sábado, 6 de janeiro de 2024

A Força das Sentenças



«Estar doente sem direito a cura é algemar a esperança, decapitar a fé. 

Um homem pode adoecer de qualquer coisa, mas não lhe roubem a luz ao fundo.»

in A Força das Sentenças, Pedro Almeida Maia

 

O último mês de 2023 revelou-se excecional para o mundo literário açoriano. Encerrámos o ano a festejar a vitória de Pedro Almeida Maia, que arrecadou o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes 2023, com a sua mais recente obra, A Força das Sentenças.

Os jurados Idalina Rodrigues, Mila Mariano e Carlos Café decidiram, por unanimidade, distinguir esta novela de entre cento e vinte obras a concurso «[…] pela atualidade do tema, pela originalidade e pela criatividade […]». Foi ainda destacada a «[…] linguagem metafórica evidente na preocupação do autor em causar impacto no leitor […]» traço aliás distintivo da escrita de Almeida Maia, tendo sido já colocada em evidência em outros trabalhos seus. A obra vencedora deste prémio, atribuído pela Câmara Municipal de Portimão, «[…] com o objetivo de promover e estimular a criação literária.», foi editadapela On y va e já se encontra disponível para comercialização.

Dividida em vinte e cinco capítulos, esta novela traz à luz do presente a condição final de um doente de Alzheimer, assim como todas as adaptações familiares e logísticas que o avançar da doença acarreta. Repetidas falhas de memória de acontecimentos recentes (a contrastar com a nitidez de um passado vivido há muito), confusões constantes, desorientações geográficas, dificuldades no cumprimento das rotinas de higiene, vestuário e outras ditam o diagnóstico e o destino de um homem viúvo que, em busca de um acompanhamento mais eficaz, se vê obrigado a trocar o seu Alentejo de quarenta anos por uma nova moradia na cidade de Coimbra

Almeida Maia redigiu um texto marcadamente realista, decerto assente em vasta informação recolhida, o que lhe conferiu a oportunidade de manter um discurso coerente, firme e objetivo do princípio ao fim da novela, mesmo considerando a progressão da doença, que redundou numa expetável gradação crescente de angústia e sofrimento. Por outras palavras, há uma progressão natural do discursoque surge paralelamente ao desenvolvimento da própria doença da personagem.

O autor de A Escrava Açoriana optou por abordar um tema substancialmente diferente daqueles sobre os quais tem escrito, todavia, fê-lo com o rigor a que já habituou os seus leitores. A preferência pela narração autodiegética, portanto em primeira pessoa gramatical, faz aqui toda a diferença, já que acentua o realismo da própria doença, abrindo ao leitor janelas pelas quais pode visualizar aforma como um cérebro cansado e em fase de demência se comporta, quando afetado pela doença. Esta será, seguramente, a maior riqueza deste texto, sendo, ao mesmo tempo, sintomático do virtuosismo do autor, por ele próprio se ter emprestado essa posição tão delicada e especial. 

A Força das Sentenças, escrita em memória de Hélder Corrêa Melo, é, em muitos momentos, um texto pesaroso, sobretudo, quando o próprio doente atravessamomentos de pálida lucidez e se apercebe, ainda que vagamente, da sua situação clínica e de como ela condiciona a vida dos que o rodeiam: «Não tenho conseguido agradar à minha filha e não sei o porquê de isto estar a acontecer. Continuo a tentar ser eu mesmo, apesar da doença.»; «Esta doença veio rasgar-me a vida e destroçar a felicidade da minha filha. Sou maior empecilho do que ajuda, maior entrave do que facilitador. O melhor é mesmo desaparecer.»

Típicos desta forma de demência (cada vez mais prevalente na população mundial), são os sintomas comportamentais obsessivo-compulsivos, e Almeida Maia teve o cuidado de os incluir nesta narrativa: a intransigência ante a mudança de local de determinados objetos, os diversos episódios com o pudim de coalhada ou com a rede esticada no jardim exterior da moradia são exemplos disso mesmo.

Aqui são amplamente honrados todos os doentes de Alzheimer e até outros que padecem de outros tipos de demências. Almeida Maia oferece-nos um texto muito bem estruturado, conferindo o tempo certo a cada estádio da própria doença, e sempre em direção ao inevitável, numa cadência equilibrada, que envolve o leitor, retendo-o na leitura. Nunca revela uma atitude paternalista, e expõe ao leitor a doença em toda a sua severidade. Digna de referência é também a visão sobre o cuidador do doente, dando nota da exigência requerida para que o acompanhamento seja o mais eficaz possível.

A obra culmina com o brilhantismo de um Epílogo que terá, forçosamente, de inculcar diversas questões sobre a nossa própria existência, sobre a nossa condição humana e sobre a forma como nos movemos enquanto membros integrantes de uma comunidade. Temos entre mãos um livro que espelha fielmente as vicissitudes de uma temática muito atual, muito angustiante e sempre demasiado dolorosa. Foi escrito numa linguagem pertinenteajustada e assente no estilo próprio a que o autor nos habituou. Convenhamos que não foi por mero acaso que Almeida Maia se destacou de entre os cento e vinte trabalhos levados a concurso e ganhou mais este prémio, que tão bem reconhece o excelente percurso que o autor tem vindo a trilhar.

