“Mesmo que eu me descalce e fique a sós comigo, a escuridão
apanha-me em cada passagem noturna em que sobrevivo para contar a história da
multidão que, diariamente, habita em mim e, diariamente, me abandona.”
(p. 246)
A
propósito de “Os Caminhos de um Escritor”, sentenciava Julio Cortázar, na sua
primeira aula em Berkley, que “O romance é esse grande combate que o escritor
trava consigo mesmo […]”.
Finda
a leitura de Passagem Noturna, de Leonor Sampaio da Silva, podemos asseverar
que este foi um combate vencido pela autora micaelense. Parafraseando Carlos
Fiolhais quando se referiu à obra, “Quem tem sorte somos nós, leitores!”. Não
bastasse o bonito percurso e as elogiosas referências que o livro tem arrecadado,
recordemos, pois, que este foi um dos romances finalistas do conceituado Prémio
Leya, no ano de 2023, o que, convenhamos, não é coisa de somenos, dado o
prestígio do próprio prémio literário.
Conquanto
Passagem Noturna seja o primeiro romance da autora e Professora
universitária, há nele uma evidente maturidade, criatividade e solidez
conferidas por sucessivas investidas por outros modos e géneros literários. São
exemplos Mau Tempo e Má Sorte – Contos Pouco
Exemplares (2014), distinguido com o Prémio Humanidades Daniel de Sá; ABN
Da Pessoa Com Universo Ao Fundo (2017); Pouca Terra (2019); ou Quase
um Carimbo (2022), este, particularmente interessante por revelar uma audaz
e bem-fadada incursão pelo modo lírico. Com efeito, a competência linguística,
assim como o lastro que foi granjeando com obras anteriores, resultam agora em
rasgados elogios e merecidas referências.
Retomando
Cortázar e as suas aulas em Berkley, ensinava o contista argentino que “[…] os
contos nunca são ou quase nunca são problemáticos: para os problemas, existem
os romances, que os colocam e que procuram muitas vezes resolvê-los.”
Em
Passagem Noturna, e fruto de um fenómeno natural repentino e
inexplicável, um hotel fica completamente separado da restante superfície,
sendo envolvido por uma cratera funda e praticamente intransponível, lançando
os hóspedes ali instalados, assim como as demais personagens em “terreno
seguro” para situações de constrangimento que resultam em episódios ora cómicos
ora extremamente absurdos. É neste preâmbulo que espoletam diversas reflexões
sobre outras tantas problemáticas. Forçosamente, discorre-se sobre o
isolamento, não apenas o conferido pela condição ilhoa (a trama ocorre numa
porção de terra rodeada de mar, nunca identificada), mas, sobretudo, o
isolamento psicológico experimentado pelas personagens, assim como as
consequências a que este poderá aduzir. Por outro lado, a eterna insatisfação
humana é também alvo de atenção, assim como o infortúnio da orfandade. Explora-se
o amor, melhor dito, a ânsia de um amor partilhado e todas as vicissitudes a
ele associadas. Numa súmula da obra, poder-se-á falar numa narrativa “polifónica
que oferece várias perspetivas da mente e do comportamento humanos num momento
de crise - criando tão depressa situações cómicas e absurdas como dolorosas e
chocantes”.
Leitores
há que, legitimamente, percebem uma identificação com a escrita de José
Saramago, por exemplo, quando se deparam com personagens desprovidas de nome
próprio: a Menina Sem Sorte Nenhuma, a Guia Turística, o Senhor Engenheiro, A
Mais Recente ou o Barman. Não obstante, e numa análise um pouco mais alargada, recordemos
também o Senhor Fulano de Tal, personagem importante em Mau Tempo e Má Sorte
– Contos Poucos Exemplares, de 2014 ou, ainda, A Pessoa, personagem central
em ABN Com Universo Ao Fundo, de 2017. Desta forma, torna-se claro que
esta é uma estratégia literária selecionada pela autora e recorrente nos seus
múltiplos trabalhos. A par de outras, como sejam o uso exímio do discurso
direto livre, as subtilezas das descrições ou a gradação fleumática da própria
narração, conferem-lhe uma voz própria, distintiva, assim como o reconhecimento
da unicidade de um estilo que identificamos já como sendo da própria autora.
Acentuando
ainda mais esta singularidade, atentemos na construção cuidada das suas
personagens e na profundidade que a autora lhes confere. Não nos atenhamos
somente a este Passagem Noturna, e verifiquemos, especialmente, o
cuidado tido com as personagens femininas – geralmente as mais fortes da obra! É
recorrente a problematização da temática chegar narrada no feminino e, também por
isso, vir embrulhada em fina sensibilidade, não se deixando cair, todavia, num
tom melancólico, adotando antes um pujante, determinado e suficientemente
progressivo para manter o leitor agarrado, e criar admiração pelas próprias
personagens.
Em
Passagem Noturna, o plano formal ganha especial preponderância, podendo
mesmo afirmar-se que é fundamental para a compreensão de toda a narrativa. Não
terá sido por mero acaso que, aquando da apresentação da obra em Ponta Delgada,
a autora pediu aos presentes que efetuassem a sua leitura, respeitando cada uma
das partes, seguindo a sequência Prólogo – Primeira Parte – Segunda Parte –
Terceira Parte – Epílogo. Efetivamente, é no epílogo que toda a trama urdida
até então ganha nova consistência, muito mais lógica, e totalmente inesperada.
Numa
outra perspetiva, são aqui lançadas duras críticas ao papel que o turismo tem
granjeado na vida económico-social arquipelágica, especialmente na ilha de São
Miguel, arriscaríamos. Servindo-se de imagens caricaturais e, sobretudo, do
humor e da ironia, são apontadas faltas, exageros, devassas e outros, desde
aquele famigerado mês de março de 2015. A coberto do desenvolvimento económico
da região, cometem-se erros e praticam-se desmazelos, sob o impávido olhar de
uma populaça que se preocupa apenas com o redutor chavão do “Agora é que o
turismo dispara!”. Um turismo que já não respeita épocas, e que sempre se
encontrou em alta tensão com o cada vez mais fragilizado meio ambiente das
ilhas, incapaz de suportar a ganância incessante de alguns. Segundo a própria
autora, “Eu acho que a literatura serve para nós refletirmos sobre a sociedade,
sobre o nosso tempo, sobre nós próprios, e, de facto, uma das características
da sociedade açoriana nos últimos tempos tem sido o crescimento do turismo.
Julgo que isto é matéria mais do que suficiente para nós explorarmos
consequências através da imaginação […]”.
A
obra segue já o seu caminho, um trajeto que se espera de sucesso continuado, e
será agora lançada na Feira do Livro de Lisboa, no dia 21 de junho, sendo a
apresentação da responsabilidade de João de Melo, que, na contracapa se refere
desta forma ao livro: “O sabor divertido, a sinfonia da prosa, a inventiva da
ficção e o prazer de um texto literário novo na aventura criativa de Leonor
Sampaio da Silva;”.
Leonor Sampaio da Silva, Passagem Noturna, D.
Quixote, 2025
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