sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

AVENIDA MARGINAL - FICÇÕES, PONTA DELGADA

 

Não há muitos dias, e a propósito de um outro livro, contrariei a opinião, cada vez mais arreigada, de que o conto estaria ultrapassado, que se encontraria em franco declínio e de morte anunciada por não ser vendável nem atrativo aos olhos dos leitores. Continuo a pensar da mesma forma. O género está vivo e a verdade é que nos têm chegado obras de qualidade superior que comprovam esse vigor literário.

O mais recente exemplo e, seguramente, um dos mais aguardados, foi o Avenida Marginal - Ficções, Ponta Delgada, que segue já no seu segundo número, sucedendo ao do ano de 2019 e que inaugurou uma série fascinante e que se espera duradoira.

Se a estreia da coletânea se deu com a pujança e sucesso que todos reconhecemos, colocando o desafio dos “novos” num patamar de excelência, os contistas deste ano não se atrapalharam e conseguiram manter a fasquia o que, em abono da verdade, se afigurava tarefa hercúlea.

Assumindo novamente o ar de homenagem à cidade mais populosa dos Açores, esta compilação reúne a voz de onze autores tão singulares como João de Melo, Judite Canha Fernandes, Catarina Ferreira de Almeida, João Pedro Porto, Eleonora Marino Duarte, Daniela Sousa Medeiros, Bernardo Rodrigues, Diogo Ourique, Gina Ávila Macedo, Ana Monteiro ou Daniel Gonçalves. Tal como no número que lhe antecede, repete-se a aposta numa mescla de nomes consagrados com outros que, não sendo escolhas óbvias, se mostraram capazes de, fruto do trabalho, empenho e, inevitavelmente, bastante talento, conferirem aos seus textos versatilidade criativa, assumindo-se aptos a “criar ficções densas e muito bonitas, enredos curtos mas largos em significado, o que me parecem ser condições fundamentais na produção textual dentro desta tipologia ou género literário de características tão peculiares”.

Como diria uma amiga e profunda conhecedora da literatura de raiz açoriana, confesso que apreciei sem qualquer moderação os onzes contos que nos são apresentados e, de todos, retive considerações que guardarei apenas na memória, assim me instiga a civilidade e o facto de não querer assumir o ingrato papel de spoiler perante os futuros leitores da obra. Não obstante, quero sublinhar a coragem com que se traz à esfera literária (e também pública) temáticas que, por representarem lutas pessoais, ganham aqui redobrado valor!

Com este segundo número de Avenida Marginal – Ficções, Ponta Delgada, esta coletânea cimenta a sua posição no rol de iniciativas que engrandecem literariamente o arquipélago, a par de outras, das quais se destacariam os Colóquios da Lusofonia, o Arquipélago de Escritores, os diferentes Prémios Literários, a Festa do Livro dos Açores ou o Plano Regional de Leitura.

Esta obra vem corroborar a ideia, cada vez mais assumida, de que urge olhar o arquipélago literário dos Açores além de Antero Quental, Natália Correia ou de Vitorino Nemésio. Apesar de considerar que a estes se devam reservar lugares cimeiros e reguladores, há muitos valores a despontar e outros já bem vincados neste chão a que muitos já arriscam chamar de literatura açoriana. Procuremo-los, com a garantia de que as nossas ânsias literárias não sairão defraudadas, bem pelo contrário.

Está de parabéns a editora Artes e Letras, na pessoa da Maria Helena Frias, que soube “resistir e insistir”, apesar de todas as adversidades. Como ela: “Queremos literatura. Queremos cultura.”

Avenida Marginal – Ficções, Ponta Delgada |n.º 2, Artes e Letras, 2020  
#livrosecoisasdessas

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

A Nova Índia aos Olhos de Anamika

 


Não há muito tempo li um livro que adorei. Babyji, exemplarmente redigido por Abha Dawesar, escritora indiana duma capacidade de escrita muito acima da média. É daqueles livros que nos agarram desde a primeira página até à última (340).

