terça-feira, 12 de maio de 2020

E DEUS TEVE MEDO DE SER HOMEM


- Se eu fosse Deus, não teria feito o Mundo assim.
 (in E Deus Teve Medo de Ser Homem)

Escrita pelo professor Daniel de Sá, esta novela apresenta-se como um documento singular, factualmente rico, e de tributo a um povo perseguido, humilhado e, repetidamente, dizimado!

A história do povo judeu é-nos aqui descrita em dois planos temporais distintos. São relatados dois momentos históricos de persecução, de aniquilamento, de subjugação. Resistindo a um arranjo cronológico fácil, Daniel de Sá intercala o seu relato, dando-nos conta quer do extermínio judeu levado a efeito pelos alemães Nazis de Hitler, em pleno Holocausto, ou “[…]“Shoa”, a palavra hebraica que os Judeus, mais propriamente do que nós, usam para designar o “Holocausto”, e que significa “Catástrofe”.”, quer do aniquilamento exercido pelos romanos, quase dois mil anos antes de II Guerra Mundial.

O autor centra a ação da novela nas atrocidades cometidas no Campo de Concentração de Auschwitz, e brinda-nos com um relato emocionado, vivo, comprometido com o descrito, o que não deixa de ser revelador da sua enorme sensibilidade e humanismo. Como referiu Joaquim Matos numa recensão à obra, “Ele fala-nos das coisas como se as tivesse vivido, como se as tivesse sentido em situações concretas, com as feridas delas decorrentes ainda abertas, no corpo e na alma.”.

Daniel de Sá consegue, de forma singular, intercalar factos de enorme relevância histórica para a Humanidade, com a ficção que vai, paulatinamente, imprimindo no seu discurso: “[…] o que acontece na novela de Daniel de Sá é o equilíbrio perfeito entre o historiador e os factos históricos e entre o ficcionista e a ficção.”, como afirma a amiga Susana Antunes, num olhar sobre esta obra.

Pela voz de Aharon Csánady Halévy, ou melhor dito, pelas memórias do padecimento deste sobrevivente ao Holocausto, Daniel de Sá parte para uma profunda análise sobre a condição humana, sobre os limites de sofrimento que poderá um homem experienciar no limite da sua vida, e sobre a implicação dos mesmos na sua existência posterior: “A minha debilidade era tão grande que julgava que morria a qualquer momento.”.

O autor conduz-nos, então, à reflexão sobre este padecimento através de um conjunto de memórias escritas pelo próprio Aharon. Paradoxalmente, a personagem tê-las-á escrito para delas se esquecer e, de alguma forma, se libertar de um passado medonho, aceitando-o, irremediavelmente: “Um homem não pode nunca esquecer voluntariamente. No entanto, eu quis fazê-lo, como quem apaga umas páginas mal escritas, mas quanto mais tenta o esquecimento por refúgio mais recorda o que não queria recordar.”.

É notória na personagem uma certa resiliência, uma aceitação de um passado que foi hediondo, e uma consciência de que o mesmo lhe moldará sobremodo a existência, nos anos subsequentes ao cativeiro. Percebe-se ainda que, só a aceitação imperativa desse passado, permitirá uma vivência digna, ditosa e, de uma forma muito otimista, até feliz! “E, depois disto, talvez eu consiga tocar violino novamente.”.

Em E Deus Teve Medo de Ser Homem, Daniel de Sá eterniza um extraordinário paralelo entre a humanidade separada por quase dois milénios.

Valendo-se de uma personagem mística – que afirma ser o próprio Filho de Deus –, o autor produz um relato pautado ora pelo rigor histórico, ora pela ficção, sobre o período de pregação e morte do próprio Jesus Cristo. Se, nessa altura, os romanos foram capazes das maiores crueldades, passados quase dois mil anos, os alemães Nazis não se mostraram mais humanos do que os primeiros; se aqueles não revelaram grande pudor em maltratar, perseguir e, até, crucificar judeus, sem quaisquer evidências que o justificassem, estes mostraram-se completamente impiedosos, frios e inumanos ao assassinarem milhares de judeus, só em Auschwitz. Uns mataram pela cruz, outros valeram-se dos crematórios!

E Deus Teve Medo de Ser Homem é uma novela avassaladora, um retrato cru de dois períodos particularmente negros desta humanidade em evolução. Decorrente da sua leitura, é percetível o grotesco retrocesso civilizacional a que uma mente brilhante, mas completamente perturbada, nos sujeitou, em meados do século passado.

A expensas do brutal padecimento de todo um povo, foi percebida tardiamente a ignomínia e a perigosidade de discursos racistas, xenófobos de índole separatista, e dos quais julgávamos estar a salvo. Lamentavelmente, o presente oferece-nos sinais de alerta, bem mais próximos e arreigados do que seria desejável, o que nos leva à questão: até quando estaremos seguros?

No crepúsculo da II Grande Guerra, concretamente, em 1946, Primo Levi lembrava, em A Trégua, o "breve submisso / toque da alvorada", prognosticando que “Em breve ouviremos de novo / O toque de comando estrangeiro: / «Wstawać»” ou o “chamamento”.

Estejamos alerta, portanto!

A terminar, deixo-vos transcrita a INVOCAÇÃO que o próprio Daniel de Sá nos oferece:
«Nenhum livro fica completo sem o leitor. Dos que já escrevi, este será, sem dúvida, o que mais há-de depender da maneira como for lido para que tenha valido a pena escrevê-lo.»

[publicado em nov. 16 e revisitado em maio 20]

Daniel de Sá, E Deus Teve Medo de Ser Homem, Ed. Salamandra, 1997

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