quinta-feira, 31 de julho de 2025

𝐍𝐀̃𝐎 𝐀̀ 𝐓𝐄𝐑𝐑𝐀𝐏𝐋𝐀𝐍𝐀𝐆𝐄𝐌 𝐃𝐀𝐒 𝐀𝐑𝐓𝐄𝐒 𝐄 𝐃𝐀𝐒 𝐇𝐔𝐌𝐀𝐍𝐈𝐃𝐀𝐃𝐄𝐒


O articulista António Carlos Cortez publicou no Diário de Notícias (7 de julho) um artigo intitulado "A Filosofia e as Humanidades: o ataque ao pensamento na educação portuguesa", onde se lia:

"... o que se está a fazer na educação em Portugal é, por via de uma verdadeira política de terraplanagem das artes e das humanidades a preparar a sociedade futura portuguesa para um modo acrítico de ser e de estar neste país. O que vemos é mesmo uma política de terraplanagem em relação à língua portuguesa.

Os exames digitais anunciam o óbvio: a dominação do Poder sobre as gerações desmemoriadas nascidas já no século XXI. Depois de 12 anos sem terem de ler nada de nada, nem de saber escrever seja o que for, é da mais leviana falsidade dizer-se que, pelo facto de serem exames digitais, os alunos estão a ser preparados para um mundo cada vez mais competitivo.

O que acontece é justamente o contrário: as nossas crianças e adolescentes estão embrutecidas a um ponto tal que mais ecrãs só significa mais estupidez, mais banalidade e divórcio total com a cultura, o pensamento, a liberdade."

Embora se lhe possa apontar algum exagero em determinados pontos da sua argumentação, no geral, não há como discordar.

Este artigo passou-me no feed do Facebook há umas semanas. Recentemente recordaram-mo. Procurei-o, reli-o e percebi que nos Açores há que multiplicá-lo por dois, tal tem sido a urgência e o desnorte na introdução da tecnologia no âmbito da educação. Uma pressa que “não lembra o diabo”.

Não obstante as provas de Português sejam agora um tesouro escondido de todos (vá lá entender-se porquê), consegui analisar uma realizada digitalmente que, por hipótese, era composta por trinta questões, sendo que dessas havia apenas duas (!) de produção escrita: uma de resposta muito restrita e outra de construção! Os demais exercícios quedavam-se por ligar a coluna A à coluna B, ordenação de sequências, completamento espaços, frases para classificação de V e F, escolhas múltiplas, um autêntico disparate. Estas provas já não exigem redação, nem leituras prévias, nem pensamento abstrato ou crítico. Estas provas limitam-se a pedir que os alunos retirem do texto uma ou outra palavra e as reescrevam no espaço correto numa qualquer frase lacunar!

Há um exemplo extraordinário que ilustra muito bem a qualidade destas provas/exames, e refere-se a uma aluna que, fruto de diversas circunstâncias, nunca conseguiu nível positivo nos seus elementos de avaliação, ao longo de todo o Ciclo. Ora, na referida prova, esta menina obteve uma classificação no intervalo do Bom, e quando questionada sobre como conseguira, respondeu calmante:

“- Ah, senhor! Cá sei! Fiz tudo foi à sorte!”

Sim, nestes termos e com toda a veracidade inscrita num sorriso envergonhado.

A propósito da “terraplanagem das humanidades”, no fundo a terraplanagem do pensamento, foi pena o articulista não se referir mais profundamente aos programas, essa autêntica velharia, documentação bafienta a carecer de uma revisão profunda e urgente. No 2.º Ciclo, por exemplo, os alunos passam grande parte dos semestres (no plural, porque acontece no 5.º ano e, como se já não fosse coisa pouca, repetem no 6.º) em torno de textos não literários (notícias, panfletos, roteiros, e o diabo!). A saber das suas dificuldades, do seu ritmo de aprendizagem cada vez mais lento, mais a inevitabilidade da lecionação da gramática, assim como todos os condicionalismos paralelos, que tempo lhes resta para que leiam, problematizem, pensem, escrevam e resolvam? Estamos a criar uma geração que não sabe pensar, nem escrever nem ler. Tudo o que vá além do concreto é sinónimo de insucesso! Quando se pede mais tempo letivo para tentar minorar a situação, cai o Carmo e a Trindade!

Andávamos nisto há anos, mas, surpreendentemente, conseguimos piorar as coisas, permitindo todo este assalto da tecnologia às salas de aula. Não obstante – ingénuos –, continuamos à espera de que o milagre aconteça e que o pensamento crítico nasça “de geração espontânea” na cabecinha daqueles a quem ninguém exige que leiam ou escrevam; na cabecinha daqueles a quem não se pode pedir que decorem ou que tentem perceber o porquê das coisas. Pedimos-lhes apenas que preencham umas lacunas com umas palavras que até estão na tabela ao lado, mas depois ficamos à espera de que sejam indivíduos pensantes e capazes de enriquecer a sociedade onde se inserem.

