domingo, 19 de setembro de 2021

Maldita Heroína

 

«Não serve de desculpa. Há pessoas em situações piores e não se metem na droga, mas, como tenho experiência com droga, tenho este escape.»

In publico.pt 

Numa altura em que a pobreza espreita a cada esquina, e o desemprego emerge de um momento para o outro; numa época em que a depressão familiar e a inversão de valores se entranham pelas frinchas mal calafetadas da vida e, num período em que o Estado Social parece resignado a serviços mínimos, muitos têm sido aqueles que, caídos em desespero e, sem esperança de amparo, buscam na fugacidade de um consolo intrujão o alienar dos problemas quotidianos. Partem na ânsia do esquecimento, na esperança do reencontro com momentos prazerosos e, invariavelmente, aterram nas agruras mais vis que se possam imaginar.

Fruto de toda esta conjuntura começa a ser por demais conhecida, e até bastante alarmante, a massificação de recaídas de muitos dos sobreviventes ao flagelo das drogas nos idos anos 80 e 90 do século passado, com especial incidência nos casos de heroinómanos.

Descobrir uma veia onde ainda seja possível receber com aquele agrado a fininha agulha e… deixar-se ir… partir numa jornada traiçoeira em busca da doce euforia voltou a ser a rotina de milhares de pessoas.

Em Portugal, na época áurea destes consumos, não obstante todas as políticas de combate (e algumas bem agressivas, que resultaram mesmo em cisões sociais entre os que olhavam os toxicómanos como doentes e os outros que os viam como meros criminosos), 1% da população consumia ou consumira heroína, pelo que encontrar uma família onde esse flagelo não se fizesse sentir, revelava-se uma tarefa complicada. Lia-se que a heroína não sendo exclusiva dos “feios, porcos e maus”, era uma epidemia transversal à sociedade, agravada por todos os outros problemas associados: absentismo escolar, roubos, tráfico, alcoolismo, VIH, hepatite C, overdose… morte! Segundo João Goulão – Diretor Nacional do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e nas Dependências –, “duas gerações foram dizimadas por consumos descontrolados”, e muitas mais seriam desse-se o caso de não se concluir atempadamente que a prevenção, assim como o acompanhamento destas pessoas, deveriam ser permanentes na agenda política do nosso país. Com efeito, deu-se um pequeno brilharete: reduziu-se a percentagem de mortes por consumo de heroína a 0,5% da população, o que provocou de imediato a visibilidade mundial do nosso país.

Na atualidade constata-se que o número de novos consumidores de heroína não é tão significativo como outrora, – os novos toxicómanos optam por um policonsumo que, não sendo tão agressivo como o da heroína, levanta também algumas discussões bem urgentes – mas a questão agudiza-se se nos cingirmos ao atual número de recaídas dos que há duas ou três décadas eram os junkies que semeavam o medo pelas principais ruas das nossas cidades. Hoje, toxicodependentes com 40 ou 50 anos de idade, assim como os seus médicos acompanhantes e outros responsáveis, apontam a situação de crise económica como um dos principais fatores para estas recaídas: o difícil acesso aos cuidados de saúde e o fim de alguns apoios têm dificultado, em larga medida, a recuperação plena destes indivíduos, e estarão na origem do triplicar das recaídas.

Numa sociedade onde a escassez de dinheiro impera, a capacidade de resposta destes serviços tão especializados tem, inevitavelmente, falhado, o que condiciona sobremaneira o tratamento continuado destes indivíduos. Se antes se assistia, por exemplo, à discriminação positiva destas pessoas em recuperação, nomeadamente em termos de empregabilidade, dizem os responsáveis que face à taxa de desemprego generalizada “não existe o à-vontade necessário para que se batam por esta questão”.

Antes elevado a inimigo público número um, e gastos milhões em prevenção e apoios sociais, o consumo desta droga parece agora suscitar pouco interesse nas pessoas com responsabilidades políticas e na sociedade em geral. É certo que outras necessidades bem mais prementes estão na calha – há hoje gente a passar fome – no entanto, urge a disponibilização de esforços, a articulação de estruturas de saúde que garantam, uma vez mais, respostas eficazes a estas pessoas. Importa impedir o recrudescimento deste flagelo, sob pena de assistirmos ao ruir de todo o esforço financeiro e social feito por aqueles que antes de nós tanto trabalharam pela erradicação do consumo desta maldita heroína!


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