 

Pedro Almeida Maia, A Força das Sentenças, On Y Va, dezembro de 2023

quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

FALO DOS FRIOS DA AMÉRICA DO NORTE


Há nos frios da América do Norte um Portugal diferente deste plantado no velho continente, há quase novecentos anos. Um Portugal mais pequeno, é certo, mas muito solidário e extremamente caloroso. Ali recebe-se de braços bem abertos e envolve-se quem chega num abraço fraterno. Deparei-me com portugueses que sentem ainda um enorme orgulho dos seus símbolos mais representativos, a língua, em particular, e que estão longe de se aterem exclusivamente à mostra de uma etnografia que, sendo importante, não se assume como único interesse destas pessoas. Senti um Portugal capaz, atento à vida que flui tanto do lado de lá, como deste lado do Atlântico. Encontrei uma comunidade que se organiza, que se quer assumir participativa e se encontra munida de massa crítica bem acentuada, o que sedimenta a participação cívica e organizacional. Falo de portugueses capazes e com ideias alternativas, revestidas pela modernidade que emerge da sã convivência com o mundo mais desenvolvido, o que redunda num substancial alargamento de mundividência, que convém registar. Confesso que foi nesta viagem que compreendi, em definitivo, a importância de o Governo Regional dos Açores manter, ao longo dos anos, uma Direção Regional das Comunidades no seu organigrama.  Deparei-me com gente focada no futuro, sem, todavia, esquecer as raízes e o trajeto que a trouxe até aos dias de hoje. Conheci na província do Quebec – Canadá –, um Portugal diferente deste onde cada vez mais vivemos isolados, entregues, quase em exclusivo, ao vazio das relações virtuais, a que as redes sociais nos votam. Ali, vi muitas pessoas alinhadas em organizações identitárias, que lutam em conjunto pelo bem comum e que têm por móbil único a ajuda ao próximo. Recordei, com saudade, aquela postura altruísta, de sentido comunitário que vivi apenas durante a lonjura da minha infância, e que era mantida por amigos e vizinhos da minha casa, na rua da Bela Rosa, ao longo das últimas duas décadas do século passado.

Confesso que foi uma verdadeira descoberta estar entre estas pessoas que, com o seu caloroso acolhimento, nos fazem esquecer do frio canadiano: açorianos orgulhosos, de enorme sentido telúrico e que carregam constantemente o arquipélago no coração. Com estes novos amigos, integrei uma percepção muito mais profunda e clarividente da expressão que garante que conhecemos melhor o “ser-se açoriano” assim que chegamos à diáspora, ideia, aliás, veiculada pela própria Natália Correia, no seu livro “Descobri que era europeia”.

Conheci pessoas muito interessantes, oriundas de diversos países do mundo, mas todas com pontos de vista reveladores e opiniões bastante diferenciadas, todas empenhadas em calcorrear um caminho que se pensa ser promissor, sem nunca olvidar o sítio de onde viemos.


A convite do jornal LusoPresse e do programa LusaQ TV, estive presente na “Conferência - A Comunidade Portuguesa do Quebec - Uma Visão do Passado, Presente e Futuro”, levada a efeito na Casa dos Açores do Quebec, onde fui recebido com enorme simpatia e fraternidade. Foram dias de trabalho intenso e, por entre intervenções de grande valia, tive a oportunidade de partilhar a minha opinião sobre o estado atual da literatura açoriana, valendo-me, para tal, de duas grandes obras recentemente publicadas: “Os Velhos”, de Paula de Sousa Lima, e “A Escrava Açoriana”, de Pedro Almeida Maia.

A conferência esteve muito bem organizada; os temas desenvolvidos, para além de ecléticos, revestiram-se de atualidade e pertinência assinaláveis, tendo havido espaço para a discussão e partilha de reflexões.

Houve o painel dedicado à Emigração/Imigração, onde se sublinharam os problemas de sucessão geracional entre os emigrantes portugueses naquela comunidade, lamentando-se o afastamento dos mais jovens, que, compreensivelmente, vão talhando os seus percursos sujeitos cada vez mais a um processo de natural aculturação. Houve, no entanto, quem apontasse possíveis soluções para contrariar esta realidade, em especial as geminações entre cidades e comunidades. No painel dedicado à mulher, foi possível traçar o perfil da mulher emigrante de há setenta anos, em contraponto com o paradigma a que agora se assiste, salientando-se as profundas alterações entre um tempo e outro, havendo mesmo quem se congratulasse com a diminuição significativa das desigualdades de género. Houve espaço para os mais jovens se pronunciarem e, em boa verdade, fizeram-no de forma muito comprometida, deslumbrando os presentes e deixando no ar uma esperança no futuro. Falou-se de comunidade e da sua representatividade e importância local, regional e até nacional, e ao serviço dela, discutiu-se de forma muito participada os meios de comunicação social, concluindo-se que, embora indispensáveis, há que pensar o futuro e nos desafios que este trará. A terminar houve espaço dedicado à literatura, artes plásticas e de cena, onde diferentes intervenientes se debruçaram sobre ramos distintos da cultura, mas onde todos concordaram com o papel basilar que esta terá de assumir em qualquer comunidade.

Paralelamente aos trabalhos, houve tempo para homenagear aqueles que se destacaram nas suas áreas profissionais, ao longo do último ano, mantendo desempenhos de excelência e em prol do desenvolvimento da própria comunidade portuguesa e açoriana do Quebec.

Falo-vos de uma experiência muito enriquecedora, espelhada em sinergias de qualidade reconhecida, e que possibilitou o contacto com pessoas excecionais, profissionais de excelência de um e de outro lado do Atlântico.

A terminar, deixo um especial agradecimento a Norberto Aguiar, alma do jornal LusoPresse e do programa LusaQ TV, o grande impulsionador desta conferência, por todo o seu labor e esforços para que tudo pudesse terminar no sucesso que se almejava.

sexta-feira, 3 de novembro de 2023

Metrosídero da Maia


O nosso metrosídero foi recentemente alvo da atenção e dos mimos prestados pelos nossos formandos, de um dos cursos de Profij. Está envaidecido, todo engalanado, de copa rente, mas frondosa; a raiz desenha-se saudável, arreigada à altivez costumeira. Exibe a sua nobreza a quem nele detenha o olhar, e mostra-se vigoroso o suficiente para enfrentar os rigores do inverno que se aproxima.

sexta-feira, 27 de outubro de 2023

9 Poetas 9 Línguas


É gosto participar neste projeto e integrar este conjunto de pessoas que tanto admiro e cuja escrita tanto gosto. Não sendo poeta, confesso que me deu gozo ver a singeleza dos meus versos traduzida em 8 línguas tão distintas como o francês, inglês, alemão, castelhano, neerlandês, esloveno, italiano e tétum. 

É um volume muito bonito, asseado por uma belíssima fotografia de capa da autoria de Marco Costa, meu amigo de sempre.

