domingo, 20 de novembro de 2022

Lucky Luke - A Arca de Rantanplan

 


Um novo álbum de Lucky Luke transporta-nos até uma temática tão atual como controversa, e leva-nos até um faroeste substancialmente diferente daquele a que nos habituámos a ver e a admirar. Em A Arca de Rantanplan é-nos servida uma cidade onde já não há caçadores de bisontes nem se tolera a venda de peles; não se explora a força animal e já não se veem bichos agrilhoados ou reclusos pelas quintas das redondezas. Graças a Ovide Byrde (personagem inspirada em Henry Bergh, o fundador do movimento de proteção animal nos EUA), vive-se, por ali, um clima de profundo respeito pelos animais, onde já nem aos cowboys é permitido comer um bom bife de vaca, sob pena de terminarem os seus dias pendurados no patíbulo da cidade.

Esta é Veggie Town, o chão da mais recente aventura de Lucky Luke!

 

Achdé e Jul (segundo Morris), Lucky Luke – A Arca de Rantanplan, ASA, outubro, 2022


domingo, 13 de novembro de 2022

O Quarto do Pai

 

Maria Brandão publicou recentemente O Quarto do Pai, uma obra muito original que sustenta o seu expediente ficcional nas inter-relações de um núcleo familiar, durante um período de doença de um dos seus elementos – o pai.

Sucedendo a Corpo Triplicado (2018) e a Enlouquecer é Morrer Numa Ilha (2020), ambos editados pela Companhia das Ilhas, O Quarto do Pai é o terceiro livro da autora, sendo, claramente, aquele onde melhor desenvolve a sua narrativa, seja pelo brilhantismo com que manuseia a linha temporal, entremeando pretérito e presente narrativo com uma inusitada subtileza (aliás, com uma finura que merece todos os aplausos), seja pelo aprimorado realismo a que recorre e que coloca ao serviço em toda a narrativa. Não há amarras a inibir a diegese, sendo a progressão contínua e muito consistente, gerando um relato coeso e sobretudo bastante aprazível.

Este poderia ser um livro sobre a desumanização do Homem, sobre a indiferença e o asco com que, cada vez mais, se olha a velhice e a enfermidade, afinal, basta um olhar sério sobre a sociedade atual para percebermos que «Mais depressa se acode a um cão do que a um velho, mesmo que seja família.» Recordemos, por exemplo, o romance Os Velhos (Letras Lavadas edições, 2022), de Paula de Sousa Lima, onde a autora expõe abertamente a forma como alguns idosos são maltratados e critica atitude e comportamentos displicentes face aos mais velhos. Por oposição, Maria Brandão, em O Quarto do Pai, demonstra que há ainda uma réstia de esperança, que há ainda quem reja os seus comportamentos pelos preceitos mais humanos e que a dimensão familiar mantém hoje algum do seu valor de sempreTalvez seja mais fácil acudir quando “[…] se tem dinheiro para gastar e civilidade de berço para esbanjar”, mas não rareiam os casos em que os idosos e enfermos são atirados e abandonados em hospitais ou outros, independentemente dos números que possam assear a sua conta bancária.

Tal como em outras obras, também em O Quarto do Pai, Maria Brandão mantém uma relação especial com a ilha, o seu espaço natural, embora desta vez a nomeie e explicitamente localize a ação principal em São Miguel, numa casa de campo, inserida num ambiente rural, mas bem perto do mar. Não obstante, poder-se-ia deslocalizar a trama para qualquer parte do país ou do mundo, sem que a narrativa sofresse com tal mutaçãoEmbora o discurso surja matizado por uma sensação telúrica, é evidente que Maria Brandão se serve da ilha, mas não se atem a elamesclando-a num mundo mais amplo e complexoAs fronteiras marítimas são apenas exercícios psicológicos, e autora parece materializar a mónita lançada por Daniel de Sá aos escritores açorianos, onde apelava a que não cedessem aos lugares-comuns, quando se tratava de “cantar a terra”.

