sexta-feira, 23 de dezembro de 2022

Passeio de Natal

 

A tarde oferecia-se soalheira e convidava a um passeio, pelo que decidimos – a Susana e eu – descer à Baixa e deambular pelas principais ruas de Ponta Delgada, sem outro rumo além daquele onde nos levasse o acaso. Assim que se apercebeu da iminência da saída, o pequeno Filipinho vibrou: «Vamos à pista de gelo, papá, vamos?! Por favor!» Fomos, claro que fomos, e divertimo-nos imenso, riscando a alvura do piso com movimentos pouco ou mesmo nada graciosos, mas suficientemente atrapalhados para nos fazer explodir em audíveis gargalhadas. Nada que nos envergonhasse ou interferisse com a alegria que sentíamos por ali estarmos os três, num prazeroso momento aproveitado em família. Fruto da novidade natalícia e contando com a escassez de oportunidades, a gente que por ali deambulava era em número considerável, assim como muito era também o tempo de espera para usufruir daquela espécie de rinque, onde cada um se debatia com o seu próprio equilíbrio, tentando manter uma postura corporal aceitável, escapando, dessa forma, à chacota alheia. Todos gargalhavam e todos eram felizes!

À saída, já a hora seguia avançada, mas nem por isso se apresentava menos convidativo o passeio. O Sol, embora arrefecido, tocava-nos a face, acendendo uma sensação de benévolo conforto, à medida que caminhávamos ao redor do Campo de São Francisco. Bem no centro da Praça, alguns rapazinhos apressavam-se e lançavam gritos de alerta, protegidos pela elevação do vetusto coreto, enquanto outros, valendo-se de ardilosas manhas, se preparavam para tomar de assalto aquele que seria o bastião mais cobiçado. Todos riam e todos eram felizes! 

Ao cruzar o quiosque que se presta a forrar o estômago de quem ali se queira demorar, decidimos parar e beber um café. «Eu quero um suminho de pêssego, mamã», adiantou-se o pequeno Filipe. Sentámo-nos e, de olhar cauteloso, pousado nas andanças do meu filho, não pude evitar o relance sobre a expressividade patente no «Monumento ao Marinheiro Português», da autoria do escultor Diogo Macedo, assim como um demorado olhar sobre a beleza do jardim que adorna a frente do Forte de São Brás, no limite sul do Campo de São Francisco, ou Praça 5 de Outubro, como também é designado. Assaltou-me a memória um admirável texto de Tomaz Borba Vieira, onde descreve, com singular brilhantismo, a vida que por ali pulsava, aquando da existência de «[…] um belo espelho de água ambicionado por toda a rapaziada que desejava experimentar como navegavam os pequenos barcos que cada qual possuía.» Já na altura, todos brincavam e todos eram felizes!

Com a descida da temperatura, propusemo-nos continuar e subimos o Campo pelo lado poente, satisfazendo a curiosidade e apreciando as obras, que decorrem a bom ritmo, naquele que é um dos mais bonitos imóveis da cidade. Oxalá venham dignificar mais ainda a beleza deste recanto de Ponta Delgada! Chegados ao Convento da Esperança e lançada humilde reverência, fui acometido pela imagem de todos aqueles fiéis que, em nome de uma Fé muito sua, percorrem toda aquela praça de joelhos em sangue e rezas na boca, e, embora não me caiba no discernimento tamanha autoflagelação, nutro muito respeito por estes crentes, muito mesmo, e desejo ardentemente que cada um encontre nesse pagamento de promessa a quietude de espírito que tanto almeja. Que também eles sejam felizes!

Continuámos, até o Filipinho nos deter junto de um dos vendedores de árvores que por ali tentam o negócio, durante a época natalícia. «Eh, senhô, isto ‘tá cada vez pió! A gente ´tá que nã vende nada de nada e as despesas são sempre a subi.» Confesso que me senti condoído com aquele desabafo, e mais ainda com a expressão triste que parecia querer saltar do rosto daquele velho senhor. «Nós já fizemos a nossa árvore! Está muito bonita, mas não é verdadeira. É daquelas de plástico.», lança o petiz bem alto, desmascarando-nos impiedosamente. Confesso que me senti um pouco embaraçado pela genuína inocência de um menino de quatro anos e, numa tentativa de minimizar os efeitos, acabámos por mercar umas sementes de trigo e de ervilhaca, de que, na verdade, não precisávamos. Alancámos, deixando feliz um velho vendedor de árvores!

À medida que o Sol se extinguia, entrámos no carro e continuámos assim o passeio pelas artérias que se adentram pela urbe. Para felicidade do pequeno menino acomodado no banco traseiro, já a iluminação natalícia estava ligada e as ruas se mostravam todas engalanadas, assim como vaidosas se exibiam as árvores, todas coloridas e brilhantes para celebrar a preceito a chegada do Salvador. Adormecia cansado o Filipe, feliz com a tarde que vivera!

Em boa verdade, também nós seguimos felizes até casa, satisfeitos com o passeio em família e inebriados por todo aquele brilho artificial que alivia a fealdade, com que habitualmente se matiza o centro histórico da nossa cidade. Enquanto por ali estivemos, enlevados por todo aquele quadro natalício, tendemos a esquecer aqueles que, por ali mesmo e durante todo o ano, deambulam ébrios ou aos tombos, sujos por dentro e sujos por fora, com uma mão estendida e outra empunhando um qualquer pacote de vinho barato, e sempre com algum impropério engatilhado, pronto a disparar; tendemos a esquecer aqueles que, por ali mesmo, vagueiam em busca da maquia certa para que também eles possam ser felizes, ainda  que essa seja uma felicidade intrujona e trapaceira! 

A todos, mas mesmo a todos, um feliz Natal!

Publicado no Diário dos Açores, a 23 de dezembro, 2022

📷 Presépio Centro Comercial SolMar

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