Todos conhecemos o caminho para o sucesso, e todos sabemos que não é este que estamos a trilhar. Dar um passo atrás pode, muitas vezes, significar dar um grande salto para a frente, mas há que ter coragem.  “[…] as nossas crianças e adolescentes estão embrutecidas a um ponto tal que mais ecrãs só significa mais estupidez, mais banalidade e divórcio total com a cultura, o pensamento, a liberdade."

Ainda não é tarde!

Diário dos Açores, 24 de julho, 2025

terça-feira, 1 de julho de 2025

A Matéria das Estrelas

«Quem não voltava não informava os que tinham ficado, e o perigo permanecia inteiro para os próximos que tentassem o mesmo caminho.»

(p. 42)

O último romance de Isabel Rio Novo (IRN) A Matéria das Estrelas (2025) surge nas bancas das nossas livrarias ostentando o Prémio Literário Cidade de Almada, 2024. O percurso ficcional da autora tem sido marcado por diversas edições de sucesso, distinguidas com prémios literários, o que demonstra bem a qualidade imprimida nas suas obras, fruto, sobretudo, de um notório labor investigativo, de uma capacidade inusitada de subverter a realidade (tornando-a, talvez, mais interessante aos olhos do leitor), e de um natural virtuosismo que acompanha a autora portuense e lhe confere há muito um lugar destacado entre os melhores ficcionistas portugueses contemporâneos. Recordemos, por exemplo, Rio do Esquecimento (2016) e A Febre das Almas Sensíveis (2018), ambos finalistas do Prémio LeYa, ou Rua de Paris em Dia de Chuva (2020), finalista do Prémio da União Europeia para a Literatura e do Prémio de Narrativa do PEN Club ou ainda Madalena (2022), com o Prémio Literário João Gaspar Simões.

Na obra em apreço, IRN volta a explorar a condição humana: lança um olhar atento sobre as fragilidades físicas e/ou psicológicas do Homem, procurando dar conta delas, integrando-as num meio plausível, onde a descrição cuidada de espaços e ambientes ganha enorme relevo, criando, dessa forma, no leitor uma imagem mental de uma realidade em tudo verosímil. O cuidado na escolha dos nomes das personagens; o uso de vocabulário expressivo; o detalhe descritivo da decoração e dos ambientes; o tipo de atividades realizadas, tudo foi devidamente pensado e, em conjunto, estas escolhas formam um todo credível, estruturado e que facilmente é recriado pelo leitor. O domínio sobre o pormenor físico e psicológico é claramente um dos traços que nos permite reconhecer, de imediato, o estilo da autora, já tão vincado e desigual de todos os outros.

A matéria falível do Homem, os seus defeitos físicos e/ou deformidades psicológicas constituem um paradigma que tem sido recorrentemente observado por IRN. Recordemos os malfadados pacientes dos sanatórios portugueses, em particular aqueles internados no Grande Sanatório do Caramulo, em A Febre das Almas Sensíveis, lembremos as personagens em Rio do Esquecimento, vítimas das suas próprias fraquezas psicológicas ou de amarguradas vinganças por parte de outrem, ou revivamos o suplício de Madalena, na obra homónima, e todas as tribulações a que a vida a submeteu. Invariavelmente, há sempre quem padeça.

Em A Matéria das Estrelas, não é diferente e são várias as temáticas exploradas. Para tal, a autora serve-se uma família de classe média baixa, onde grassavam as dificuldades financeiras. É-nos caracterizada uma família onde “[…] cada escudo contava […]”. Em pleno Estado Novo, o pai – funcionário público de carreira – dava explicações, procurando equilibrar o orçamento familiar e a mãe dona de casa, como todas as outras mães da época costurava, cerzindo roupa, conferindo-lhe dessa forma uma segunda e às vezes uma terceira vida. Embora não pagassem renda, a casa onde habitavam era pertença dos avós, não havia possibilidade de um arrendamento e, mais difícil ainda, de uma aquisição. Viviam, por isso, sete pessoas na Vivenda Silva (avô materno, avó paterna, os pais Julieta e Narciso e três filhos do casal, Margarida, Jacinto e Dália), sita no Lugar: assim designada a toponímia do local onde se situava a residência da família. O pão da merenda (curiosa escolha de vocábulo, muito mais em voga em meios mais rurais e recuados no tempo. Talvez hoje se optasse pelo “lanche”) era seco e os manuais escolares transitavam de irmãos mais velhos para os mais novos.  Tenhamos presente que o 25 de Abril estava por acontecer e, reiteramos, “[…] cada escudo contava […]”. No foro familiar, «Não era habitual nessa época que os homens dedicassem tempo aos filhos […]», todavia, ali os mais novos eram educados numa rigidez paterna, que assentava sobretudo no cumprimento de preceitos religiosos. Decorrente da educação recebida em casa e moldado também pelos princípios pré-revolução, é notório o perfil psicológico de Jacinto, o protagonista: acanhado, algo ensimesmado, de pensamento comezinho e rural. Elevavam-lhe o espírito os livros que lia e talvez a proximidade que mantinha com o avô materno – antigo oficial da Marinha, homem de robustez física e de grandeza de carácter.

