quinta-feira, 19 de junho de 2025

Passagem Noturna

 



“Mesmo que eu me descalce e fique a sós comigo, a escuridão apanha-me em cada passagem noturna em que sobrevivo para contar a história da multidão que, diariamente, habita em mim e, diariamente, me abandona.”

(p. 246)

A propósito de “Os Caminhos de um Escritor”, sentenciava Julio Cortázar, na sua primeira aula em Berkley, que “O romance é esse grande combate que o escritor trava consigo mesmo […]”.

Finda a leitura de Passagem Noturna, de Leonor Sampaio da Silva, podemos asseverar que este foi um combate vencido pela autora micaelense. Parafraseando Carlos Fiolhais quando se referiu à obra, “Quem tem sorte somos nós, leitores!”. Não bastasse o bonito percurso e as elogiosas referências que o livro tem arrecadado, recordemos, pois, que este foi um dos romances finalistas do conceituado Prémio Leya, no ano de 2023, o que, convenhamos, não é coisa de somenos, dado o prestígio do próprio prémio literário.

Conquanto Passagem Noturna seja o primeiro romance da autora e Professora universitária, há nele uma evidente maturidade, criatividade e solidez conferidas por sucessivas investidas por outros modos e géneros literários. São exemplos Mau Tempo e Má Sorte – Contos Pouco Exemplares (2014), distinguido com o Prémio Humanidades Daniel de Sá; ABN Da Pessoa Com Universo Ao Fundo (2017); Pouca Terra (2019); ou Quase um Carimbo (2022), este, particularmente interessante por revelar uma audaz e bem-fadada incursão pelo modo lírico. Com efeito, a competência linguística, assim como o lastro que foi granjeando com obras anteriores, resultam agora em rasgados elogios e merecidas referências.

Retomando Cortázar e as suas aulas em Berkley, ensinava o contista argentino que “[…] os contos nunca são ou quase nunca são problemáticos: para os problemas, existem os romances, que os colocam e que procuram muitas vezes resolvê-los.”

Em Passagem Noturna, e fruto de um fenómeno natural repentino e inexplicável, um hotel fica completamente separado da restante superfície, sendo envolvido por uma cratera funda e praticamente intransponível, lançando os hóspedes ali instalados, assim como as demais personagens em “terreno seguro” para situações de constrangimento que resultam em episódios ora cómicos ora extremamente absurdos. É neste preâmbulo que espoletam diversas reflexões sobre outras tantas problemáticas. Forçosamente, discorre-se sobre o isolamento, não apenas o conferido pela condição ilhoa (a trama ocorre numa porção de terra rodeada de mar, nunca identificada), mas, sobretudo, o isolamento psicológico experimentado pelas personagens, assim como as consequências a que este poderá aduzir. Por outro lado, a eterna insatisfação humana é também alvo de atenção, assim como o infortúnio da orfandade. Explora-se o amor, melhor dito, a ânsia de um amor partilhado e todas as vicissitudes a ele associadas. Numa súmula da obra, poder-se-á falar numa narrativa “polifónica que oferece várias perspetivas da mente e do comportamento humanos num momento de crise - criando tão depressa situações cómicas e absurdas como dolorosas e chocantes”.

Leitores há que, legitimamente, percebem uma identificação com a escrita de José Saramago, por exemplo, quando se deparam com personagens desprovidas de nome próprio: a Menina Sem Sorte Nenhuma, a Guia Turística, o Senhor Engenheiro, A Mais Recente ou o Barman. Não obstante, e numa análise um pouco mais alargada, recordemos também o Senhor Fulano de Tal, personagem importante em Mau Tempo e Má Sorte – Contos Poucos Exemplares, de 2014 ou, ainda, A Pessoa, personagem central em ABN Com Universo Ao Fundo, de 2017. Desta forma, torna-se claro que esta é uma estratégia literária selecionada pela autora e recorrente nos seus múltiplos trabalhos. A par de outras, como sejam o uso exímio do discurso direto livre, as subtilezas das descrições ou a gradação fleumática da própria narração, conferem-lhe uma voz própria, distintiva, assim como o reconhecimento da unicidade de um estilo que identificamos já como sendo da própria autora.

Acentuando ainda mais esta singularidade, atentemos na construção cuidada das suas personagens e na profundidade que a autora lhes confere. Não nos atenhamos somente a este Passagem Noturna, e verifiquemos, especialmente, o cuidado tido com as personagens femininas – geralmente as mais fortes da obra! É recorrente a problematização da temática chegar narrada no feminino e, também por isso, vir embrulhada em fina sensibilidade, não se deixando cair, todavia, num tom melancólico, adotando antes um pujante, determinado e suficientemente progressivo para manter o leitor agarrado, e criar admiração pelas próprias personagens.

Em Passagem Noturna, o plano formal ganha especial preponderância, podendo mesmo afirmar-se que é fundamental para a compreensão de toda a narrativa. Não terá sido por mero acaso que, aquando da apresentação da obra em Ponta Delgada, a autora pediu aos presentes que efetuassem a sua leitura, respeitando cada uma das partes, seguindo a sequência Prólogo – Primeira Parte – Segunda Parte – Terceira Parte – Epílogo. Efetivamente, é no epílogo que toda a trama urdida até então ganha nova consistência, muito mais lógica, e totalmente inesperada.

Numa outra perspetiva, são aqui lançadas duras críticas ao papel que o turismo tem granjeado na vida económico-social arquipelágica, especialmente na ilha de São Miguel, arriscaríamos. Servindo-se de imagens caricaturais e, sobretudo, do humor e da ironia, são apontadas faltas, exageros, devassas e outros, desde aquele famigerado mês de março de 2015. A coberto do desenvolvimento económico da região, cometem-se erros e praticam-se desmazelos, sob o impávido olhar de uma populaça que se preocupa apenas com o redutor chavão do “Agora é que o turismo dispara!”. Um turismo que já não respeita épocas, e que sempre se encontrou em alta tensão com o cada vez mais fragilizado meio ambiente das ilhas, incapaz de suportar a ganância incessante de alguns. Segundo a própria autora, “Eu acho que a literatura serve para nós refletirmos sobre a sociedade, sobre o nosso tempo, sobre nós próprios, e, de facto, uma das características da sociedade açoriana nos últimos tempos tem sido o crescimento do turismo. Julgo que isto é matéria mais do que suficiente para nós explorarmos consequências através da imaginação […]”.

A obra segue já o seu caminho, um trajeto que se espera de sucesso continuado, e será agora lançada na Feira do Livro de Lisboa, no dia 21 de junho, sendo a apresentação da responsabilidade de João de Melo, que, na contracapa se refere desta forma ao livro: “O sabor divertido, a sinfonia da prosa, a inventiva da ficção e o prazer de um texto literário novo na aventura criativa de Leonor Sampaio da Silva;”.

 

Leonor Sampaio da Silva, Passagem Noturna, D. Quixote, 2025

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