Devo dizer que quando o comprei, tinha apenas como referência uma breve, mas muito cativante sinopse publicada na Visão, mas decorrendo a acção na Índia, mais me “aguçou o apetite”, isto porque sou simplesmente doido por aquele país, aquela cultura fascina-me desde longa data.

Anamika, ou Babyji, como carinhosamente é chamada pelos que lhe são mais próximos, vive em Nova Deli e é uma estudante excepcional, é genial a Física Quântica, adora estudar, e procura sempre superar tudo e todos para não desapontar ninguém, já que é olhada por seus pares como exemplo a seguir. Mantém com a directoria da escola onde estuda uma relação muito próxima, já que representa todos os estudantes do seu colégio. Sente-se orgulhosa disso mesmo, é o orgulho dos seus pais, mas sente o peso que acarreta, a posição que ocupa na sua micro – sociedade.

“Em casa, lê o Kamasutra às escondidas e, no seu esforço para crescer, atrai as atenções de homens e mulheres, rapazes e raparigas. Ávida de experiências e saber, questiona a justiça e a relevância do sistema de castas indiano, o conservadorismo do país e questões morais e intelectuais tais como a homossexualidade e a religião.” É descrita uma adolescente que para além de sofrer com as mudanças próprias inerentes à sua idade, é ainda perturbada por uma inteligência e espírito crítico muito acima da média, muito além do que a sua idade lhe deveria exigir! Os próprios amigos de Anamika não a entendem quando os questiona sobre algo, está quase sempre para além do seu conhecimento, mas não a criticam por isso. Admiram-na!

Babyji, não encontrando as respostas que pretende pelos meios convencionais, procura-as de outras formas. Será através da prática sexual que vai encontrar muitas das soluções aos seus problemas.

Ousada, já que o sexo é, ainda hoje, tema tabu neste país de raízes tão peculiares, esta adolescente, em busca de si própria envolve-se em diversas relações de amor, umas hetero, outras homossexuais, o que lhe poderia valer a qualquer momento fortes reprimendas e mesmo castigos demasiado pesados para a sua inocência. Desafiou toda uma moral intrínseca, duma sociedade ultra – conservadora, uma família regida pelos velhos costumes, mas descobre sempre aquilo a que se propõe.

Romances com as mais cobiçadas colegas do colégio, com o detestável rufia da escola, com a empregada da sua casa, amores escaldantes com amigas de sua mãe ou com o pai do seu melhor amigo, Anamika, passa a encarar cada relação sua como uma panóplia, como uma fonte de respostas à sua mente tão ávida de conhecimento adulto, conhecimento que não considera de forma nenhuma ser precoce.

Realmente a não perder. É adorável, entusiasmante, embora considere que por algumas vezes a autora se tenha deixado levar pela paixão, pelo querer expor o que tanto se preza naquele país por manter escuso ao resto do mundo: o preconceito ou em última análise o racismo advindo única e simplesmente de forma hereditária ou por via das tradições.

A história em si é mesmo bastante agradável à leitura recreativa, mas o que mais me apaixonou nesta obra foi indubitavelmente a forma como a Abha tão bem soube caracterizar a sociedade indiana actual.

Muito embora não tenha sido uma nova descoberta, a forma como é descrita a estratificação da sociedade em castas é deveras adorável. O preconceito dos Brâmane (ricos e nobres) face ao pobre e às profissões consideradas menos relevantes, a superstição daqueles em relação aos desfavorecidos e o nojo com que são olhados os Párias ou os condenados aos trabalhos mais sórdidos e mal pagos, é retratada de uma forma avassaladora, muito cuidada e extremamente elucidativa.

Abha Dawesar consegue despir todo um país de forma sensual, e põe a nu, aos olhos do mundo, todo o preconceito que em pleno século XXI ainda existe no seu país natal.

Objectivo alcançado, já que segundo a própria, foi a isso mesmo que se propôs inicialmente.

Eu recomendo!

