terça-feira, 14 de abril de 2020

Dias atípicos

Vivemos dias atípicos, conturbados e de certezas escassas. Editam-se umas rotinas, enquanto outras, as mais sacramentais e de razão pueril, são mantidas com afinco e alguma resiliência.
Temo-nos desdobrado: a Susana está, como eu, a trabalhar a partir de casa; o Filipe, infatigável e satisfeito como nunca o víramos, retém-nos constantemente a atenção e o olhar. Está tão bonito e mostra-se tão feliz! Temos confecionado todas as refeições e temos sabido manter a casa nos parâmetros de arrumação e limpeza a que a nossa Sónia nos habituou...
A Susana fez pão e eu iogurtes!
O relvado está aparado e sem trevo. Dei cabo das costas a mondá-lo, mas, pela primeira vez em quarenta anos, arriguei um de quatro folhas. Lembrei-me, de imediato, daquele terceto do Emanuel Jorge Botelho: "já restam poucos trevos inteiros. / daqueles que dão quatro folhas / às cinco letras da sorte.". Tão bonito! Sequei a relíquia e guardei-a junto do poema!
Os carros estão lavados, a bicicleta e a mota oleadas. Também montamos um baloiço para o petiz, oferta dos tios e que esperava há tempo o tempo certo.
Temos visto as notícias, respeitado as indicações que nos são prestadas e lamentado o evoluir desta situação. Ouvimos o número de mortos aqui e além e, de imediato, averiguamos se esse número é inferior ao do dia anterior… Atemo-nos ao número… Meu Deus, será por aqui que começa a nossa desumanização? Quero crer que não. Com efeito, fazemo-lo, porque nos queremos imbuir da esperança ingénua de que este pesadelo está a chegar ao fim. Mas não está. Não me parece que este vírus esteja a dar sinais de abrandamento.
Temos acreditado no profissionalismo das pessoas que, pela responsabilidade que assumiram, têm combatido este vírus nas linhas mais avançadas desta guerra.
 Para além de tudo isto, temos feito algumas leituras. Terminei «A Trégua», do Primo Levi e, adindo-lhe as considerações que havia formulado do «Se Isto É Um Homem» – o seu precursor – sublinhei a ideia de que a humanidade está a ser, uma vez mais, colocada à prova. As grandes batalhas travamo-las agora, com lamentáveis perdas e inevitáveis privações, enquanto a caminhada final que nos conduzirá de regresso a casa, fá-la-emos mais tarde, só mais tarde, mas munidos da certeza de que nada será igual…
Mia Couto escrevia “Não se regressa nunca (…)”, mas o trevo continuará a aparecer e o relvado continuará a precisar de monda…

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