sábado, 31 de outubro de 2020

Sala de Espelhos


Em boa hora se reuniu em obra única (primeiro volume da obra completa) este conjunto de textos do poeta e professor Urbano Bettencourt, escritos a propósito de «solicitações diversas» que lhe foram apresentadas: colóquios, palestras ou participações em volume coletivo.

Tal como enunciado em «Os Postes E As Linhas» - texto introito deste volume -, este Sala De Espelhos, agora lançado pela Companhia das Ilhas, «Trata-se (…), de um livro sobre literatura (e cultura) açoriana (...)». Sendo em tudo verdade, surge-me, no entanto, esta afirmação como um pouco redutora! Creio que este volume reúne todos os preceitos para se tornar uma referência que se afigurará mesmo como um documento incontornável e valioso sobre a temática. Com conhecimento e devidas cautelas, muito do que aqui fica dito, mesmo considerando a «incompletude» em termos de autores, poderá muito bem ser extrapolado para um âmbito mais abrangente, tornando redutora a ideia de que cada ensaio se cinge a determinada obra. Não será difícil, por exemplo, inferir a realidade arquipelágica a partir do texto «Raul Brandão nos Açores – um viajante abismado», escrito tendo por base a incontornável obra As Ilhas Desconhecidas. Neste sentido e considerando a erudição e minúcia impostas em cada texto (traços indissociáveis do próprio autor), creio ser de elementar justeza referirmo-nos, desde já, a este novo Sala De Espelhos como um marco referencial e de relevo maior para a compreensão da literatura produzida na Macaronésia, com especial incidência naquela que tem os Açores como solo de criação.

São quarenta os ensaios aqui partilhados, cuja leitura, estudo e considerações contribuirão sobremodo para alicerçar, disseminar e até mesmo perpetuar o conhecimento produzido a partir desta literatura de alma açórica e não só. Será esta, portanto, uma ponte que visa o encurtamento de distâncias, onde se procura dirimir a marginalização a que as literaturas de raiz insular têm sido sujeitas, de resto, como sublinha o autor numa referência a Maria Alzira Seixo, logo no início da obra.

Atendo-me ao que me dita a civilidade não irei destacar a leitura de um ou de outro ensaio, até porque essa seria uma tarefa hercúlea, considerando não apenas a heterogeneidade como também e sobretudo a riqueza de cada um em particular. Tenhamos presente que o autor lança o seu olhar sobre nomes como os de Roberto de Mesquita, Côrtes-Rodrigues, Raul Brandão, Vitorino Nemésio, Manuel Ferreira, Natália Correia, Dias de Melo, Pedro da Silveira, Eduíno de Jesus, Fernando Aires, José Martins Garcia, J. H. Santos Barros, Álamo de Oliveira, João de Melo, Daniel de Sá, Joel Neto, Nuno Costa Santos, João Pedro Porto, entre outros. Não obstante, há dois trechos que gostaria de sublinhar e partilhar convosco, ambos retirados de «Ser Ilhéu – E Salvar-se Pelos Livros», um texto incrível, de cariz autobiográfico, nascido a partir de memórias das vivências de um petiz, em plena década de cinquenta do século passado, na freguesia da Piedade, ilha do Pico e de nascença do autor:

«E nunca li o romance de Max du Veuzit. Na sua não-leitura, ele acabou, mesmo assim, por integrar o conjunto daqueles pequenos textos que me ensinaram a ultrapassar o óbvio e o imediato e a embrenhar-me na realidade outra que a imaginação nos avança (…)»

Torna-se inevitável questionar o que é feito desta capacidade de imaginar, de recriar o real a partir da leitura? Por que razão deixaram as nossas crianças de relevar mundos melhores e mais próximos daqueles que a sua pueril consciência constrói?

«(…) mas o tempo tem o dom de esculpir e dar novos contornos à matéria outrora informe, aparando as suas linhas dissonantes.»

Um simples, «Que assim seja!»

Estou convencido que, muito em breve, começaremos a ouvir e a ler sobre esta belíssima obra da autoria do virtuoso poeta e professor Urbano Bettencourt. Embora a apresentação pública ocorra a 6 de novembro, o livro já se encontra disponível nos locais habituais e plataformas digitais, pelo que urge a sua aquisição e leitura!

A todos, um abraço dos maiores!

 Urbano Bettencourt, Sala De Espelhos, Companhia das Ilhas, outubro, 2020

 

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

domingo, 25 de outubro de 2020

Outuno na Inglesa


É finitude que nos anunciam as vestes tristuras dos nossos jovens carvalhos. Em surdina, segredam-nos gratidão e despedida!

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Da ilha à América

 



Este ano ficará enodoado por razões que, de forma sobeja, todos reconhecemos, mas ficará também inscrito na história da Literatura portuguesa como um período fértil em publicações literárias, algumas, creio, em vias de ascenderem ao “Olimpo da Literatura”. Fruto de uma disponibilidade temporária conferida pelo confinamento a que todos nos vimos sujeitos, têm sido trazidas a público grandes histórias, narradas com uma pujança inusitada, e que se perfilam agora para, de forma robusta, engrandecer o corpus literário do país. Ainda bem! Ganhamos todos!

