Embora editada em junho de 2021, só muito recentemente tomámos conhecimento da obra Entre o Mar e a Rocha – Estórias, da autoria do florentino Carlos Fagundes. Do mesmo modo, fruto, talvez, de alguma desatenção, só agora nos apercebemos do trabalho extraordinário que este professor de Português desenvolve, de forma mais ou menos sistemática, no seu blogue pessoal – Pico de Vigia 2 –, procurando resgatar, preservar e difundir as vivências, usos e costumes florentinos e, de uma forma mais alargada, os açorianos e até os continentais. Este volume, que chegou pela mão de um grande amigo e açoriano dos maiores, revelou-se uma descoberta espantosa, o que é bem sintomático do muito que há ainda por descobrir no universo da literatura açoriana.
A obra arranca com o prefácio de Onésimo Teotónio de Almeida, um texto soberbo, cujo título – Uma Ilha Que É Um Mundo –, se assume bem revelador do tanto que o leitor poderá esperar das mais de quarenta narrativas que se lhe seguem. Com efeito, cada uma das estórias narradas poderá ser assumida como uma janela com vista para um passado cronológico não muito distante, embora (e felizmente, acrescente-se) social, cultural e economicamente longínquo. São nacos da verdadeira história da ilha das Flores e das suas gentes, assumindo-se, em alguns casos, bem mais interessantes e, passe o exagero, mais proveitosos do que alguns dos textos inscritos em determinados compêndios escolares: não nos custa crer, por exemplo, que será através da leitura destes escritos que muitos dos leitores tomarão conhecimento do naufrágio do Bidart, uma robusta barca de três mastros, de origem francesa e que afundou desgraçadamente nos baixios da Fajã Grande, carreando para a morte sete homens, para além de ocultar o cadáver de um outro que havia perecido a bordo, vítima de escorbuto.
Tal como outros prosadores, de origem açórica ou não, e dos quais talvez emerja a rudeza das descrições com que Raul Brandão pintou o Corvo e as vivências corvinas, em As Ilhas Desconhecidas (Artes e Letras, 2.ª ed., 2018), também na obra em análise, Carlos Fagundes dá a conhecer, sem grandes derivas ao eufemismo ou mesmo à dissimulação, a ilha das Flores, servindo-nos, com apurado realismo, uma povoação paupérrima, campesina e em tudo rural, onde o milho e o gado assumem especial relevo na vida de gente pobre, mas trabalhadora e muito honrada. Evidencia, declaradamente, o esquecimento dos Açores pelo(des)governo do Estado Novo, salientando, ao mesmo tempo, as nefastas consequências que daí advieram, não apenas para os florentinos, mas para os açorianos em geral: não havia médicos nem vias de comunicação que atravessassem a ilha, o subdesenvolvimento era absoluto e marcado pela pobreza, pela fome, pela deficiente ou mesmo pela ausência de instrução escolar e pela falta de rendimentos, o que redundava, em muitas das vezes, na emigração, fosse a clandestina ou então aquela operada dentro dos trâmites legais. Tristemente, era pelo bojo que os açorianos se viam enxotados da sua própria terra, e, para os pobres que ousassem permanecer, ficava-lhes assegurado trabalho «(…) desmesurado, duro, cansativo, escravista, esgotante, a impregnar-lhe o corpo de cansaço e de sofrimento. Mas trabalho digno, honrado, humilde, verdadeiro e empenhado, a aurorar-lhe o espírito de dignidade e alegria». Por contraponto com a realidade presente, e num esforço para apartar quaisquer ilações políticas que possam chegar acopladas, celebremos, pois, o longo percurso percorrido, em pouco mais de metade de um século, não descurando, todavia, o tanto que ainda se encontra por concretizar. Estas narrativas poderão ser vistas como uma forma de resguardo e imortalização de ritos useiros e costumeiros da existência e vicissitudes daqueles que povoaram o mais ocidental território nacional, podendo olhar-se cada uma delas como um frame do filme que por ali se vivenciou ao longo de parte significativa do século XX.
Neste comentário, torna-se impossível olvidar a dimensão religiosa que marca, de forma indelével, a maior parte destas narrativas, o que é bem revelador do papel que Deus e a religião assumem na vida dos florentinos e dos açorianos, em geral. Carlos Fagundes mune-se de uma linguagem aparentemente simples, valendo-se de um vocabulário muito cuidado, algumas vezes até vetusto, mas nunca arcaico, característica especialmente notória naqueles textos que, de alguma forma, se relacionam com a religiosidade e com os preceitos do culto. Tenhamos presente não apenas a sua formação académica, no seio da milenar exigência religiosa, ministrada no Seminário de Angra, como também a antiguidade de alguns dos ritos litúrgicos ou outros de ordem telúrica que vai desfiando ao longo das diegeses. Por outro lado, referências a diferentes toponímias (por muitos desconhecidas), assim como o recurso a regionalismos e a metáforas de compreensão menos instantânea, tendem a demorar a leitura, mas não deixam de enriquecer sobremaneira o texto, tornando-o mais verossímil e, sobretudo, conferindo-lhe uma notável literariedade.
Carlos Fagundes, Entre o Mar e a Rocha. Estórias, Companhia das Ilhas, 2021
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