domingo, 26 de abril de 2020

Flores de Quarentena

Cumpridas as cada vez mais compridas obrigações profissionais e domésticas, decidimos - a Susana e eu - dar um passeio pela mata que nos rodeia a casa. Assim que se apercebeu da saída iminente, o Filipinho ficou felicíssimo e correu de imediato para o portão. Regozijava e, em boa verdade, nós também! Nestes dias de confinamento, estes espaços circundantes granjeiam uma dimensão que até agora não possuíam. Hoje, vemo-los como uma extensão benigna da nossa própria liberdade, e facilmente percebemos a sorte que temos, comparativamente com a de alguns amigos que se veem obrigados a cumprir o distanciamento social confinados em pequenos apartamentos citadinos.
A tarde terminava, mas nem por isso se apresentava menos convidativo o passeio. O sol, ainda alto, aquecia-nos a pele acendendo uma sensação de benévolo conforto, e à medida que nos embrenhamos na vegetação, o chilrear dos pássaros convertia-se na melodia perfeita. 
Saímos com a intenção de colher flores. A Susana gosta muito de iluminar a sala com jarras vestidas de todas as cores. Embora não mo diga, sei que aprecia também o perfume que se adentra, assim que as coloca no local que lhes estava destinado há muito. Ela sabe fazer aqueles arranjos, quase profissionais, combinando verdura e flores na medida exata. Eu também gosto de as ver ali, assim como de sentir o seu perfume pela casa, mas o que mais aprecio é o tempo partilhado e, essencialmente, as memórias que, a partir delas, o Filipe e nós mesmos vamos criando.
A Susana colheu uns jarros viçosos e novos. Aguentarão uns bons dias. O Filipe e eu escolhemos uns malmequeres-amarelos.
Hoje foi um dia bom!

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Os dias adejam


Os dias adejam mais ou menos indistintos por um calendário cada vez mais comprido e de contornos sobejamente desconhecidos.
Ao contrário do que vamos lendo aqui ou vendo acolá, cá em casa, ainda não nos rebelamos contra toda esta situação: temos encarado este período de quarentena de forma tranquila, mas, ao mesmo tempo, de forma responsável e profundamente crítica, por não ser coisa pouca a que está em risco! Ao contrário do que temos percebido, consideramos pouco prudente a tomada de decisões precipitadas e denunciadoras de um cansaço excessivo, fruto do confinamento, e que se traduzem num sobejo de confiança, que nos parece injustificado e até perigoso, colocando mesmo em causa o esforço de tantos ao longo de tanto tempo. A este propósito, não percebemos como pode alguém ponderar a abertura de escolas ao mesmo tempo que se encerram de forma compelida lares de idosos e outras instituições iminentemente em risco de contágio generalizado. Simplesmente não nos parece correto…
Atendo-nos ao que podemos controlar, criámos as nossas novas rotinas e, talvez por isso, estejamos a conseguir lidar com esta realidade com relativa harmonia respirando, até, com alguma confiança. A presença constante do Filipinho tem-se revelado uma ajuda formidável; o labor e a atenção a que nos sujeita rege-nos a maior parte do dia e, depois de cuidarmos dele e de atimarmos outras responsabilidades quotidianas e profissionais, resta-nos pouco tempo, que procuramos aproveitar da melhor forma.
A Susana tem aprimorado a cozedura de pão, e eu continuo a fazer os iogurtes. O dela está cada vez melhor, os meus não passam daquilo! Para além das façanhas culinárias e dos afazeres domésticos tradicionais, temos reservado tempo para a escrita e mantido algumas leituras em dia: aguardo – com ânsia assumida – pelas entradas nos diários “Os Dias das Árvores”, de Isabel Rio Novo, e no “Mensagem do avô”, de António Mota, assim como procuro não perder um capítulo do recente projeto “Bode Inspiratório”. Para além destas preciosidades digitais, encetei a leitura de «O Beco da Liberdade», de Álvaro Laborinho Lúcio, e percebo agora por que razão o próprio fez questão de sublinhar repetidas vezes, no lançamento da obra em Ponta Delgada, que o texto em nada era autobiográfico… Um tratante, aquele juiz Guilherme Augusto Marreiro Lessa.
Temos procurado lembrar que este tempo de quarentena é também de Quaresma e que se vive, a partir de hoje, o Tríduo Pascal.
Decidimos manter as tradições que conseguirmos e, sob o olhar curioso do nosso pequeno Filipe, tingiremos hoje os ovos de Páscoa, usando, como em casa materna, cascas soltas de cebola. A Susana não conhecia esta tradição nortenha, mas vive-a com redobrado empenho, o que me deixa bastante satisfeito. Fruto dos tempos e do tempo, mercámos, por correio eletrónico, as provisões necessárias e confecionaremos um almoço pascal que se assemelhe o mais possível ao que as nossas mães fariam, com gosto redobrado, para toda a família.  Na lista incluímos um pão de ló de Margaride e um de Ovar, uns pacotinhos de amêndoas e um ovo de chocolate para o Filipe. A mãe achou-o demasiado grande, eu olho para ele e vejo um miminho em jeito de recompensa por tudo o que lhe é subtraído esta Páscoa!
O Livro dos Livros também já está aberto na página certa. O texto exposto será Evangelho da missa dominical e é segundo São João. Embora não devesse ser necessário, vem recordar-nos que a morte foi vencida pela ressurreição e que, nessa medida, há que ser paciente e ter esperança em dias melhores!