Está de parabéns a coordenadora desta edição, a infatigável e muito querida Professora Helena Chrystello, por mais este trabalho, que tanto dignifica a cultura e literatura açorianas.

domingo, 8 de outubro de 2023

Os Últimos do Estado Novo



José Pedro Castanheira será por muitos reconhecido como um dos grandes nomes do jornalismo português, sobretudo a partir do último quartel do século XX e até aos nossos dias. Embora com formação de base em Economia, desde cedo enveredou pelo jornalismo, tendo feito uma pós-graduação na área e trabalhado em jornais de grande destaque, como são exemplos “A Luta”, “O Jornal” e, durante quase trinta anos, o “Expresso”, onde se dedicou afincadamente à grande reportagem e ao indispensável, mas cada vez mais raro, jornalismo de investigação. 

Vencedor de inúmeros prémios, de onde se destacam alguns dos mais prestigiados atribuídos em Portugal, é autor e coautor de diversas obras de referência, das quais sobressaem «Jorge Sampaio: uma biografia» (2 vol., 2012/2017) e «Volta aos Açores em 15 Dias» (2022), a sua primeira incursão literária fora do âmbito jornalístico e que lhe valeu a distinção com o “Grande Prémio de Literatura de Viagem APE – Maria Ondina Braga”. A propósito deste, o autor esteve recentemente em périplo pelo nosso arquipélago (pelo qual sente especial atração), dando a conhecer a todos esta obra singular, que granjeia, com toda a justiça, o seu lugar junto dos mais belos livros de viagens que têm os Açores como ponto de referência. Como se escreveu a propósito desse extraordinário diário de bordo, VA15D - como o autor decidiu nomeá-lo - é «o sentimento ilhéu [que] lhe molda as ilhargas do coração.»

Volvido praticamente um ano após essa publicação, chega agora aos escaparates das melhores livrarias nacionais «Os Últimos Do Estado Novo», um extraordinário volume editado pela Tinta da China e que tem como móbil primário um olhar completamente inusitado sobre diferentes protagonistas do Estado Novo: seus colaboradores e apoiantes, mas também aqueles que lutaram contra a opressão e as políticas intimidatórias e de repressão. Castanheira não inclina a sua atenção para os de sempre, para os grandes vencedores e que, a cada ano, são justamente lembrados aquando da comemoração da Revolução dos Cravos. Ao invés, o autor lança o seu olhar sobre os perdedores. «Dos fracos não reza a história», assim se abre a apresentação do livro assinada pelo próprio José Pedro Castanheira, acrescentando pouco depois que, «Dos fracos, mas também dos acabados, dos abatidos, dos esgotados, dos desistentes, dos covardes, dos derrotados – dos últimos.» Efetivamente, se nos detivermos a pensar, quando mencionados, são-no meramente para servir de contraponto à glória investida nos lutadores vitoriosos. 

Durante os vinte e oito anos de trabalho no semanário “Expresso”, coube ao autor a tarefa de organizar a fórmula comemorativa da data, preferencialmente uma que se distinguisse pela diferença e inovação. Sendo partidário da ideia de que o «25 de Abril foi o acontecimento mais marcante do século XX português, não apenas para [si], mas para a esmagadora maioria dos portugueses», foi-se interrogando que diferentes razões teriam justificado uma tão prolongada ditadura no nosso país, «a mais longa ditadura pessoal do século XX». Mantendo por premissas estas dúvidas, partiu «à procura das razões que explicariam a espantosa longevidade do Estado Novo», ao que se seguiram diversos contactos, telefonemas, viagens, muitas conversas com pessoas pertencentes “à máquina” que manteve toda aquela estrutura a funcionar durante tantos anos, pessoas ligadas ao partido único, à PIDE, e a outras estruturas de grande relevo. Desses trabalhos, realizados ao longo dos anos, destacam-se o último diretor da censura, o último presidente do partido único, o último responsável do campo de concentração do Tarrafal, os membros do último Governo da ditadura, o último secretário pessoal de Marcello Caetano, o último deportado, os últimos presos políticos, a última entrevista dada por Oliveira Salazar. 

É a partir desses trabalhos jornalísticos que surge o título do livro agora em apreço, assumindo-se imediatamente como inevitável: «Os Últimos do Estado Novo».

A obra chega dividida em capítulos, que surgem organizados numa linha cronológica invertida, ou seja, abre o volume o acontecimento mais recente, “O Último Diretor do Campo do Tarrafal”, encerrando-o o acontecimento mais longínquo na linha temporal, “O Último Plenário Dos Sindicatos Corporativos”.

Este é um livro surpreendente e factualmente muito rico, recheado de inúmeros pormenores extremamente interessantes que, por motivos que ultrapassam a compreensão, não surgem nos compêndios escolares e, por isso, facilmente passam ao lado do conhecimento da maior parte da população portuguesa atual. 

Não raras vezes, para não arriscar todos os anos, ouvimos que a comemoração da efeméride se encontra gasta, que já não prende a atenção nem  motiva a participação dos mais jovens, que são sempre os mesmos intervenientes, tendência que poderia ser contrariada se o ensino desta importantíssima página da nossa história se assumisse um pouco mais completa, lançando os dois lados da contenda aos jovens alunos, relatando-lhes todos os pormenores que se vieram a assumir de grande relevo, como corajosamente o faz José Pedro Castanheira, assumindo, desde logo, que não se cansa «de dizer que o mundo, na vida, na história e, portanto, no jornalismo, como relato que deve ser da realidade e do quotidiano, há muito mais cores e matizes para além do preto e do branco (…)». Dar voz aos outros, àqueles que não venceram, não significa glorificá-los, muito menos dar-lhes razão.

Ao longo desta aliciante leitura, não se sentem quaisquer tendências para incriminar ou mesmo para desculpar quem quer que seja. Há, ao longo de toda a obra, uma notória isenção por parte do autor. Ele questiona, relata, cita documentos e entrevistas, pelo que o leitor terá sempre a possibilidade de muito bem ajuizar a história, agora que toma conhecimento de todos os contornos.