 Abha Dawesar, Babyji, Edições Asa, 2007

Telmo R. Nunes a 18/04/08


terça-feira, 12 de janeiro de 2021

After Dark: Os Passageiros da Noite

 


Sempre que conversávamos sobre Literatura o diálogo recaía invariavelmente no mesmo autor: Haruki Murakami.

            - Já leste algum livro dele? Qual o que mais gostaste? – Perguntava com um brilho nos olhos, com um entusiasmo que nunca lho reconhecia noutros escritores.

            - Não! Ainda não o li. – Respondia com uma pontinha de vergonha pautada por um trago seco e tímido, típico de quem deveria já ter feito alguma coisa importante mas que, sem qualquer razão aparente, ainda não o fez... O meu constrangimento adensava-se à medida que o seu alvoroço crescia nos relatos que ia fazendo de todas as obras suas que lera. Contava-me praticamente todo o enredo dos livros, fazia-o mesmo sem se aperceber, para no final rematar com a frase “ (…) mas não me quero alongar mais, não vá demolir-te agora o prazer de uma excelente leitura!”.

            Confesso que numa das últimas vezes que procurei a minha livraria, lembrei-me dessa minha grande amiga e, por ela, estive com uma obra dele entre mãos, “Kafka à Beira-Mar”, um texto de 2006 e, porventura, o seu maior sucesso, mas devo dizer que não o trouxe, embora não me assole agora o motivo pelo qual isso aconteceu. Em abono da verdade não me recordo do título pelo qual o decidi trocar, conquanto nunca o tenha revelado antes.

            Incrédula com a minha quase teimosia, com a minha forte resistência em ler o seu herói, essa grande amiga e companheira de viagens literárias, decidiu ofertar-me com, segundo ela, uma relíquia, uma obra-prima do seu autor predilecto. – “Já não tens desculpa! Agora lê e diz qualquer coisa depois. Se não valesse a pena não te falaria nele” – aditou ela ao embrulho que me acabava de dar.

            Num aspecto, pelo menos, sabia que tinha razão, se não houvesse ali qualidade, nunca me iria falar dele!

            Assim, o título da oferta era o mesmo que presta título a este texto, “After Dark – Os Passageiros da Noite” – e devo dizer que até a composição exterior é bastante agradável à vista, o que, infelizmente, não consigo ainda deixar de prestar atenção no momento da compra.

            Claro está que antes de começar, procurei aqui e ali por informação relativa ao que iria ler e, devo dizer que a primeira impressão com que fiquei foi pouco auspiciosa. Lembro-me mesmo de pensar que o enredo desta obra era manifestamente pouco interessante – um relato iniciado e terminado numa noite apenas. Como pano de fundo a cidade de Tóquio e todas as vivências possíveis numa noite/madrugada sombria e fria – não era bem isto que esperava! Ainda assim comecei e devo dizer que em poucas páginas alterei por completo a minha postura face ao que lia. Ela tinha razão! Murakami é mesmo um escritor de excelência, é dotado duma capacidade rara de “fazer brotar magia do nada”. A narração é efectivamente feita num espaço temporal demasiado curto, mas nem por isso deixa de ser um texto sublime, fantástico, com uma riqueza poética absolutamente divinal. Um músico pouco prendado com queda para o Direito, uma estudante brilhante de dezanove anos extremamente reflexiva para a idade, sua irmã que, estranhamente dorme há meses, a poderosa e sanguinária máfia japonesa, um Love Hotel de qualidade duvidosa, “escoltados” pelos crimes que só a noite consegue esconder, formam em uníssono uma trama que é, sem qualquer dúvida, um gáudio à alma. É uma narração que tem tanto de imaginário como de autêntico, é o relato de enredos de um mundo tão real que poderia muito bem ser o nosso!

Foram duzentas e vinte páginas de puro regozijo, de descoberta e de admiração por este autor que agora me deram a conhecer. Foi o início de uma leitura que se vislumbra agora como duradoira, dada a obra que o mesmo possui. Fico extremamente agradecido a quem mo apresentou e, por isso mesmo, não posso deixar de o recomendar a quem ainda não o conhece – vale muito a pena!

