quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

VEMO-NOS EM AGOSTO


Há umas semanas, e a propósito de uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, escrevia: “Embora não o tenha lido ainda, e confesse que sou sensível à manifesta vontade do autor, a publicação deste parece-me aceitável, essencialmente pelas razões apontadas pelo MEC […]”.

Não obstante, terminada agora a leitura do livro, confesso que me abandonou, em definitivo, a certeza dessa aceitação, assim como passei a entender melhor a controvérsia que esta publicação póstuma provocou um pouco por todo o mundo literário. (Note-se que a edição é da responsabilidade dos filhos do Nobel, mesmo contra a vontade expressa do pai).

O livro agora publicado está inacabado e nada de relevante acrescenta à obra do colombiano, mas, e em abono da verdade, também não a diminui nem lhe belisca a qualidade. Então, por que razão trazê-lo a público, especialmente depois de Gabo ter manifestado a sua vontade?

Pelo autor se ter ocupado dele por sete anos parece-me um argumento demasiado frágil, muito embora tenha sido o utilizado por muitos, e alguns com grandes responsabilidades. Outros alegaram “ter o direito sacramental” de conhecer a obra que ficou inacabada, só por serem admiradores inveterados do autor. A obra completa está traduzida em dúzias de línguas; basta pegar num volume, reler e deixar-se comprazer. Outros, ainda, escudaram-se no esforço que o autor despendera, dada a sua manifesta incapacidade mental à altura e, só por esse esforço, já devia o texto ver a luz da publicação. 

Percebo, mas não acompanho!

Por outro lado, e recordando a enorme repulsa (para dizer pouco) que sentimos ao ler o livro «Gabo e Mercedes, uma despedida», (D. Quixote, 2023), da autoria do mesmo filho de García Márquez, Rodrigo Barcha, um texto despudorado que nada acrescenta à memória do pai, à sua brilhante vida literária ou privada, pelo contrário, expõe-no numa devassa à intimidade, numa fase final da vida em que o recato deveria ganhar outra dimensão, considerando as limitações, não podemos condenar aqueles que presumem haver aqui intuitos mercantilistas e móbiles meramente económicos, num aproveitamento (abusivo?) da imagem de Gabriel García Márquez, o que é péssimo! 

Embora diferentes, uma publicação e outra em nada dignificam a obra e muito menos engrandecem a memória do homem, pelo que encarregar-se-á o tempo de fazer perdurar os textos que efetivamente tiverem a qualidade para tal, e esses serão, por certo, os do realismo mágico brotados da imaginação e da mão criativa e saudável de García Márquez. 

Gabriel García Márquez, «Vemo-nos Em Agosto», D. Quixote, 2024

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