Outra das grandes vantagens deste volume é a vivacidade impregnada na própria leitura, sobretudo, pelo recurso e integração de diversas tipologias de texto. Há, naturalmente, o narrativo, com peças jornalísticas ricas e de elevado valor histórico, o descritivo, com inclusão de trechos absolutamente incríveis, destacando-se dois, por muitos, completamente desconhecidos: o episódio da rendição de Marcello Caetano, que pega numa arma sugerindo o seu próprio suicídio, caso o poder não fosse entregue a Spínola e, o melhor deles todos, a última entrevista de Oliveira Salazar, concedida a Roland Faure, destacado jornalista francês que já o entrevistara antes por duas vezes, tendo o caudilhe assumido que ainda era o Presidente do Conselho, quando, na prática, já havia sido substituído em setembro de 1968, portanto, vários meses antes, encontrando-se o velho ditador a viver, desde então, uma farsa encenada por todos quantos o rodeavam, membros do Governo inclusivamente. A contribuir para a cadência da leitura, destaca-se ainda uma fabulosa entrevista a Pedro Feytor Pinto – o último porta-voz de Marcello Caetano –, de onde sobressai a pertinácia e o arrojo de um homem fiel ao regime e preocupado com as questões mais prementes do seu tempo: a Guerra do Ultramar e as relações internacionais de Portugal. Ainda nesta entrevista e de elevado grau de interesse, é a sua perspetiva sobre os acontecimentos ocorridos em Moçambique, no final de 1972, naquele que ficou conhecido como o Massacre de Wiryamu, um horrendo vexame internacional para Portugal, e do qual, incompreensivelmente, ainda hoje pouco se fala…

De interesse suplementar, refira-se ainda a possibilidade que o autor concedeu a antigos presos políticos, para que estes pudessem, anos depois, colocar perguntas diversas aos seus carcereiros, nomeadamente a Eduardo Fontes, o último diretor do campo do Tarrafal. As respostas são singulares, e conduzem o leitor à dúvida, pelo que se reitera o interesse de se escutar ambos os lados da contenda.

Já o capítulo “Os Últimos Presos Políticos” oferece diversas vantagens, mas destaca-se a ignomínia de que eram capazes alguns agentes da PIDE que, mesmo sabendo da queda do regime, procuraram extorquir avultadas maquias aos presos que ainda mantinham sob custódia e isto, mesmo sabendo que, em breves horas, os teriam de libertar. 

De “O Último Governo da Ditadura” extrai-se informação muito vasta sobre o destino das 36 pessoas que integravam o dito elenco governativo, Marcello Caetano, inclusivamente. É um trabalho um pouco mais exaustivo, embora em nada maçador, pelo contrário, e que nos dá a perspetiva não apenas dos receios daqueles que perderam, mas também da condescendência e do humanismo dos que tomaram posse. Aliás, torna-se muito interessante perceber a abertura do novo estado democrático ante alguns dos protagonistas da caída ditadura, integrando-os em cargos públicos e alguns de grande destaque nacional. 

Uma palavra breve de reconhecimento pela disponibilização de bastos registos fotográficos, grande parte deles integrante de arquivos particulares, pelo que, não fosse o profissionalismo do autor, certamente nunca chegariam ao conhecimento do público. De registo ainda a completude do índice onomástico, que, por certo, tanto jeito trará a quem se debruce sobre este livro numa perspetiva de estudo mais aprofundado. 

Está de parabéns o autor pela compilação de todos estes trabalhos, alguns agora melhorados e aumentados, contribuindo desta forma tão enriquecedora e rigorosa para aclarar dúvidas, desfazer imbróglios ou, pelo menos, para lançar novas perspetivas sobre o desenrolar dos acontecimentos deste importantíssimo naco da história recente do nosso País.


José Pedro Castanheira, «Os Últimos Do Estado Novo», Tinta da China, 2023

P.S.  O lançamento de «Os Últimos do Estado Novo», acontece esta segunda-feira, dia 9 de Outubro, às 19h00, na Fundação Calouste Gulbenkian, e será apresentado pelos filhos de Mário Soares e Marcello Caetano, Isabel Soares e Miguel Caetano, respetivamente.


#livrosEcoisasdessas

sábado, 30 de setembro de 2023

IMPROBABILIDADES CULTURAIS EM TEMPOS DE TURISMO DESAFORIDO



Confesso que, de uma forma geral, não me habituei ainda a esta nova realidade turística que se vive no arquipélago e em São Miguel, em particular. Desde a liberalização do espaço aéreo, em março de 2015, a face da ilha mudou significativamente: há mais pessoas em qualquer lugar que se visite, demasiado trânsito, uma pressão ambiental que merece preocupações legislativas, os preços galoparam desenfreadamente em áreas tão distintas como a hotelaria, a restauração ou a habitação, colocando um travão em alguns dos hábitos que nos eram possíveis num passado não muito remoto.

Reconheço e compreendo, todavia, os argumentos embandeirados a favor desta nova “galinha de ovos de oiro”, concretamente as mais-valias económicas geradas em diversos setores da frágil economia açoriana: dinamizou-se a construção civil, gerando-se novos empreendimentos que resultaram em mais emprego, maior circulação de capital, novas formas de negócio e, consequentemente, melhores condições de vida para muitos. É o mais importante, não tenho grandes dúvidas. Ainda assim, para aqueles que, como eu, não estão de forma alguma ligados a esses setores, há que reconhecer uma acentuada quebra na qualidade de vida que a ilha vinha oferecendo a quem aqui vive.

Mas nem tudo é mau, convenhamos. Se é verdade que esses aviões desprovidos de grande conforto atulham a ilha com gente, não é menos verdade que a alargam trazendo-nos a realidade de novos mundos, carreando diferentes culturas, formas de estar e hábitos distintos daqueles que reconhecemos como nossos. Ninguém discordará que se tornou muito interessante calcorrear ruas da Baixa de Ponta Delgada e, em poucos metros, cruzar com pessoas diferentes, cada uma a falar a sua própria língua, ou então numa das muitas esplanadas da moda, ouvir alguém que, em esforço, procura ler em português, aquela frase que salta do guia turístico tido entre mãos e que lhe trará o desejado bolo lêvedo com queijo de São Jorge, acompanhado pela tradicional meia-de-leite ou mesmo a famosa Kima, vista já como uma bebida tradicional micaelense. É também verdade que, por via do turismo, muitos estrangeiros se fixaram cá e vivem entre nós, enriquecendo culturalmente a ilha e os seus habitantes. São proveitos assinaláveis.