São exploradas aqui temáticas como a viuvez precoce e o casamento por conveniência, especialmente, entre nubentes que mantêm laços de sangue entre si; é vista a questão da deficiência física e todas as limitações e dificuldades a ela inerentes; aborda-se a complexidade do abuso de crianças e jovens, assim como a sexualidade e a homossexualidade, em particular. Parece-nos importante sublinhar o tempo da ação. Viviam-se os anos do fim do Estado Novo e os primeiros anos de Democracia, tempos bafientos onde ainda se perpetravam injustiças, a misoginia e se impunham ainda alguns normativos ditatoriais. Assim, cremos ser muito ajustado destacar o modo como a autora conseguiu tratar estes últimos temas, enquadrando-os à luz dos preceitos vividos à época. Por exemplo, na obra, embora descritos abusos sexuais, nunca são utilizadas as palavras “pedófilo, pedofilia” ou mesmo a palavra “crime” associada a tal comportamento, o que representaria, certamente, um anacronismo de difícil compreensão, mas também nunca se fala em denunciar e julgar o prevaricador, já que essa prática era inexistente na época retratada. Relembremos que, embora criticável e moralmente vergonhosa, essa não era uma prática do âmbito criminal. Estes detalhes são sintomáticos do cuidado que IRN procura impor na sua narrativa, tornando-a muito mais verosímil e próxima de uma realidade, felizmente, há muito distante.

Todavia, A Matéria das Estrelas está longe de se esgotar no que fica supradito. Num tom novelesco, que muitos associam já ao da prosa camiliana, a autora ousa ficcionar parte significativa da história de Portugal, procurando percebê-la, quiçá melhorá-la ou até mesmo aproximá-la do que terá sido a realidade dos Descobrimentos Portugueses, nos finais do século XV e início do século XVI. Subvertendo ditames da narrativa histórica, recorrendo a saltos cronológicos: analepses, prolepses são disso exemplos, e num exercício de grande valia, mas de difícil execução, IRN intercala, cria paralelismos, sugere associação de factos, enuncia distanciamentos entre a vida de marinharia dos próprios Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, mas, sobretudo, Bartolomeu Dias com a vida de Jacinto, o protagonista, um guarda-marinho do navio patrulha Flamínio, um jovem oficial nascido e criado em Lisboa, e colocado em missão no arquipélago dos Açores, servindo a Pátria, como fora desde sempre vontade de Francisco, seu avô materno e grande referência familiar.

Embora possamos recuperar nesta obra as características de um romance psicológico, não são por isso menos percetíveis as particularidades do romance policial. Ao longo de grande parte da narrativa é possível acompanhar a investigação encetada por Dr. Eduardo, médico e membro da família alargada dos Silva Fernandes, que procura deslindar todo o mistério criado em torno de um acidente que vitimou Jacinto e que o diminuiu substancialmente. É essa busca pela verdade o fio condutor que une todas as pontas desta interessantíssima narrativa, enquanto escancara ao leitor o retrato social do que eram as famílias e, no fundo, do que era Portugal nas décadas de 60 e 70 do século passado.

A par de toda a qualidade de linguagem a que IRN já nos habituou, o recurso a diferentes expedientes estilísticos, assim como o cuidado com as estratégias de produção escrita tornam a leitura deste livro no ato muito prazeroso e de regalo pessoal. Se a esse deleite lhe associarmos o mar, cenário que percorre em constância toda a obra, temos então reunidas as condições para uma leitura fresca e deleitosa, à qual ninguém se deve excluir.

Isabel Rio Novo, A Matéria das Estrelas, D. Quixote, 2025


 

quinta-feira, 19 de junho de 2025

Passagem Noturna

 



“Mesmo que eu me descalce e fique a sós comigo, a escuridão apanha-me em cada passagem noturna em que sobrevivo para contar a história da multidão que, diariamente, habita em mim e, diariamente, me abandona.”

(p. 246)

A propósito de “Os Caminhos de um Escritor”, sentenciava Julio Cortázar, na sua primeira aula em Berkley, que “O romance é esse grande combate que o escritor trava consigo mesmo […]”.

Finda a leitura de Passagem Noturna, de Leonor Sampaio da Silva, podemos asseverar que este foi um combate vencido pela autora micaelense. Parafraseando Carlos Fiolhais quando se referiu à obra, “Quem tem sorte somos nós, leitores!”. Não bastasse o bonito percurso e as elogiosas referências que o livro tem arrecadado, recordemos, pois, que este foi um dos romances finalistas do conceituado Prémio Leya, no ano de 2023, o que, convenhamos, não é coisa de somenos, dado o prestígio do próprio prémio literário.

Conquanto Passagem Noturna seja o primeiro romance da autora e Professora universitária, há nele uma evidente maturidade, criatividade e solidez conferidas por sucessivas investidas por outros modos e géneros literários. São exemplos Mau Tempo e Má Sorte – Contos Pouco Exemplares (2014), distinguido com o Prémio Humanidades Daniel de Sá; ABN Da Pessoa Com Universo Ao Fundo (2017); Pouca Terra (2019); ou Quase um Carimbo (2022), este, particularmente interessante por revelar uma audaz e bem-fadada incursão pelo modo lírico. Com efeito, a competência linguística, assim como o lastro que foi granjeando com obras anteriores, resultam agora em rasgados elogios e merecidas referências.

