domingo, 17 de maio de 2020

RUA DE PARIS EM DIA DE CHUVA


«(…) estar morto não é relevante; o que é relevante é que as pessoas se amem.»

O meu contacto com a escrita de Isabel Rio Novo é muito recente. Aconteceu via digital e já em período de pandemia, quando a autora principiou, numa rede social, uma espécie de diário intitulado Os dias das árvores. Devo confessar que foi uma leitura esperada com entusiasmo diário, já que as quarenta entradas lá inscritas se encontram marcadas por um bom-gosto e requinte contagiantes. Fiz questão de lho transmitir. A sua escrita harmoniosa e tantas vezes sensorial estimulou-me a curiosidade e conduziu-me a outros trabalhos seus. Percebi que, não fosse a pandemia que nos assolou e a todos nos confinou, teria já acontecido o lançamento nacional do seu último romance «Rua de Paris em Dia de Chuva», publicado pela D. Quixote.
Recorrendo ao empenho, disponibilidade e bons serviços constantes da livraria Leya SolMar, consegui um exemplar, que li com avidez e raro entusiasmo. Não subsista, porém, a ideia de que esta será uma leitura rápida, porque, de facto, não é.

O romance encontra-se estruturado sobre a vida e a obra de um dos nomes mais relevantes do Impressionismo, o milionário Gustave Caillebotte, pintor, contemporâneo, amigo e, tantas vezes, mecenas de outros sequazes do movimento como Monet, Edmond Renoir, Camille Pissaro, Manet, Edgar Degas ou a americana Mary Cassatt. Longe de se esgotar numa aturada biografia do pintor, Rua de Paris em Dia de Chuva afigura-se como um documento de enorme valia no que à perceção do movimento impressionista concerne, desde logo as suas origens, os seus partidários e declarados inimigos, técnicas e motivos de pintura. Tudo isto nos é oferecido pela autora com generosidade e, a cima de tudo, com a propriedade de quem – e  justeza lhe seja dirigida – se dotou, domina e relaciona o vasto conhecimento histórico e artístico, brotado do chão parisiense, na ressaca das convulsões políticas, sociais e económicas que por ali foram perpetradas durante o século XIX e com a chegada do Segundo Império, os bombardeamentos à capital, o cerco da cidade, a consequente derrota na Guerra franco-prussiana e a sequente criação da Comuna de Paris.

Este há de ficar na história da literatura portuguesa como um daqueles romances cujo tempo ganha redobrada importância na compreensão integral da obra. A autora, através de um interessante e não menos apurado manuseamento da linha cronológica, gere a narrativa a partir de diferentes períodos, colocando-os ao serviço da própria história narrada. É entremeando o tempo da narração com o tempo dos acontecimentos factuais passados, que o texto se vai desenvolvendo, desde os primórdios da família Caillebotte, concretamente, desde o seu bisavô Pierre. Registe-se, contudo, que poder-se-ia «(…) principiar antes, mas há sempre um tempo que definimos como o princípio (…)». De sublinhar a interessante postura da narradora que, por diversas ocasiões, assume fazer parte de um tempo que não é o dela. Não será pelo distanciamento temporal, que ela deixa de se colocar em cena, de fazer parte do enredo e até de se autorresponsabilizar pelo próprio decurso dos acontecimentos, e tudo porque sente uma real aproximação a Gustave, por quem nutre um especial sentimento de amor, mesmo que à distância, porque para si «(…) estar morto não é relevante; o que é relevante é que as pessoas se amem.». Será por essa razão que considera que «(…) é por isso que vale a pena escrever livros, para poder conversar à distância com aqueles que amamos e que não são do nosso tempo. Que triste e pobre seria a vida se as nossas afeições estivessem limitadas àqueles com quem nos cruzamos realmente. Que longos nos pesariam os dias se aqueles que morreram antes de nós estivessem mesmo ausentes.»

Outro dos destaques neste romance é o espaço. Ele é múltiplo, mas, na essência, respeita, cronologicamente, o percurso da família Caillebotte, desde os primórdios em Domfront, na Normandia, passando pela toda arejada Paris de Haussmann com os seus modernos bulevares, até aos ambientes mais recatados e frescos, quer de Yerres, quer de Petit Gennevilliers. Excetuando o primeiro, todos os outros são descritos como espaços ricos, decorados de forma refinada, típicos da emergente classe burguesa da época, da qual Gustave fazia parte integrante por via da colossal fortuna alcançada pelo pai – Martial Caillebotte – um self made man, e, curiosamente, a personagem que mais interesse me despertou.

Ao longo da obra, a narradora descerra um número muito significativo de títulos de quadros, pintados pelos criadores já aqui referenciados ou por outros a quem não é atribuído tanto destaque. A acompanhá-los quase sempre algumas notas técnicas que adquirem intensificado interesse, já que da própria narrativa emerge a justificação de tais apontamentos. A este propósito, refira-se que há um constante equilíbrio entre a análise aos quadros, levada a efeito por Helena (professora de História de Arte, especialista em Caillebotte, e a quem a Autora recorre com alguma frequência para se documentar na redação do seu romance) e aquilo que vai sendo narrado pela própria narradora.

A minha leitura, e assumindo desde logo a minha diminuta erudição no que ao Impressionismo se refere, levou o seu tempo, porque fiz questão de a efetuar sempre com a Internet em modo on. Torna-se bem mais interessante a leitura quando acompanhada da referência pictórica.

Pese embora a componente ficcional inscrita por Isabel Rio Novo, este texto apresentar-se-á sempre como uma fonte privilegiada sobre o movimento impressionista e seus expoentes mais cintilantes, dos quais, durante muitos anos, se excluiu Gustave Caillebotte. Tal como o próprio movimento, que sentiu dificuldades de aceitação pela sociedade que restringia a arte àquela apresentada no “Salão”, não abrindo espaço aos novos talentos que rompiam com o ditame, também o pintor milionário, formado em Direito, engenheiro e construtor naval, horticultor e político, velejador premiado e colecionador de selos e de obras de arte (mecenas dos seus colegas, comprando-lhes os invendáveis), era apontado como um mero companheiro e financiador de pândegas dos tidos como verdadeiramente impressionistas talentosos.

Este é um grande romance, que deve ser lido com o tento devido, não colocando, no entanto, de parte uma apreciação “sem moderação”, como diria uma grande amiga da Literatura em geral e da poesia em particular, e deve começar desde logo pela capa, quadro pintado pelo próprio Gustave Caillebotte, e que, generosamente, empresta o título ao livro.

Isabel Rio Novo, Rua De Paris Em Dia De Chuva, D. Quixote, Lisboa, 2020 

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