Aqui assiste-se ao relato de um homem octogenário em crescente decadência física, vítima de severosproblemas de saúde, que o limitam a tal ponto de o remeter para uma cama, deixando-o numa posição dedependência total do outro. Chega escrito em primeira pessoa gramatical, e essa feliz opção influi sobejamente no sentimento de empatia que o leitor vai desenvolvendo pela personagem, à medida que avança na leitura. As constantes viragens entre um passado sadio, de causas, robusto e vivido intensamente com os amigos e famíliacom a matilha, de arma ao ombro e em busca de caça ou ao volante de potentes automóveis, contrastam pesarosamente com um presente doentio, recluso e triste, onde apenas as memórias vão atenuando a morosidade das horas. Todavia, é neste contexto que toda a riqueza humana se manifesta, ao percebermos como toda a família se mobiliza e readapta, no sentido de minimizar o sofrimento do patriarca, um homem que, mesmo débil, se mostra capaz de agir em prol do bem comum e familiar: aceita com elevada dignidade as prescrições médicas, mesmo aquelas mais dolorosas, mantém o característico sentido de humor, reconhece o esforço que todos fazem para que se sinta bem, particularmente os três filhos e a esposa, e mesmo em condições muito adversas como é a sua, sabe como agir conservando o bem-estar e a união familiares.

Ler O Quarto do Pai é estar próximo da morte, é confrontar-se continuadamente com as acritudes da vida e com a dureza da sua finitude. Num simples exercício mental, tenhamos presente que o personagem que ali definha facilmente poderia assumir o papel de um qualquer pai, de um tio, ou até de um avô, pelo que esta leitura terá de impelir o leitor a que faça o seu próprio exame de capacidades e consciência. 

Este é um livro muito bonito, com uma imagem de capa impactante (Burialde Jennifer B. Thoreson), mas é sobretudo um livro marcante, um dos melhores lidos no ano corrente, pelo que a sua leitura se torna indispensável a todos quantos apreciem um bom exemplo de literatura de qualidade.

Maria Brandão, O Quarto do Pai, Companhia das Ilhas, 2022

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Ainda Não É Bem Isto

 


Numa recente entrevista (Correio dos Açores, 16.10.22), elencava Eduíno de Jesus, notável poeta e professor, alguns traços que sustentarão a ideia da existência de uma literatura açoriana, incluída na portuguesa, mas, necessariamente, diferente desta. Referia ser necessário encontrar algo que a distinguisse e lhe desse matéria própria, diferenciando-a de todas as outras. Animava o pensamento, com a questão da “historiabilidade” de “um conjunto de obras de um determinado local”, o que significará que, para nos referirmos a uma literatura açoriana, tornar-se-ia imperioso alicerçar o pensamento num corpo de obras literárias originais, que houvesse prevalecido ao longo do tempo e que se encontrasse munido de determinadas características.

Confesso que apreciei esta ideia da “historiabilidade”, como condição à existência de uma literatura açoriana, mormente porque nos implica na sua própria definição, levando-nos a cumprir a nossa parte e, dessa forma, prevenindo a abertura de brechas na história que está por vir, e por onde pudessem medrar possíveis hiatos, que redundassem em confusões desnecessárias.

Conquanto este represente um assunto esgotado para muitos, tem-se revelado uma paixão perpétua para outros, havendo a reconhecer que os Açores, embora avexados pela posição ocupada em diversos indicadores de desenvolvimento económico e social, ocupam uma posição cimeira, no que à produção literária concerne. Destes, muitos representarão as novas vozes que têm sabido respeitar o legado dos mais experientes, e que tão bem têm trilhado o seu caminho, avolumando o corpo literário açórico e perpetuando as tais características consideradas por Eduíno de Jesus como indispensáveis à eternização da literatura açoriana. Tenhamos, pois, confiança e olhemos o futuro literário do arquipélago com reforçado otimismo, até porque, como escreveu recentemente um açoriano dos maiores, “O mau tempo nos Açores sempre ajudou os inclinados às letras a despejarem os sonhos e os fígados no papel (agora no ecrã)”.