Retomando Cortázar e as suas aulas em Berkley, ensinava o contista argentino que “[…] os contos nunca são ou quase nunca são problemáticos: para os problemas, existem os romances, que os colocam e que procuram muitas vezes resolvê-los.”

Em Passagem Noturna, e fruto de um fenómeno natural repentino e inexplicável, um hotel fica completamente separado da restante superfície, sendo envolvido por uma cratera funda e praticamente intransponível, lançando os hóspedes ali instalados, assim como as demais personagens em “terreno seguro” para situações de constrangimento que resultam em episódios ora cómicos ora extremamente absurdos. É neste preâmbulo que espoletam diversas reflexões sobre outras tantas problemáticas. Forçosamente, discorre-se sobre o isolamento, não apenas o conferido pela condição ilhoa (a trama ocorre numa porção de terra rodeada de mar, nunca identificada), mas, sobretudo, o isolamento psicológico experimentado pelas personagens, assim como as consequências a que este poderá aduzir. Por outro lado, a eterna insatisfação humana é também alvo de atenção, assim como o infortúnio da orfandade. Explora-se o amor, melhor dito, a ânsia de um amor partilhado e todas as vicissitudes a ele associadas. Numa súmula da obra, poder-se-á falar numa narrativa “polifónica que oferece várias perspetivas da mente e do comportamento humanos num momento de crise - criando tão depressa situações cómicas e absurdas como dolorosas e chocantes”.

Leitores há que, legitimamente, percebem uma identificação com a escrita de José Saramago, por exemplo, quando se deparam com personagens desprovidas de nome próprio: a Menina Sem Sorte Nenhuma, a Guia Turística, o Senhor Engenheiro, A Mais Recente ou o Barman. Não obstante, e numa análise um pouco mais alargada, recordemos também o Senhor Fulano de Tal, personagem importante em Mau Tempo e Má Sorte – Contos Poucos Exemplares, de 2014 ou, ainda, A Pessoa, personagem central em ABN Com Universo Ao Fundo, de 2017. Desta forma, torna-se claro que esta é uma estratégia literária selecionada pela autora e recorrente nos seus múltiplos trabalhos. A par de outras, como sejam o uso exímio do discurso direto livre, as subtilezas das descrições ou a gradação fleumática da própria narração, conferem-lhe uma voz própria, distintiva, assim como o reconhecimento da unicidade de um estilo que identificamos já como sendo da própria autora.

Acentuando ainda mais esta singularidade, atentemos na construção cuidada das suas personagens e na profundidade que a autora lhes confere. Não nos atenhamos somente a este Passagem Noturna, e verifiquemos, especialmente, o cuidado tido com as personagens femininas – geralmente as mais fortes da obra! É recorrente a problematização da temática chegar narrada no feminino e, também por isso, vir embrulhada em fina sensibilidade, não se deixando cair, todavia, num tom melancólico, adotando antes um pujante, determinado e suficientemente progressivo para manter o leitor agarrado, e criar admiração pelas próprias personagens.

Em Passagem Noturna, o plano formal ganha especial preponderância, podendo mesmo afirmar-se que é fundamental para a compreensão de toda a narrativa. Não terá sido por mero acaso que, aquando da apresentação da obra em Ponta Delgada, a autora pediu aos presentes que efetuassem a sua leitura, respeitando cada uma das partes, seguindo a sequência Prólogo – Primeira Parte – Segunda Parte – Terceira Parte – Epílogo. Efetivamente, é no epílogo que toda a trama urdida até então ganha nova consistência, muito mais lógica, e totalmente inesperada.

Numa outra perspetiva, são aqui lançadas duras críticas ao papel que o turismo tem granjeado na vida económico-social arquipelágica, especialmente na ilha de São Miguel, arriscaríamos. Servindo-se de imagens caricaturais e, sobretudo, do humor e da ironia, são apontadas faltas, exageros, devassas e outros, desde aquele famigerado mês de março de 2015. A coberto do desenvolvimento económico da região, cometem-se erros e praticam-se desmazelos, sob o impávido olhar de uma populaça que se preocupa apenas com o redutor chavão do “Agora é que o turismo dispara!”. Um turismo que já não respeita épocas, e que sempre se encontrou em alta tensão com o cada vez mais fragilizado meio ambiente das ilhas, incapaz de suportar a ganância incessante de alguns. Segundo a própria autora, “Eu acho que a literatura serve para nós refletirmos sobre a sociedade, sobre o nosso tempo, sobre nós próprios, e, de facto, uma das características da sociedade açoriana nos últimos tempos tem sido o crescimento do turismo. Julgo que isto é matéria mais do que suficiente para nós explorarmos consequências através da imaginação […]”.

A obra segue já o seu caminho, um trajeto que se espera de sucesso continuado, e será agora lançada na Feira do Livro de Lisboa, no dia 21 de junho, sendo a apresentação da responsabilidade de João de Melo, que, na contracapa se refere desta forma ao livro: “O sabor divertido, a sinfonia da prosa, a inventiva da ficção e o prazer de um texto literário novo na aventura criativa de Leonor Sampaio da Silva;”.