Fruto dos tempos e destes mais recentes paradigmas, muitos são os empreendedores e os novos conceitos de negócio que se vão desenvolvendo e que procuram o seu espaço de mercado. Alguns conseguem afirmação plena, tornando-se mesmo numa referência na área, como é exemplo a “Casa Improvável”, um espaço cultural dedicado à arte em geral, instalado na improbabilidade da zona das Socas, na freguesia do Livramento, em Ponta Delgada. Uma antiga taberna onde antes se juntava a comunidade na alegria do convívio, convertida numa galeria de arte “[…] para ficar, criar e mostrar […]” o trabalho desenvolvido por quem lá se queira quedar. É uma aposta de sucesso no âmbito da promoção e descentralização cultural que se vai operando em São Miguel. Falo de um espaço ímpar, acolhedor e dinâmico, muito versátil, sendo capaz de se transmutar, mantendo, todavia, a sua marca distintiva a cada atividade promovida. Trata-se de um espaço agregador, tendo já fidelizado um público muito diverso, que vai desde os fregueses do Livramento, até ao turista que chega vindo do outro lado do mundo. O trabalho dinamizado pelos seus promotores – Bruno Gomes e Marco Costa – tem-se pautado por essa capacidade de atrair artistas locais, regionais, mas também outros de latitudes internacionais. Se numa semana é possível apreciar o trabalho da artesã Maria da Conceição (vizinha do lado da própria galeria de arte), noutra podemos deparar-nos com as magníficas fotografias subaquáticas da reconhecida artista e fotógrafa polaca Martina Trepczyk. Como os próprios responsáveis deste projeto adiantam, “um lugar para mentes criativas, para viver e experimentar a vida na ilha, ao mesmo tempo que se inspiram para fazer coisas novas […].” Aqui não há uma agenda preconcebida, e as ideias vão surgindo a partir de conversas informais ou então nascem das sinergias criadas através da interação entre amigos. É exemplo a próxima exposição, a decorrer a partir de 30 de setembro, com trabalhos da autoria da artista continental Ana Félix.

Esta será, certamente, uma das vertentes positivas deste Boom turístico. Ante a exigência, a ilha ajeita-se para bem receber quem chega (e mesmo quem por cá reside) e procura responder às novas necessidades que o público, cada vez mais heterogéneo e ambicioso, procura.

(Diário dos Açores, 30 de setembro de 2023)

📷 Marco Costa

 


terça-feira, 29 de agosto de 2023

A NOSSA PRIMEIRA ESTRELÍCIA


 A NOSSA PRIMEIRA ESTRELÍCIA 


Desde tenra idade, sempre me encantaram as flores, fossem as mais simples e campestres, crescidas por entre eucaliptos, pinheiros ou giestas-bravas, na bouça atrás da casa da minha avó materna, fossem as outras, aquelas mais caras, chiques, compradas na florista, que a minha avó ou mesmo a minha mãe acolhiam com todo o esmero em vasos bonitos, antigos e de faiança cobiçosa.

É certo que um rapazote de oito ou dez anos não confessava esse gosto ante os outros, não fosse o capricho chegar aos ouvidos do grupo de amigos e, aí sim, estaria o caldo bem entornado: “Olha aquele gosta de flores”. Todos sabemos como em determinadas idades somos capazes de valentes crueldades, não vale a pena escamotear muito mais o assunto.

Todavia, por essa altura, havia uma flor que me encantava em particular: linda, exuberante, desigual de todas as outras que conhecia até então, com as suas cores fortes e formato inusitado: era a estrelícia ou como também é conhecida a ave-do-paraíso.

Tomei conhecimento da sua existência, porque, anualmente, e até há pouco tempo, um casal pacense, há muito radicado na ilha da Madeira, ofertava caixas e caixas de estrelícias com a finalidade de alindar a Igreja Matriz de Paços de Ferreira, para a celebração do Natal (segundo me garante a minha mãe, já que tinha memória de que fosse por altura Pascal). 

Para nós, miúdos (e graúdos também) aquilo era um motivo de grande orgulho, ver o velho templo todo engalanado, vaidoso por envergar aquelas cores alegres, vistosas, capazes de suster a atenção de todos e de quantos nos visitassem. Fruto do labor das senhoras responsáveis pelo adorno da igreja, era realmente notável o resultado final, e tudo em honra de Cristo, celebrando o seu nascimento.

Quando há vinte anos me mudei para São Miguel, fiquei admirado ao perceber que as estrelícias de que tanto gostava cresciam em rotundas e valetas por cimentar. Um mar laranja, azul e verde invadia-me constantemente o olhar. 

Na primeira oportunidade, e porque também o pequenino Filipe lhes acha graça, plantei uns pés no nosso jardim, num recanto previamente escolhido e preparado para as receber, mas durante dois ou três anos, não aconteceu nada, e a desilusão foi-se apoderando.

Até hoje, porque hoje floriu a nossa primeira estrelícia, e, embora pequenina e escanzeladinha, é a mais bonita que alguma vez vi! É a nossa primeira estrelícia, aquela que me carregou até à minha juventude e me trouxe de volta (passe o pleonasmo)o brilho do olhar que, há trinta anos, pousava naquelas que adornavam a Matriz de Paços de Ferreira. 

Agora, outras se preparam para florir, sendo que aquele será, com certeza, o recanto mais bonito do nosso jardim!

quinta-feira, 24 de agosto de 2023

Raiz Comovida, de Cristóvão de Aguiar


(Uma moeda a quem chegue com a leitura até ao fim do artigo. É extenso, eu sei.)