Dentre estas, torna-se inevitável referir Ilha-América, o mais recente romance de Almeida Maia, recentemente publicado pela Letras Lavadas e apresentado por dois incontornáveis vultos da literatura, especialmente daquela produzida a partir dos Açores. Autor de obras premiadas e de reconhecida qualidade como Bom Tempo No Canal: A Conspiração da Energia, Capítulo 41: A Redescoberta da Atlântida ou A Viagem de Juno, Pedro Almeida Maia presenteia agora os seus leitores com um empolgante romance urdido com base numa história verídica, robusta e de contornos surpreendentes. Não me aturdiria se esta ardente viagem de “Mané”, personagem central da narrativa, elevasse, uma vez mais, o autor até ao Plano Regional de Leitura. Com Ilha-América, Almeida Maia reclama, em definitivo, a sua posição junto dos melhores escritores portugueses contemporâneos.

Resgatando as temáticas da emigração açoriana e da busca pelo sonho americano, situando-as sensivelmente em meados do século passado, Almeida Maia dá-nos conta da arriscada história de um moço imberbe e sonhador que, por ambicionar fugir a “(…) um lugar ermo onde até às vezes a água falta (…)”, em direção às “califórnias de abundância” enceta “(…) talvez o episódio mais caricato da história da emigração.”, não olvidando neste rol a inusitada viagem descrita em O Barco e o Sonho, da autoria de Manuel Ferreira. Aliás, torna-se impossível não estabelecer paralelismos formidáveis entre estas duas narrativas já que, tanto numa como em outra, os protagonistas arriscam a vida colocando à prova a perigosidade da travessia transatlântica: uns enfrentando a fúria do mar, embarcados numa “casca de noz” de construção doméstica, outro desafiando a escassez de ar respirável a 24000 pés, oculto no vão da roda de um trem de aterragem dianteiro de um Lockheed Super Constellation. Com efeito, as possíveis similitudes e comparações que se possam efetuar entre obras, apenas virão confirmar a grandeza deste Ilha-América, ou “Ilhamérica”, como mais gostou o crítico literário e professor Vamberto Freitas que, a par do professor Onésimo Teotónio Almeida, foram os oradores convidados para a apresentação pública desta obra.

Cedo na leitura se percebe o cuidado e o rigor histórico e científico com que o autor quis alicerçar o seu novo romance, buscando, com minúcia, descrições rigorosas de cada detalhe, fossem estes de índole técnica, mormente no âmbito da aeronáutica, ou então de cariz histórico, referindo-se às vicissitudes socioeconómicas vivenciadas no país e no arquipélago nas décadas de cinquenta e sessenta do século passado. Decorrente da leitura, facilmente se perceciona uma aturada documentação por parte de Almeida Maia, confirmada no final da obra numa extensa nota de agradecimentos, o que bem revela a humildade do próprio autor. Ademais, segundo o próprio, foram dois anos a reunir informação fidedigna, de forma a que a história agora narrada fizesse jus à grande aventura do micaelense que partiu de Santa Maria rumo ao “País dos sonhos”, encafuado no bojo de um avião ao serviço de uma companhia aérea venezuelana.

Almeida Maia, servindo-se uma típica família micaelense residente no Vale das Furnas, em meados do século XX, consegue retratar uma grande porção da sociedade açoriana (e portuguesa) da época. Pobres, dominados pela autoridade paterna e sob o castrador jugo de liberdades ditado pela Ditadura salazarista buscam melhores condições de vida e partem em condições difíceis rumo à “ilha do sol”, para a designada “Little America”, ou “América emprestada aos ilhéus”, que recrudescia em torno do Aeroporto Internacional de Santa Maria, e que havia ganho grande vitalidade após o termo da 2.ª Guerra Mundial. A este propósito, e pelas mesmas razões, não é difícil trazer à memória o fluxo migratório dos pobres continentais, dirigindo-se estes para Este, com destino a países como França, Bélgica ou Luxemburgo, fugindo à fome, à pobreza, à Guerra do Ultramar e aos espartilhos instalados pela tirania nacionalista do governo de Salazar. Ainda que de forma ténue, Almeida Maia não deixa de lançar um olhar crítico sobre a sociedade política que sustinha o regime ditatorial. Expõe as atrocidades que se praticavam impunemente em prol dos desígnios da PIDE, incidindo especialmente naquelas perpetradas nas salas do Aljube, a bem da nação…

Amigo íntimo da melhor Literatura, Almeida Maia domina técnicas de escrita capazes de suster a atenção dos leitores; usa uma linguagem apurada e um discurso fluente, sobremodo cativante e apto a agarrar o leitor até à última página. Finais de capítulo em suspenso, analepses que se revelam sagazes e pertinazes são colocados ao serviço do ritmo, conferindo ao enredo a cadência desejada. Por outro lado, torna-se bastante agradável a referência a diversos temas musicais, assim como a inclusão de versos das referidas letras. O leitor regozija-se!

Não tenho dúvidas que esta será uma obra de referência para todos quantos queiram perceber o arquipélago, os açorianos, as suas vontades e ânsias mais profundas, a sua história e impulsos migratórios.

Numa troca de correspondência recente, confessava-me o autor, ainda que timidamente, julgar que crescera desde o lançamento do seu anterior romance. Não lhe respondi embora, porque lhe lera grande parte da sua já vasta obra, cri ser verdade. Neste momento e finda a leitura deste «Ilha-América», posso finalmente dizer que sim, é verdade: cresceu e ofereceu-nos um livro brilhante!

 

Pedro Almeida Maia, Ilha-América, Letras Lavadas, Setembro de 2020

 

sábado, 10 de outubro de 2020