 

Leonor Sampaio da Silva, Passagem Noturna, D. Quixote, 2025

quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

VEMO-NOS EM AGOSTO


Há umas semanas, e a propósito de uma crónica de Miguel Esteves Cardoso, escrevia: “Embora não o tenha lido ainda, e confesse que sou sensível à manifesta vontade do autor, a publicação deste parece-me aceitável, essencialmente pelas razões apontadas pelo MEC […]”.

Não obstante, terminada agora a leitura do livro, confesso que me abandonou, em definitivo, a certeza dessa aceitação, assim como passei a entender melhor a controvérsia que esta publicação póstuma provocou um pouco por todo o mundo literário. (Note-se que a edição é da responsabilidade dos filhos do Nobel, mesmo contra a vontade expressa do pai).

O livro agora publicado está inacabado e nada de relevante acrescenta à obra do colombiano, mas, e em abono da verdade, também não a diminui nem lhe belisca a qualidade. Então, por que razão trazê-lo a público, especialmente depois de Gabo ter manifestado a sua vontade?

Pelo autor se ter ocupado dele por sete anos parece-me um argumento demasiado frágil, muito embora tenha sido o utilizado por muitos, e alguns com grandes responsabilidades. Outros alegaram “ter o direito sacramental” de conhecer a obra que ficou inacabada, só por serem admiradores inveterados do autor. A obra completa está traduzida em dúzias de línguas; basta pegar num volume, reler e deixar-se comprazer. Outros, ainda, escudaram-se no esforço que o autor despendera, dada a sua manifesta incapacidade mental à altura e, só por esse esforço, já devia o texto ver a luz da publicação. 

Percebo, mas não acompanho!

Por outro lado, e recordando a enorme repulsa (para dizer pouco) que sentimos ao ler o livro «Gabo e Mercedes, uma despedida», (D. Quixote, 2023), da autoria do mesmo filho de García Márquez, Rodrigo Barcha, um texto despudorado que nada acrescenta à memória do pai, à sua brilhante vida literária ou privada, pelo contrário, expõe-no numa devassa à intimidade, numa fase final da vida em que o recato deveria ganhar outra dimensão, considerando as limitações, não podemos condenar aqueles que presumem haver aqui intuitos mercantilistas e móbiles meramente económicos, num aproveitamento (abusivo?) da imagem de Gabriel García Márquez, o que é péssimo! 

Embora diferentes, uma publicação e outra em nada dignificam a obra e muito menos engrandecem a memória do homem, pelo que encarregar-se-á o tempo de fazer perdurar os textos que efetivamente tiverem a qualidade para tal, e esses serão, por certo, os do realismo mágico brotados da imaginação e da mão criativa e saudável de García Márquez. 

Gabriel García Márquez, «Vemo-nos Em Agosto», D. Quixote, 2024

terça-feira, 8 de outubro de 2024

A Voz da Ilha: uma voz que convoca!


“Levanto-me e espreito pela janela. O céu está azul. Uma ou outra nuvem branca arrasta-se preguiçosamente, só para arreliar aquele azul tão intenso. Vou levantar-me. Quero sair para ver este mar de verdade. […] vou perguntar tudo. Vou saber esta Ilha como sei as minhas mãos.” (p. 18)

                                                    In. «A Voz da Ilha»

A apresentação de um livro é sempre um momento especial e de grande responsabilidade. Embora nunca queiramos desvendar em demasia, é sempre uma tentação levantar o véu e dar a conhecer as peripécias mais interessantes da narrativa, para que o potencial leitor possa também ser enlaçado de imediato pelo universo do autor.

Neste caso em particular, essa tentação chega em dobro, primeiro porque a autora é a Anabela Freitas, uma escritora que já por bastas vezes provou estar entre as vozes mais proeminentes da literatura portuguesa, com especial enfoque - e permitam-me - naquela dedicada à infância e juventude, e depois porque o imaginário trazido até «A Voz da Ilha» é-nos a todos muito caro, já que se debruça sobre os Açores, os açorianos, a história do arquipélago e, sobretudo, sobre a identidade açoriana.

Conquanto «A Voz da Ilha» venha a ser catalogada como uma obra infantojuvenil, ajustada, essencialmente, aos jovens adolescentes, parece-nos que não deverá ser também olvidada pelos mais velhos, pelo público em geral e pelos açorianos, em particular, e isto, porque temos diante de nós um texto que consolida, sobremodo, a ideia do que foi e do que é ser-se açoriano nas ilhas e na diáspora. Este é um contributo precioso para se perceber as mutações que se operam na mentalidade das pessoas que vivem a condição da emigração por necessidade. É um livro sobre nós!

Em concreto, Anabela Freitas serve-nos não uma, mas várias perspetivas da mentalidade açoriana, valendo-se para tal do pensamento e da forma de estar e interagir de três gerações de uma mesma família de emigrantes, marcada de forma indelével pela pobreza ilhoa, e que, nos frios canadianos busca melhores condições de vida, aliás, como sabemos, percurso tomado por milhares de portugueses açorianos e não só.