Uma dessas vozes pertence ao escritor terceirense Diogo Ourique. Reconhecido por muitos pela sua colaboração na revista literária Grotta, é também o autor do romance Tirem-me Deste Livro, publicado pela Letras Lavadas edições, em 2019. Com efeito, Diogo Ourique tem revelado grande versatilidade, abalançando-se, ao longo dos últimos anos, por diferentes géneros literários. A par do romance, das crónicas, do conto, do texto humorístico ou da epistolografia, o escritor surpreende-nos agora com a sua primeira incursão pelo mundo da literatura infantojuvenil, e apresenta-nos este Ainda Não É Bem Isto, um texto muito interessante, pedagogicamente rico, ajaezado com recurso à rima e narrando a história de um petiz que procura, pela experimentação, decidir que instrumento escolher para integrar as fileiras da filarmónica do seu coração: a Sociedade Filarmónica Espírito Santo da Agualva, curiosamente, a mesma que integra o autor, e que lhe lançou o desafio de escrever este texto, por forma a comemorar o centésimo aniversário da instituição. Com desenhos de Abel Mendonça e pintura da responsabilidade das crianças que integram o CATL da Agualva, este livro integrará com todo o mérito o “conjunto de obras de um determinado local”, não apenas pelo seu carácter pedagógico, mas também, e sobretudo, por se encontrar munido das tais características distintivas e que convêm valorizar. O resto, encarregar-se-á a história de confirmar!

Diogo Ourique, Ainda Não É Bem Isto, Sociedade Filarmónica Espírito Santo da Agualva, 2022


terça-feira, 8 de novembro de 2022

Bom apetite!



Partilho um texto de Rui Vieira Nery, que nos faz viajar até um passado não muito distante, mas praticamente perdido. A sua mensagem acentua-se sobremaneira na cabeça e no palato daqueles que, como eu, há mais de 40 anos, tiveram a fortuna de nascer no seio de uma família nortenha, bem perto de uma avó com queda para o tacho e munida de um fogão de ferro, cujo combustível predileto era o serrim desperdiçado pelas fábricas de móveis, ensacado, a cada 3 meses, nas velhas sarapilheiras.

Em nome da saudade, renasça e seja longa a vida do cabritinho assado, fumegante e acompanhado daquelas batatas redondinhas, estaladiças e caseiras, como se gosta; bradem-se valentes hurras ao regresso da honesta posta de bacalhau, regada com a dose certa de azeite, e que “aromatizava” toda a casa com o sabor e cheiro intensos a azeitona sã.

Em nome da saudade, longa seja a vida de todas as avós, sejam elas boas cozinheiras (como o era a minha), ou nem tanto, que numa terra como a nossa, há de haver sempre o forno de um bom vizinho onde caiba mais uma travessa.

A todos, bom apetite!

“Antigamente as cozinheiras dos bons restaurantes portugueses eram umas Senhoras rechonchudas e coradas, em geral já de idade respeitável, com nomes bem portugueses ainda a cheirar a aldeia – a D. Adosinda, a D. Felismina, a D. Gertrudes – e por vezes com uma sombra de buço que parecia fazer parte dos atributos da senioridade na profissão. 

Tinham começado por baixo e aprendido o ofício lentamente, espreitando por cima do ombro dos mais velhos. 

E tinham apurado a mão ao longo dos anos, para saberem gerir cada vez com mais mestria a arte do tempero, a ciência dos tempos de cozedura, os mistérios da regulação do lume. 

A escolha dos ingredientes baseava-se numa sabedoria antiga, de experiência feita, que determinava o que “pertencia” a cada prato, o que “ia” com quê, os sabores que “ligavam” ou não entre si. 

Traziam para a mesa verdadeiras obras de arte de culinária portuguesa, com um brio que disfarçavam com a falsa modéstia dos diminutivos – “Ora aqui está o cabritinho”, “Vamos lá ver se gosta do bacalhauzinho”, “Olhe que o agriãozinho é do meu quintal”. 

Ficavam depois a olhar discretamente para nós, para nos verem na cara os sinais do prazer de cada petisco, mesmo quando à partida já tinham a certeza do triunfo, porque cada novo cliente satisfeito era como uma medalha de honra adicional. 

