sábado, 30 de setembro de 2023

IMPROBABILIDADES CULTURAIS EM TEMPOS DE TURISMO DESAFORIDO



Confesso que, de uma forma geral, não me habituei ainda a esta nova realidade turística que se vive no arquipélago e em São Miguel, em particular. Desde a liberalização do espaço aéreo, em março de 2015, a face da ilha mudou significativamente: há mais pessoas em qualquer lugar que se visite, demasiado trânsito, uma pressão ambiental que merece preocupações legislativas, os preços galoparam desenfreadamente em áreas tão distintas como a hotelaria, a restauração ou a habitação, colocando um travão em alguns dos hábitos que nos eram possíveis num passado não muito remoto.

Reconheço e compreendo, todavia, os argumentos embandeirados a favor desta nova “galinha de ovos de oiro”, concretamente as mais-valias económicas geradas em diversos setores da frágil economia açoriana: dinamizou-se a construção civil, gerando-se novos empreendimentos que resultaram em mais emprego, maior circulação de capital, novas formas de negócio e, consequentemente, melhores condições de vida para muitos. É o mais importante, não tenho grandes dúvidas. Ainda assim, para aqueles que, como eu, não estão de forma alguma ligados a esses setores, há que reconhecer uma acentuada quebra na qualidade de vida que a ilha vinha oferecendo a quem aqui vive.

Mas nem tudo é mau, convenhamos. Se é verdade que esses aviões desprovidos de grande conforto atulham a ilha com gente, não é menos verdade que a alargam trazendo-nos a realidade de novos mundos, carreando diferentes culturas, formas de estar e hábitos distintos daqueles que reconhecemos como nossos. Ninguém discordará que se tornou muito interessante calcorrear ruas da Baixa de Ponta Delgada e, em poucos metros, cruzar com pessoas diferentes, cada uma a falar a sua própria língua, ou então numa das muitas esplanadas da moda, ouvir alguém que, em esforço, procura ler em português, aquela frase que salta do guia turístico tido entre mãos e que lhe trará o desejado bolo lêvedo com queijo de São Jorge, acompanhado pela tradicional meia-de-leite ou mesmo a famosa Kima, vista já como uma bebida tradicional micaelense. É também verdade que, por via do turismo, muitos estrangeiros se fixaram cá e vivem entre nós, enriquecendo culturalmente a ilha e os seus habitantes. São proveitos assinaláveis.

Fruto dos tempos e destes mais recentes paradigmas, muitos são os empreendedores e os novos conceitos de negócio que se vão desenvolvendo e que procuram o seu espaço de mercado. Alguns conseguem afirmação plena, tornando-se mesmo numa referência na área, como é exemplo a “Casa Improvável”, um espaço cultural dedicado à arte em geral, instalado na improbabilidade da zona das Socas, na freguesia do Livramento, em Ponta Delgada. Uma antiga taberna onde antes se juntava a comunidade na alegria do convívio, convertida numa galeria de arte “[…] para ficar, criar e mostrar […]” o trabalho desenvolvido por quem lá se queira quedar. É uma aposta de sucesso no âmbito da promoção e descentralização cultural que se vai operando em São Miguel. Falo de um espaço ímpar, acolhedor e dinâmico, muito versátil, sendo capaz de se transmutar, mantendo, todavia, a sua marca distintiva a cada atividade promovida. Trata-se de um espaço agregador, tendo já fidelizado um público muito diverso, que vai desde os fregueses do Livramento, até ao turista que chega vindo do outro lado do mundo. O trabalho dinamizado pelos seus promotores – Bruno Gomes e Marco Costa – tem-se pautado por essa capacidade de atrair artistas locais, regionais, mas também outros de latitudes internacionais. Se numa semana é possível apreciar o trabalho da artesã Maria da Conceição (vizinha do lado da própria galeria de arte), noutra podemos deparar-nos com as magníficas fotografias subaquáticas da reconhecida artista e fotógrafa polaca Martina Trepczyk. Como os próprios responsáveis deste projeto adiantam, “um lugar para mentes criativas, para viver e experimentar a vida na ilha, ao mesmo tempo que se inspiram para fazer coisas novas […].” Aqui não há uma agenda preconcebida, e as ideias vão surgindo a partir de conversas informais ou então nascem das sinergias criadas através da interação entre amigos. É exemplo a próxima exposição, a decorrer a partir de 30 de setembro, com trabalhos da autoria da artista continental Ana Félix.

Esta será, certamente, uma das vertentes positivas deste Boom turístico. Ante a exigência, a ilha ajeita-se para bem receber quem chega (e mesmo quem por cá reside) e procura responder às novas necessidades que o público, cada vez mais heterogéneo e ambicioso, procura.

(Diário dos Açores, 30 de setembro de 2023)

📷 Marco Costa