Ao longo da leitura é notório o profundo conhecimento que a autora detém sobre o arquipélago, para além de muitas das suas especificidades, encontrando-se detalhes assinaláveis não apenas de índole histórica, como também cultural, ambiental, as rotinas ou as festividades da Ilha (sempre escrita com inicial maiúscula), curiosamente uma ilha nunca nomeada, mas que arriscaríamos ser uma das mais pequenas do arquipélago: pouco povoada; muito rural; com uma vila e algumas freguesias. Esta talvez...

Embora não haja muitas referências temporais ao longo do texto, inferimos que o início desta aventura canadiana se situe em meados do século XX, quando muitas centenas de ilhéus se viram atirados ao desespero, se sentiram mergulhados na miséria mais profunda, numa penúria que não chegava para forrar o estômago e tiveram de partir, carregando tristezas, memórias e saudades, mas também esperança numa vida melhor, mais folgada, e que culminasse no regresso então já tão desejado. Partiam rumo ao incerto, com a certeza de que ficar não era solução. Por tudo isto e mais, esta é uma obra que imerge nas raízes culturais, sociais e históricas dos Açores e dos açorianos, que explora a dicotomia entre a necessidade do ir, do partir em busca e o apelo incessante da ilha, do regresso a casa. Ganha voz o telurismo, o chamamento das raízes. Em concreto, Anabela Freitas recria a emigração de um casal que, com uma filha ainda adolescente, parte rumo ao Canadá e lá trabalha arduamente, procurando poupar o máximo para, logo que possível, regressar à terra. Vivem lá melhor do que nos Açores, mas trabalham muito e poupam o que podem, sendo frequentemente apontados por isso mesmo:  

“- Éramos nós que tratávamos do jardinzito. Plantávamos alfaces e couves, em vez de flores, o que fazia com que se rissem de nós. Nunca nos importámos com isso, porque poupámos muito assim. Nunca fomos de férias.” (p. 40)


Só aquando da entrada da segunda geração no mundo do trabalho, as coisas começaram a mudar. Com mais dois braços a contribuir para as despesas da casa, as condições de vida melhoraram significativamente.

Sendo um livro que narra uma viagem física, aquela que se dá entre Vancouver e a Ilha, há também aqui lugar a outras viagens, muito mais pessoais e que ocorrem no íntimo de cada um, viagens bem arreigadas aos traços que, em uníssono, formam a personalidade de cada personagem. Viagens demoradas, interiores e com transformações de carácter; há aqui lugar ao abalar de certezas, pela descoberta de novas realidades e pelo alargamento de velhos horizontes; ruem convicções e crenças ante o despertar de novas consciências. Há aqui personagens que, ao longo do mês de estada na Ilha, experimentam tais transformações psicológicas que dir-se-ia que, à data do regresso aos frios canadianos, partem “novas pessoas”, completamente transfiguradas pela Ilha, pelos seus usos e costumes, pelas gentes da Ilha…

Se os mais velhos sentiam constantemente o apelo telúrico, o chamamento da Ilha, se estes eram continuadamente assolados pela saudade e vontade de regressar, esse sentimento vai-se esbatendo nas gerações seguintes e, salvo raras exceções, das quais Ana – a protagonista – faz parte, gradativamente, chamamento ilhéu vai-se esfumando, até que, já numa terceira geração de família emigrante, acaba mesmo por desaparecer. Anabela Freitas explora muito bem esta viagem, que diríamos identitária, onde, pela natural aculturação, se vão perdendo os traços comuns, os costumes e as tradições, “deixando assim de se demarcar” vincadamente diferenças e especificidades, no fundo, “o que alavanca aquilo a que comummente designamos por identidade!”, como outros a designaram.

Com efeito, se os avós almejam o regresso pleno às raízes, os pais já procuravam deliberadamente abandonar usos e costumes (nomeadamente a prática religiosa e a língua) buscando a integração plena e rápida, procurando combater, dessa forma, estigmas e preconceitos raciais e cito:

“Não sei porquê, mas ser filha de portugueses não me parece ser muito popular nesta cidade […]” (p. 5)

Há aqui também lugar à reflexão sobre a forma como eram (ou como são ainda?) recebidos os imigrantes e as diferenças de postura dos locais mediante a proveniência daqueles. Veja-se:

“Parece que os pais dele são de origem inglesa. Também imigraram para Vancouver, mas esses eram de outra espécie de imigrantes: os bem recebidos.” (p. 14)

Como muito bem escreve a autora, e cito:

“Não se é melhor ou pior por os pais terem nascido num sítio ou noutro.” (p.6)

Curiosa frase que se reporta aos comportamentos tidos na segunda metade do Século XX, e que, infelizmente, granjeia ainda hoje tanto significado. Devíamo-nos sentir envergonhados!