terça-feira, 14 de abril de 2020

Dias atípicos

Vivemos dias atípicos, conturbados e de certezas escassas. Editam-se umas rotinas, enquanto outras, as mais sacramentais e de razão pueril, são mantidas com afinco e alguma resiliência.
Temo-nos desdobrado: a Susana está, como eu, a trabalhar a partir de casa; o Filipe, infatigável e satisfeito como nunca o víramos, retém-nos constantemente a atenção e o olhar. Está tão bonito e mostra-se tão feliz! Temos confecionado todas as refeições e temos sabido manter a casa nos parâmetros de arrumação e limpeza a que a nossa Sónia nos habituou...
A Susana fez pão e eu iogurtes!
O relvado está aparado e sem trevo. Dei cabo das costas a mondá-lo, mas, pela primeira vez em quarenta anos, arriguei um de quatro folhas. Lembrei-me, de imediato, daquele terceto do Emanuel Jorge Botelho: "já restam poucos trevos inteiros. / daqueles que dão quatro folhas / às cinco letras da sorte.". Tão bonito! Sequei a relíquia e guardei-a junto do poema!
Os carros estão lavados, a bicicleta e a mota oleadas. Também montamos um baloiço para o petiz, oferta dos tios e que esperava há tempo o tempo certo.
Temos visto as notícias, respeitado as indicações que nos são prestadas e lamentado o evoluir desta situação. Ouvimos o número de mortos aqui e além e, de imediato, averiguamos se esse número é inferior ao do dia anterior… Atemo-nos ao número… Meu Deus, será por aqui que começa a nossa desumanização? Quero crer que não. Com efeito, fazemo-lo, porque nos queremos imbuir da esperança ingénua de que este pesadelo está a chegar ao fim. Mas não está. Não me parece que este vírus esteja a dar sinais de abrandamento.
Temos acreditado no profissionalismo das pessoas que, pela responsabilidade que assumiram, têm combatido este vírus nas linhas mais avançadas desta guerra.
 Para além de tudo isto, temos feito algumas leituras. Terminei «A Trégua», do Primo Levi e, adindo-lhe as considerações que havia formulado do «Se Isto É Um Homem» – o seu precursor – sublinhei a ideia de que a humanidade está a ser, uma vez mais, colocada à prova. As grandes batalhas travamo-las agora, com lamentáveis perdas e inevitáveis privações, enquanto a caminhada final que nos conduzirá de regresso a casa, fá-la-emos mais tarde, só mais tarde, mas munidos da certeza de que nada será igual…
Mia Couto escrevia “Não se regressa nunca (…)”, mas o trevo continuará a aparecer e o relvado continuará a precisar de monda…