RAIZ COMOVIDA, UM TRATADO DE LINGUAGEM; UM RETRATO ANTROPOLÓGICO 

Fruto da curiosidade, assim como de avisadas sugestões que foram chegando, encetei, recentemente, a leitura de «Raiz Comovida», o I primeiro volume da obra completa de Cristóvão de Aguiar, uma trilogia romanesca que engloba as obras «A Semente e a Seiva», «Vindima de Fogo» e «O Fruto e o Sonho». 

Tendo sido Cristóvão de Aguiar “um dos principais responsáveis pela afirmação cultural dos Açores após o 25 de Abril”, como bem afirmou Mário Mesquita, é muito provável que me chegue a censura pelo atraso com que enceto a leitura desta obra de referência da literatura açoriana, ou, pelo menos, que me surjam conselhos sobre como priorizar as minhas opções literárias. Num assumido e até um pouco envergonhado "mea culpa", responderei, sem quaisquer constrangimentos, que terão toda a razão, estivesse eu mais atento, não me teria escapado a sentença de João de Melo, notável escritor açoriano, que se referiu a este texto como “uma experiência linguística sem precedentes”, motivo mais do que suficiente para lhe lançar um cuidado olhar. 

Não obstante, por saber tratar-se de uma leitura de relevo e, por isso, antecipá-la demorada, marcada, muitas vezes, por idiossincrasias linguísticas e outras dificuldades lexicais, como um linguajar popular ilhéu, bem arredado dos cânones escolarizados e urbanos tradicionais (não raras vezes há de o leitor valer-se do Glossário que encerra a obra), optei, primeiramente, por ler outras obras do autor, destacando-se o «Braço Tatuado» (Publicações Dom Quixote) almejando, dessa forma, a entrada no universo literário do autor, antes de me aventurar neste Raiz Comovida. Tolice minha, confesso! Não me custa adiantar que não haverá o que nos prepare para a leitura deste livro: um verdadeiro tratado da linguagem, revestido por um brilhantismo literário como há muito não lia.

Há neste volume uma verdadeira homenagem, para além de um retrato fiel, a todo aquele mundo rural e açórico de que já poucos terão memória, e refiro-me não apenas à riqueza do linguajar popular das gentes rurais micaelenses, onde o erudito não tinha lugar, mas também, e sobretudo, às imagens sociológica, económica, religiosa, que aqui nos são dadas a conhecer, e que versam temas quotidianos tão díspares como a importância da matança do porco para a economia familiar, as sempre muito curiosas e por vezes bem acesas disputas entre associações musicais vizinhas, os diversos rituais religiosos, muitas vezes esvaziados de Fé, mas sempre vividos com grande fulgor social, não olvidando as curiosas peripécias ocorridas quer em momentos sacros quer em profanos, os namoricos, sejam os permitidos e à janela, sejam aqueles ocultados pela tenacidade de um amor proibido, mas aqui também se alude à emigração, às idas para a América das oportunidades, as que seguiam os trâmites legais, mas também as outras, as fugas “embarcadas de calhau”, a homossexualidade e tantos outros. No fundo, retrata-se a dureza (e por que não dizer miséria?) da jorna, uma constante nos mais diversos meios de subsistência que a ilha tinha à disposição, oferecendo em troca nada mais do que a mísera “côdea de pão”, que, dividida pelos que se sentavam à mesa, mal dava para matar a fome.

Cristóvão de Aguiar oferece-nos, então, um quadro antropológico centrado na ruralidade ilhoa “isolada e empobrecida”, e que se espraia pelas primeiras décadas da segunda metade do século XX, desenhando uns Açores idos, mas cuja história convém conhecer, pelo que, em boa hora, a Edições Afrontamento eternizou, por ocasião dos cinquenta anos de vida literário do autor, toda a sua obra em diversos volumes.

Quando se fala de Cristóvão de Aguiar torna-se frequente a referência a sua forma complexa de ser e de se relacionar com os outros, menção compensada, de imediato, pelos rasgados elogios à qualidade da sua escrita. Miguel Real (conceituado crítico literário), por exemplo, assume dificuldade para discernir qual das obras literárias pode ser considerada a mais importante obra romanesca açoriana pós-25 de Abril de 1974, se a trilogia de «Raiz Comovida», se o volume singular de «Gente Feliz Com Lágrimas», do virtuoso escritor João de Melo, sendo que não alcançando resposta que o satisfaça, assume que “são duas obras que enfileiram na galeria dos grandes romances da história literária portuguesa do século XX.”

Conquanto não possa invocar as “razões afetivas” que outros moveram até ao apelo à leitura, posso, todavia, concordar com esses quando o adjetivam de “magistral” e o classificam como uma “referência inestimável”, porque, em boa verdade, é disso mesmo que falamos. 

Cristóvão de Aguiar nasceu no Pico da Pedra, na ilha de São Miguel, onde iniciou a sua formação académica, tendo depois ingressado na Universidade de Coimbra, onde frequentou o Curso de Filologia Germânica, interrompido pela mobilização para a Guerra Colonial, tendo prestado serviço na Guiné. Finda essa campanha militar, regressa a Coimbra, terminando os seus estudos e encetando um período profícuo em termos literários e profissionais. Ao longo dos anos, ganhou diversos prémios, tendo sido agraciado com o grau de comendador da Ordem do Infante Dom Henrique, pelo então Senhor Presidente da República, Dr. Jorge Sampaio.

Sobre este autor, escreveu Luis Fagundes Duarte: “[…] o escritor que até hoje melhor conseguiu seguir os rastos daquela esteira de pó, desenhada pelos mortos e outras ausências, que define o percurso da tradição cultural que nos identifica como membros de uma comunidade - a comunidade açoriana.” 


Atrevo-me a deixar um estímulo à leitura, na esperança de que outros se possam sentir impelidos a ler esta maravilha da literatura açoriana.