No livro, magnificamente ilustrado pelo artista plástico Rui Paiva, e como foi já dito, relata-se uma viagem até à Ilha, e explora-se o impacto que esse reencontro para uns e novidade para outros tem no íntimo de cada personagem. Torna-se, por isso, muito interessante acompanhar as diferenças psicológicas das diferentes personagens, à medida que se vão avolumando as vivências num espaço de onde, efetivamente, vêm as raízes de todos. É particularmente encantador ver como os elementos naturais da ilha produzem efeito na personalidade e comportamentos das personagens: o mar, o azul do céu e do mar, a dureza da terra, a humidade…

“Vou saber esta ilha como sei as minhas mão.” (p.18)

E cito novamente:

“Junto à costa formavam-se cordões brancos de ondas. De vez em quando, uma brisa mais fria vinha levantar-lhe fiapos: pareciam cabelos! Serão os cabelos das sereias? Sim, isto sim: isto é o Mar! Só para vê-lo valeu a pena ter vindo. A avó tinha razão.” (p. 22)

Embora revestida de forte carga subjetiva, a linha narrativa que mais interesse desperta ao longo de todo o texto, é o confronto de opiniões entre as irmãs Ana, a mais nova e Eva, a mais velha. Aliás, é na constatação dessas diferenças de pensamento, sequente evolução e aproximação final das mesmas que reside o âmago de toda esta viagem. Inicialmente em polos diametralmente opostos, Ana mostrava-se entusiasmada, procurando sorver o máximo de informação que pudesse sobre a terra dos pais e dos avós. Por outro lado, Eva sentia aborrecimento em tudo quanto vivenciava, chegou contrariada e a todos respondia com má cara e reparos vários, desdenhava de tudo, por se sentir canadiana, e por ter consciência de que não pertencia àquela “selva” – palavra da autora. Todavia, com o desenrolar da narrativa, há mutações e, enquanto em Ana estas se operam em termos de desenvolvimento da religiosidade, culto e crença, em Eva essas chegam por via do amor, esse sentimento que a todos transforma, e que a fazem relativizar tudo quanto tinha como fundamental na sua vida ainda adolescente.

Este é um escrito rico, e será sempre um texto de viagem, ou de viagens, não apenas ao íntimo de cada personagem, mas também ao pensamento de cada leitor. Chega-nos num registo mais ou menos híbrido, já que combina a diarística com a narrativa de ficção mais tradicional, originando essa alternância de géneros uma vivacidade muito interessante, permitindo, ao mesmo tempo, jogos temporais de grande subtileza, usando-se para tal analepses e/ou prolepses particularmente expressivas.

A «A Voz da Ilha» é, por tudo isto, uma voz que convoca; é uma voz forte que abre fendas na linha do tempo e traz à montra do presente uma estória que, afinal é a nossa História. Esta é uma voz que merece ser lida com o aprumo de todos os sentidos.

 

Anabela Freitas, «A Voz da lha», Letras Lavadas, 2024


(Gazeta de Paços de Ferreira, a 9 de outubro de 2024.)


#livrosecoisasdessas

segunda-feira, 8 de julho de 2024

LADY BOBS, O SEU IRMÃO E EU – U M ROMANCE DOS AÇORES



Apresentar um livro encerra sempre uma forte carga emocional e é um momento de grande responsabilidade. Penetrar o universo de quem produz a obra e procurar entender os motivos que levaram à sua saída para o prelo nunca é tarefa fácil, especialmente quando falamos de uma obra escrita e publicada nos anos inaugurais do século XX, há mais de um século, portanto.

Em concreto, trata-se de um texto com cerca de cento e vinte anos de idade, escrito por Jean Chamblin, uma mulher americana, com ascendência em França, nascida no Outono de 1876, e cuja vida dedicou às artes e ao ativismo. No teatro, por exemplo, desempenhou alguns papéis de relevo e alcançou algum sucesso junto da crítica da especialidade, assumindo, todavia, alguma falta de talento, o que terá originado esta viagem que sustenta toda esta narrativa romanceada.

 

“Em resumo, não tenho talento suficiente para o sucesso, nem vaidade suficiente para o fracasso. E quero ar para lutar e expulsar isto de mim.” (p. 41)

 

Por serem inúmeras as semelhanças entre factos biográficos relevantes e comuns muitos traços entre a Jean Chamblin – a autora – e Kate – a protagonista e narradora da obra – torna-se consensual considerar o livro como autobiográfico, sendo que este nasce a partir de uma viagem marítima efetuada pela autora (e pela protagonista) desde Nova Iorque até ao arquipélago dos Açores, viajando a bordo do Santa Maria, com os desígnios de encontrar descanso e um pouco de diversão, fugindo dessa forma à obscuridade em que se tornara a vida profissional. Isso mesmo é afirmado na imprensa da época, aquando da primeira publicação do romance:

 

The present story is the result of a trip to the Azores in search of rest and diversion. Having found these she proposed that others sould share her diversion if not her rest” (p. 24)

 

A autora, depois de se dedicar de forma empenhada ao estudo da educação para a infância, redireciona, então, o seu percurso profissional para a representação e para a escrita, tendo, todavia, publicado apenas este texto agora apresentado, na altura com vinte e nove anos de idade, o que em boa verdade levanta um certo mistério ainda por desvendar.

O texto é primeiramente publicado em série mensal, na revista The Critic e só posteriormente, já em finais de 1905, é publicado em livro, pela G.P. Putnam’s Sons, hoje do grupo Penguin.

