Foi, precisamente, numa dessas trocas de mensagem que me escreveu pela primeira vez sobre o seu romance «Frente À Cortina De Enganos». Iria torná-lo público. Fiquei satisfeito, pese embora o formato encontrado pelo autor para tal publicação não me parecesse, na altura, o mais conveniente: seria a obra divulgada na página de uma rede social, capítulo a capítulo, alcançando fugazmente um ínfimo número de leitores que, por certo, não lhe prestaria a atenção devida, apanágio de grande parte da informação veiculada nestas plataformas. Nunca lhe dei conta dessa minha opinião, pensei que fazê-lo representaria uma ousadia da minha parte e, agora que já não lho posso transmitir, sinto algum constrangimento. Todavia, terão outros tido a coragem que me faltou, porque a obra chegou, pela sua própria mão, à editora Letras Lavadas, em Ponta Delgada e, aquando da morte do autor, estavam a ser preparadas as diligências finais para a sua publicação em livro. Com efeito, a professora Helena Chrystello, através da associação que ajuda a dirigir, prontificou-se a ultimar os detalhes finais da edição do romance, apresentado condignamente ao público, no Centro de Estudos Natália Correia, na Fajã de Baixo, e integrado no programa do 36.º «Colóquio de Lusofonia».
A obra, dedicada a Luiz Fagundes Duarte, “como testemunho de muita admiração e amizade”, teve como ponto de partida a peça teatral «Fortunato e TV Glória», sendo que, durante a leitura, e por diversas vezes, será percetível este cruzamento entre modos literários. Não raras vezes, sentir-se-á o leitor ante a narração de trechos que muito bem poderiam ser entendidos como didascálias, ou até mesmo como os típicos apartes, tão mais usuais em texto dramático.
«Frente À Cortina De Enganos» vem confirmar, (sem que houvesse, contudo, essa imprescindibilidade) a apuradíssima competência de escrita do autor, o seu vasto conhecimento vocabular e a sua incomum capacidade para a produção do diálogo. Fruto dessa sua vocação para a redação de texto dramático, depurou esta característica ao longo dos anos, sendo, talvez a par de Paula Sousa Lima, o autor açoriano contemporâneo que mais convincentemente escreve em discurso direto. Para além da riqueza vocabular e do uso imaculado do discurso antes referido, Norberto Ávila notabiliza-se ainda pelo recurso a variadíssimas estratégias narrativas que conferem uma dinâmica bem interessante à leitura: elipses, analepses e prolepses são alguns dos mais frequentes, sendo que a troca de voz narrativa e a interpelação direta ao leitor (influenciado, porventura, pelos apartes do texto dramático) são outras das estratégias contempladas. Por outro lado, é frequente o autor tomar a posição do leitor e, a este propósito, não há como deixar de destacar o “Capítulo 7.a”, assim designado por Ávila, onde o próprio assume responsabilidade e adita explicações àquilo que o leitor poderá estar a pensar naquele momento, considerando a prestação, até então, de uma determinada personagem. O seu brilhantismo estende-se ainda aos momentos de descrição. Não sendo adepto da usança frequente do advérbio de modo e, sobretudo, do recurso fácil ao adjetivo, é notório o cuidado que imprime nas suas descrições, valendo-se de comparações significativas para atingir o seu propósito descritivo: “[…] o condutor era um jovem de vinte e poucos anos, bronzeado no rosto e nos braços, cujo cabelo, castanho alourado, se diria um cacho de tremulantes caracóis, arrancado a um painel renascentista.” Para além de tudo o mais, há um fino sentido de humor que perpassa todo o romance, ridicularizando-se abertamente grande parte da sociedade, conferindo especial ênfase àqueles “novos-ricos” que vivem de aparências, mas também o povo e o clero. Aflora-se o “chico-espertismo”, tipicamente português, assim como se coloca em evidência a corrupção, a mentira, a trafulhice.
Norberto Ávila foi claramente um grande escritor português, pelo que, em boa hora, decidiu a Imprensa Nacional-Casa da Moeda publicar, em quatro volumes, os seus textos teatrais, relevando e, sobretudo, eternizando um dos mais notáveis dramaturgos portugueses do século passado. Todavia, e embora se ressalvem os apontamentos tidos pelos responsáveis quer da revista literária «Grotta», quer dos «Colóquios da Lusofonia», e em particular o empenho manifestado pela professora Helena Chrystello, sinto por parte dos responsáveis culturais da região um continuado e incómodo silêncio em relação à vida, mas, mormente, em relação à obra deste açoriano que o foi dos maiores.
Norberto Ávila, «Frente À Cortina De Enganos», Letras Lavadas, 2022
Sem comentários:
Enviar um comentário