“24 - Namoros de Janela Baixa

No tocante às raparigas casadoiras, era demais tamanha aperreação; pareciam freiras arrochadas no convento da casa; tudo quanto passa das marcas não dá muito certo; já lá diziam os antigos, com alguma razão, quem muito aperta, pouco arrocha; aperreadas dentro de quatro paredes durante dia e noite, só tinham licença de aparecer um nico à janela nas tardes pasmadas dos domingos e dias santos e, mesmo assim, nada de rédea solta, que as coriscas das mães eram umas cegonas, sempre de olho arregalado e nariz empinado, a farejar se havia mouro na costa, não fosse algum mais manhoso comer-lhe a filha de longe com olhares cobiçosos ou dar-lhe umas palavrinhas de boca pequena; mas a Divina Providência não se deixa dormir, e não há pior semente do que a da língua; o Ti Clemente Bufão tinha duas filhas gémeas, duas belas fêmeas, e o pai “gavava-se” de que não havia nenhum “fideputa” que se consolasse de as namorar e desfrutar, isto porque de uma vez bispou um fralda cagada qualquer rondando-lhe a casa, e o rapaz não era nenhuma peste, mas o Ti Clemente achava lá na sua que nenhuma das filhas regia para ele; vai daí, ao chegar ao fundamento de que o rapaz andava mesmo arrastando a asa lá pelas suas bandas, pregou as janelas da frente, e nenhuma das raparigas se podia chegar a elas; com as janelas pregadas a sete pregos, o Ti Clemente julgava que não podia haver mais dúvidas quanto a malícias de olhos ou falas de boca pequena entre eles; enganou-se redondamente; nunca mais houve, na verdade, a mais pequenina pitada de olhares trocados nem arreganho meiguiceiro de dentes; estava o Ti Clemente mui descansado e satisfeito com o seu tèsto proceder, quando, um belo dia, a mulher lhe veio dar a saber que ambas as filhas estavam cheias como vacas quase a parir; e mais, estavam pejadas do mesmo candeeiro de folheta, “inté” se dizia, por pilhéria, que uma delas estava de barriga do Divino Espírito Santo e o certo é que um dos “chinchins” ficou mesmo com o apelido de Menino Jesus; o Ti Clemente não queria acreditar no que ouvia à mulher e subiu aos arames da ruindade; ficou de cabeça desarrematada, queria à fina força pôr uma demanda em tribunal, mas, vendo que pouco ou nada amanhava, a não ser consumição e falatório ainda mais grande, pois o rapaz devia casamento às duas e só com uma se podia casar; com o desgosto, pegou o Ti Clemente em si e embarcou para a terra da América; uma das gémeas casou mais tarde com o rapaz que a tinha enganado, os pequenos tratavam-se por irmãos, chegando a zoar pela freguesia que aquilo era uma noite com uma e outra com a outra, o jogo da vez e outra, como no do pião - uma grande escândula que aconteceu na freguesia e neste ponto dou razão aos antigos quando diziam que quem muito aperta, pouco arrocha; se as raparigas tinham derriço que principiava nas festas do Divino ou nas da Senhora da Boa Viagem, penavam os olhos da cara para darem dois dedos de conversa com o noivo, que andava numa arredouça, para baixo e para cima, ou, “intance”, se as pernas pediam descanso, ia servindo de espeque a alguma parede ali ao pé, na mira de uma ocasião mais coisa e tal para despejar a saquinha dos sentimentos; as mais das vezes, era trabalho botado ao vento, e o rapaz ficava mais brabo que o mar das Calhetas, quando, por riba, lhe sopra o mata-vacas e não havia outro remédio senão esperar com paciência pelo Domingo que vinha […].” (págs. 129, 130)

A terminar, e porque já longa vai a prosa, talvez não fosse descabido, um olhar um pouco mais acutilante por parte da Secretaria Regional da Educação e dos Assuntos Culturais sobre estas pessoas que, através do seu trabalho, reconhecido virtuosismo e talento, para além de um assinalável comprometimento que já vem de longe, souberam eternizar cabalmente o que é isto de se ser açoriano. Nesse sentido, parece-nos imperioso, que sejamos um pouco mais arrojados, e sobretudo mais ecléticos, e tenhamos a coragem de conceder atenção à literatura de qualidade, atempando esse reconhecimento, para que possa ser celebrado condignamente: Não nos causaria quaisquer pruridos ver o nome de Daniel de Sá como patrono da EBI da Maia, assim como o de Cristóvão de Aguiar na da Ribeira Grande ou de João de Melo na do Nordeste, como aliás já acontece em outras unidades orgânicas de região. Entre outros, Dias de Melo e Vasco Pereira da Costa merecem, há muito, uma reedição dos seus belíssimos contos, sob pena de caírem no olvido coletivo; Pedro da Silveira, Emanuel Félix e Marcolino Candeias são relembrados quase exclusivamente pela iniciativa privada, e que atingem um público muito reduzido. Relembro, ainda, Fernando Aires, o expoente mais cintilante da diarística nos Açores e um dos melhores do país, e não tenho conhecimento de quaisquer iniciativas governamentais, no sentido de eternizar a obra e relembrar o homem. Houve o descerrar de uma placa em sua residência, mas a cargo da família e, apenas mais tarde, uma outra da responsabilidade da autarquia. Embora abra espaço a informação que me possa ter escapado, não obstante as diligências tomadas, parece-me francamente pouco, para retribuir o tanto que o autor nos deixou. Não haverá, nas nossas escolas, leitores interessados em ler os seus diferentes diários? Que se dissemine a obra. E os virtuosos Urbano Bettencourt ou Emanuel Jorge Botelho, em que têm contribuído os responsáveis governativos no sentido de prestar o justo tributo, ou, pelo menos, legitimamente reconhecer os tão profícuos trabalhos que têm desenvolvido ao longo de décadas, seja resgatando do esquecimento nomes que merecem um pouco mais de atenção, seja pela proficiente obra que ambos têm vindo a desenvolver. 

Há aqueles que, não residindo em território arquipelágico, muito se têm batido pelos Açores e pelas suas gentes, seja no Continente, seja na Diáspora, carregando muito da nossa terra até aos novos mundos, dando a conhecer, ensinando, incorporando os Açores e as vivências açorianas na mundividência alargada que se exige aos novos habitantes destes novos mundos. 