E a melhor recompensa das boas Senhoras era o apetite com que nos viam: “Mais um filetezinho?” “Mais uma batatinha assada?”.

Hoje em dia, ao que parece, nestes tempos de terminologias filtradas, já não há cozinheiros, há “chefes”, e a respectiva média etária ronda a dos demais jovens empresários de sucesso com que os vemos cruzarem-se indistintamente nas páginas da “Caras” e da “Olá”. 

Os nomes próprios seguem um abecedário previsível – Afonso, Bernardo, Caetano, Diogo, Estêvao, Frederico, Gonçalo, … – e os apelidos parecem um anuário do Conselho de Nobreza, com uma profusão ostensiva de arcaísmos ortográficos que funcionam como outros tantos marcadores de distinção – Vasconcellos, Athaydes, Souzas, Telles, Athouguias, Sylvas… 

Quase nunca os vemos, claro, porque os deuses só raramente descem do Olimpo, mas somos recebidos por um exército de divindades menores cuja principal função é darem-nos a entender o enorme privilégio que é podermos aceder a semelhante espaço tão acima do nosso habitat social natural. 

A explicação da lista é, por isso, um longo recitativo barroco, debitado em registo enjoado, em que, mais do que dar-nos uma ideia aproximada das escolhas possíveis, se pretende esmagar-nos com a consciência da nossa pressuposta inadequação à cerimónia em curso.

A regra de ouro é, claro, o inusitado das propostas culinárias em jogo e, preferivelmente, a sua absoluta ininteligibilidade para o cidadão comum. 

Mandam, pois, o bom senso e o próprio instinto de auto-defesa que se delegue na casa a escolha do menu, sabendo-se, no entanto, que não vale a pena sonhar com que pelo meio nos apareça um pobre cabrito assado no forno, um humilde sável com açorda, ou uma honesta posta de bacalhau preparada segundo qualquer das “Cem Maneiras” santificadas das nossas Avós. 

Seja o que Deus quiser! 

E começam então a chegar a “profiterolle de anchova em cama de gomos de tangerina caramelizados, com espuma de champagne”, o “ceviche de vieira com molho quente de chocolate branco e raspa de trufa”, a “ratatouille de pepino e framboesa polvilhada com canela e manjericão”, e por aí fora, em geral com largos minutos de intervalo entre cada prato e o seguinte, para nos dar tempo de meditar sobre a experiência numa espécie de retiro espiritual momentâneo…

E é de experiência que se pode aqui falar no sentido mais fugaz do termo. 

Deliciosa ou intragável, a oferta tende a ser, por princípio, “one time only”, porque quando o empregado anuncia, na sua meia voz enfadada, o “camarão salteado em calda de frutos silvestres e açafrão”, o uso do singular não é metafórico – é mesmo um exemplar único da espécie que se nos apresenta em toda a sua glória, ainda que possa reinar isolado no meio de um prato em que, em tempos, caberia um costeletão de novilho com os respectivos acompanhamentos. 

Se se detestar, há pelo menos a consolação de que não haverá qualquer hipótese de reincidência do crime; se se adorar – o que há que reconhecer que muitas vezes acontece – ficará apenas a memória fugidia do prazer inesperado. 

A função do “chefe” é proporcionar-nos no palato esta sucessão de sensações momentâneas irrepetíveis, todas elas em doses cuidadosamente homeopáticas, um pouco como as configurações sempre novas de um caleidoscópio – ou, se se preferir uma imagem mais forte, como a versão gastronómica de uma poderosa substância alucinogénia, daquelas que faziam as delícias da geração hippie dos anos 60 quando lhe davam a ver, ora elefantes cor-de-rosa, ora hipopótamos azul-celeste. 

Wow!

Que saudades das Donas Adozindas, das Donas Felisminas, das Donas Gertrudes, mais camponesas ainda do que citadinas, com a sua sabedoria, as suas receitas de família, a sua simplicidade, a sua fartura, o seu gosto de servir bem, o seu sentido de tradição e de comunidade!”

Rui Vieira Nery

📷 TripAdvisor - Tia Isabel, Braga