros desta humanidade em evolução. Decorrente da sua leitura, é percetível o grotesco retrocesso civilizacional a que uma mente brilhante, mas completamente perturbada, nos sujeitou, em meados do século passado.
Contudo, e à custa do padecimento brutal de todo um povo, desses já recuperámos, mas, até quando?
A terminar, deixo-vos transcrita a INVOCAÇÃO que o próprio autor nos oferece:
«Nenhum livro fica completo sem o leitor. Dos que já escrevi, este será, sem dúvida, o que mais há-de depender da maneira como for lido para que tenha valido a pena escrevê-lo


*[1] Antunes, Susana L. M. “E Deus Teve Medo de Ser Homem: Memória, Dor e Música em Daniel de Sá.” Rememorando Daniel de Sá: Escritor dos Açores e do Mundo Ver Açor, Lda. Ponta Delgada 2016

Telmo R. Nunes
a 9 de novembro de 2016