Eu corroboro aquela máxima que garante que a génese de um povo reside na sua cultura, pelo que descredibilizá-la será, em última instância, desvirtuar toda a história desse povo, lançando-o a um deus-dará cultural, e substancialmente pernicioso. Estou certo de que não será a pretensão deste elenco governativo, que já mostrou bastas vezes ser capaz de tratar a Cultura com o cuidado que se impõe, por isso, é da mais inteira justeza olhar para estas pessoas e para o seu trabalho, procurando dignificar umas e outro, conforme é seu legítimo merecimento, pelo tanto que nos têm dado.

Cristóvão de Aguiar, «Raiz Comovida», Edições Afrontamento, 2015

terça-feira, 1 de agosto de 2023

A MONTANHA COBRIU-SE DE LAVA E OUTRAS ESTÓRIAS


O professor Carlos Fagundes, florentino de nascença, apaixonado pela ilha do Pico e desde há muito radicado em Paredes, concelho nortenho de Portugal Continental, lançou recentemente o seu segundo livro, intitulado «A Montanha Cobriu-se de Lava e Outras Estórias», um conjunto de narrativas que têm o Pico como chão da sua ação. É inegável a riqueza do trabalho que o autor tem vindo a desenvolver no âmbito cultural, antropológico e até de índole histórico, direcionando-nos o olhar e a atenção para factos, vivências ou eventos de crucial importância, mas que, por algum motivo, tombaram na escuridão do esquecimento. Se com «Entre o Mar e a Rocha» – o seu primeiro livro – o tinha conseguido, a verdade é que não desapontou e nesta segunda incursão pela narrativa curta conseguiu manter a divícia da sua prosa, a fineza vocabular, a vivacidade narrativa e o interesse geral, captando a atenção do leitor desde a primeira à última estória narradas. 

Como acontecera com o seu antecessor, neste volume, o autor dá a conhecer uns Açores substancialmente diferentes dos que hoje se assumem como expoente turístico nacional e europeu. Em cada estória é aberta uma janela para um passado não muito distante – décadas 60 e 70 do Século XX –, mas, felizmente para todos, consideravelmente diferente da realidade em que hoje vivemos. Sem que com isso se procure quaisquer alusões políticas, será caso para sublinhar o tanto que evoluímos em tão pouco tempo. 

O título que empresta nome ao livro é o mesmo da narrativa de abertura, e recupera a crise sismovulcânica ocorrida no Pico, no início do Século XVIII, assim como a peste bubónica que afetou o Faial pela mesma altura. Uma vez mais, o autor parte de uma forte componente histórica para desenvolver as suas narrativas, intercalando eventos factuais com a necessária componente ficcional, criando, dessa forma, um ambiente de verosimilhança que, entre outros, capta a atenção do leitor.

Como foi já apontado por outros leitores, há no livro uma narrativa que se destaca das demais, não apenas por extravasar o universo picoense mas, sobretudo, por se assumir com premissas e qualidade suficientes para algo de maior monta: a viagem de um petiz a bordo do vetusto “Carvalho Araújo”, desde a ilha das Flores até São Miguel, onde viria a prosseguir estudos, ingressando no Seminário Menor de Santo Cristo. Esta narrativa nasce da memória do próprio autor, que realizou esta mesma viagem e a descreve com admirável minúcia, oferecendo-nos um relato tão preciso e impressionante que ninguém ousaria afirmar tratar-se de uma memória com mais de cinquenta anos. Nessa medida, seria muito conveniente eternizar este período tão interessante numa outra obra, eventualmente um romance ou mesmo um livro de memórias.

Permitindo-nos uma pequena deriva, tem sido muito interessante verificar em conversas ou em leituras diversas, a forma como diferentes autores açorianos (Professor Carlos Fagundes incluído) se referem ao “Carvalho Araújo” e às suas viagens. Descrevem-nas sempre como muito difíceis, salientando, particularmente, o tempo despendido em cada viagem, assim como as recorrentes dificuldades gástricas, mas fazem-no sempre com muito enlevo, detalhe e até com um notório resquício de saudade. Tenhamos presente a importância que o velho paquete trazia à vida das pessoas e à economia açoriana e madeirense, em geral, justificando-se, talvez por isso, um certo romantismo em torno destas travessias atlânticas, fossem abordo desta ou de outras embarcações da “Empresa Insulana de Navegação”. 

A riqueza desta obra não se esgota no que fica dito, passando também pelo detalhe e subtileza com que o autor se muniu para caracterizar o povo português e açoriano, em particular. Assuntos triviais da vida quotidiana e outros de maior relevo histórico são tratados com delicadeza e aparente simplicidade, o que, já sabemos, é de dificílima execução. Por entre estas páginas há muito daquilo que nos faz portugueses açorianos, desde logo a capacidade de reação perante as adversidades resultantes das diferentes calamidades naturais que recorrentemente nos assolam, assim como o humanismo e a generosidade daqueles que, mesmo de parcos recursos, não hesitam no momento de disponibilizar o pouco de que dispõem ante miséria do vizinho, ou mesmo do desconhecido. Outra das características transversais a muitos destes textos é o recurso ao sentido de humor, mesmo naquelas situações que se revestem de risco e perigosidade. 

Como escreveu Manuel Serpa no interessante prefácio que abre a obra, “É sempre com redobrada expetativa que acolhemos as novas iniciativas literárias do Carlos Fagundes”, que tem trilhado um percurso em crescendo, pautado pelo brilho da qualidade literária e revestido de um enorme interesse sociocultural. É muito importante que haja quem se disponha a eternizar modos de vida, usos e costumes idos que, de outra forma, cairiam miseravelmente no olvido, perdendo-se, assim, muito daquilo do que fomos e do que está na génese do que hoje somos. Quando encontramos quem o faça, com a vantagem de o fazer com mestria literária, cabe-nos, naturalmente, agradecer e, com ânsia assumida, esperar pela obra que se seguirá.

Carlos Fagundes, «A Montanha Cobriu-se de Lava e Outras Estórias», Letras Lavadas edições, 2023