domingo, 3 de maio de 2020

ENLOUQUECER É MORRER NUMA ILHA

Filho da disponibilidade e bons serviços da livraria Leya SolMar, chegou-me esta semana a obra Enlouquecer É Morrer Numa Ilha, da autora micaelense Maria Brandão.
Confesso que sentia alguma curiosidade nesta leitura, fruto, sobretudo, das conceções formalizadas a partir do seu antecessor, Corpo Triplicado, (2018), ambos editados pela Companhia das Ilhas.
Este é um livro de fugas! Este é um livro de partidas! Este é um livro onde se maneia a busca da felicidade. Este é, portanto, um livro sobre a condição humana.
A diegese assenta num espaço partido em diversas geografias mundiais, embora haja uma substancial preponderância entregue à dicotomia entre um espaço ilhéu, encarado como opressivo, e a sempre airosa, cosmopolita e não menos libertadora atmosfera suíça.
Ao longo do texto, distingue-se claramente o antagonismo entre ambos; embora de natureza europeia, um e outro não se poderiam apresentar mais afastados entre si, e não apenas no que à questão económica se refere. Aliás, não será esse o principal motor de fuga de grande parte das personagens, antes a busca de uma redenção individual, bem longe do useiro insular.
A ilha é tida como espaço nefasto, castrador e do qual se torna imperioso abalar. É um espaço feio e imundo, causador de “repulsa de tão decadente”, um local onde se propaga o preconceito desmedido; onde se percebem os esgares trocistas e as risadas galhofeiras. Um sítio onde os dedos são apresentados em riste àqueles que ousam a diferença. Um local povoado por “gente feia, patibular, banhas a transbordar de gangas apertadas, bocas abertas em carantonhas desdentadas.” Ali o sufoco é em demasia e sente-se o anseio de evasão. “Doentio é este lugar. Tens de perceber uma coisa: aqui a nossa vida e examinada desde o berço, a nossa privacidade devassada com meticuloso frenesim. Aqui a mentira surge ao ritmo dos olhares cruzados dos vizinhos, os boatos propagam-se como o fedor a bosta e enxofre”.
Por outro lado, é-nos servido um cenário cosmopolita, sofisticado e liberal num dos países mais ricos do mundo, e onde convivem harmoniosamente milhões de pessoas de múltiplas nacionalidades. Um local onde as personagens se assumem integralmente, abrigadas de preconceitos, de culpas e de opressões injustificadas. Um espaço onde se dá o encontro com o tão desejado sossego, onde todos já perceberam e agem de acordo com a noção de que a diferença não é para ser tolerada, mas antes para ser aceite.
Em Enlouquecer É Morrer Numa Ilha, assiste-se à consistência de um estilo arrojado, impactante e, de alguma forma, disruptivo, inteligível já em Corpo Triplicado, e ao qual a autora parece dar preferência, colocando-o ao serviço de temáticas que, sendo controversas, são também o retrato de uma sociedade que se esforça por manter em equilíbrio as aparências que lhe conferem estabilidade.
Divórcios, traições, homossexualidade, múltiplas relações, homofobia, oportunismo, refugiados, casamento por interesse são alguns dos temas abordados e nenhum é tratado de forma simplista, ou sequer descrito com recurso a floreados ou eufemismos: “A mulher com sexo escrito na testa, determinada a não passar as noites sozinha, consumia o séquito de admiradores como triângulos de Toblerone ao domingo: com sofreguidão e um remorso difuso que combatia com uma aula de aero kick, um pai-nosso e três avé-marias.”
Em momento algum é nomeada a ilha, mas facilmente se reconhecerão similitudes com o quotidiano açoriano e micaelense, em particular. Não raras vezes, o leitor (insular e não só) sente-se arremessado para diante de um espelho e, a partir de lá, impelido a uma autorreflexão, por mais superficial que ela seja, questionando-se sobre a sua forma de ver e, sobretudo, de lidar com a diferença.

Maria Brandão, Enlouquecer É Morrer Numa Ilha, Companhia das Ilhas, 2020

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