 Haruki Murakami, After Dark : Os Passageiros da Noite», Casa das Letras, 2008

Telmo R. Nunes

03/Março /2009

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

A Distância que nos Uniu

 

            Um jovem casal de estudantes conhece-se e, por entre o rebuliço das suas vidas académicas, apaixonam-se de forma intensa. Vivem, durante algum tempo, um amor desmedido mas, por força do destino, vêem-se subjugados a uma separação geograficamente forçada. Sem grandes recursos para a contrariar, optam por oprimir o sentimento que os une, na esperança vã que o mesmo se dilua com o tempo.

                Por entre uma trama repartida por várias cidades europeias, este casal de amantes reencontra-se anos depois, ateando-se-lhes novamente o amor que nunca deixaram de sentir um pelo outro, catapultando-os de imediato para um passado tão afectuoso. Ainda que em condições deveras antagónicas e visivelmente adversas, o destino encarrega-se de se fazer cumprir, culminando esta história numa união previsível mas, contudo, de contornos completamente inesperados.

                “A Distância que nos Uniu” é o primeiro romance da jornalista Patrícia Carreiro mas, dada a forma como o escreve e mormente pela imaginação que lhe impõe, dir-se-ia que é já uma autora francamente traquejada.

                A ela, os meus sinceros parabéns!

(Texto de 2010)

Patrícia Carreiro, A Distância Que Nos Uniu, Edições Macaronésia, 2009

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

INSULARIDADE E "ILHARIZAÇÃO"


Numa das suas, cada vez mais interessantes, crónicas, escrevia Nuno Costa Santos que nunca lhe fizera confusão viver numa ilha, nunca sentira claustrofobia nem nunca agoniara por se ver rodeado de mar. Animava a premissa com o assombro dos seus amigos continentais, ao perceberem essa sua pacificação com o natural isolamento criado pelo mar imenso e, rematando com afinco, lançava: «A ideia de que o ilhéu é um ser prisioneiro entre vagas vem-se tornando cada vez mais num cliché que convém mais a uma poesia gasta da vivência insular do que à realidade quotidiana.». 
Dei comigo a pensar sobre o assunto e, vejo-me impelido a confessar que sinto uma certa inveja sã daqueles que, como ele, são imunes ao sentimento de clausura ilhoa.
Eu sou açoriano de coração – por ter nascido nas bandas de lá –, que, não sendo condição inferior, é talvez suficiente para me apartar dessa pacificação que o cronista parece sentir. Não será, naturalmente, sentimento exclusivo dos nados e criados ilhéus, mas parece andar mais arredado dos que aqui arribam e procuram assentar, mesmo daqueles que muito desbravem em sentido inverso (e tem sido uma constante, a todos os níveis). Por vezes, só por vezes, invade-me esse sentimento de aprisionamento, misturado, é certo, com a inevitável saudade nial. Quem a conhece saberá que é uma sensação tramada, quase depressiva, mitigada apenas com a colaboração da nossa Sata Internacional!
Dir-me-ão que estarei a caldear identidade, génese, saudade. Talvez tenham razão, mas o que me sobra dessa amálgama parece ser precisamente o sentimento referenciado na aludida crónica, aquela vontade de levantar âncora e abalar, ainda que por curto período…
Há muitas formas de viver os Açores, e a minha, não sendo a mais benévola, não me faz sentir, de forma alguma, um ser marginal nestas ilhas onde todos cabem! Muito me dá a ilha e prefiro encarar essa mescla de sentimentos como um “apelo da terra que me pariu”, ou um aguçar do sentimento de pertença, que jamais quero perder. Prefiro justificá-la assim a procurar na ilha insuficiências que expliquem a minha vontade de existir também do lado de lá!
Sim, sinto a insularidade, mas procuro viver bem com ela. 
Daniel de Sá falava-nos de uma “dupla insularidade”, quando se referia às ilhas orientais, eu estarei ainda (e para sempre) em processo de "ilharização"… 

Ao Nuno, um especial agradecimento!