Maioritariamente epistolar, o texto baseia-se no enredo criado a partir das relações estabelecidas entre um reduzido grupo de pessoas que, de forma inusitada – ou não – se reencontra nos Açores, em São Miguel, mais concretamente, e se aloja no Hotel Brown, um hotel citadino, onde hoje de situa a Pousada de Juventude de Ponta Delgada, fundado por George Brown, um jardineiro inglês contratado e trazido para a ilha por José do Canto, em 1845.

Recuperando da memória ambientes urbanos, mas também aqueles outros bucólicos e campestres onde nobres e/ou burgueses se entretinham alegremente, é-nos constantemente oferecido um panorama fidedigno da realidade ilhoa daqueles primeiros anos do século XX, seja da vida que pulsava pelas artérias da cidade, mais especificamente na Rua do Beco, hoje Rua São Francisco Xavier, seja aquela que corria pacatamente na cratera das Sete Cidades ou mesmo no pacífico vale das Furnas, onde se desenrola parte significativa da trama.

A viagem aos Açores, cuja duração se estima em cerca de três meses, desde a segunda metade de abril de 1902 até ao regresso aos Estados Unidos em julho do mesmo ano, inicia-se em Nova Iorque a bordo do Santa Maria, tendo a embarcação passado pelo Faial, São Jorge, Terceira e São Miguel.

Valendo-se de uma escrita simples, escorreita, ora em harmonia com a simpleza dos ambientes descritos, ora um pouco mais intensa e até revestida de uma comicidade em conformidade com as interações entre personagens, este é um bom exemplo de literatura de viagem, e embora se possa lamentar a ausência de referência a algumas das ilhas do arquipélago, o que nos traz imediatamente à memória a incompletude da obra «Ilhas do Infante», de Guilherme de Morais, também o reduzido destaque conferido àquelas ilhas além de São Miguel é motivo de anotação, todavia, retenhamos o que diz a autora sobre o arquipélago:

 

“Estão aqui todas, as nove ilhas dos Açores. Pequenas ilhas cheias de orações e santuários e sinos vespertinos, enfiadas num fio de água, como as dezenas nas voltas de um Rosário do Mar. […]

Acontece-nos apenas uma vez na vida sermos mesmo levantados do chão.” (p. 51)

 

 Não obstante, o que poderá, eventualmente, pecar pela curta extensão, redime-se fazendo vingar uma enorme qualidade literária, assim como uma brilhante combinação de géneros de que a autora se vai servindo ao longo da obra. Grande porção destes relatos conduz os leitores a uma narrativa de viagem verdadeiramente extraordinária, abrindo-lhes possíveis perspetivas de integração ou, pelo menos, fazendo-os apaixonar-se irremediavelmente pela realidade ilhoa:

 

Caminhámos ao longo de uma rua estreita, com casas de pedra pintadas em tons suaves de amarelos, azul e rosa, vermelho e verde, e de então em diante nunca mais os meus pés tocaram o chão, e a minha memória regista apenas o badalar dos sinos das igrejas, a passagem silenciosa de homens descalços e o misterioso capote e capelo, ou o barulho das pequenas galochas de madeira; o gincho do velho carro de madeira, com as suas rodas de madeira maciça e a sua junta de bois; o burro com a sua carga, e o rapaz pequeno com o seu cigarro; pequenas cruzes e grandes cruzes, grande igrejas e pequenas capelas – e as pessoas bondosas, à sua sombra, a saudarem-nos com simplicidade; e acima de tudo um céu tão azul como papel mata-borrão, e abaixo de tudo o estrondo do mar a bater contra o paredão de pedra negra.” (pp. 53-54)

 

A leitura que conseguir penetrar além do ato meramente descritivo e contemplativo, pese embora, este, per se, seja já digno de assentamento, resultará numa enorme tela, onde foi pintada a traço fino e delicado muito que seriam os Açores e os açorianos no início do século XX. Mas, convenhamos, nem tudo eram rosas…

 

“Há momentos em que trocaria todas as nove ilhas dos Açores por uma boa chávena de café.” (p. 102)

 

Servindo-se muitas vezes de uma linguagem luxuriante, mas nem por isso menos lúcida, Jean Chamblin dá-nos conta das belezas naturais do arquipélago, não olvidando de, a trechos, lançar o seu olhar expositivo e, subliminarmente, crítico sobre a vivência social, económica, no fundo, sociológica, nos Açores, nesses primeiros anos do século XX, servindo-se, para tal, de Lady Bobs, uma personagem inglesa, de bom coração, mas revestida por uma personalidade altiva, marcadamente aristocrática, e levemente afetada pela rudeza das ilhas e particularmente pela incultura de algum do povo açoriano:

“- Pergunto-me por que não morrem todas estas crianças. Olha para elas! Vê aqueles bebés vestidos com uma só peça de roupa, amarrada sob os braços, enquanto se sentam nestes frios chãos de pedra. É chocante. Surpreende-me que uma só delas sobreviva.” (p. 128)

 

Esta é uma obra que precisa de ser lida com calma, (re)construindo mentalmente cada imagem, saboreando cada descrição, para assim conseguir trazer à memória cada recanto, cada visão, cada ângulo ou ponto de vista descritos. Mesmo considerando a incompletude em termos de ilhas visitadas, assim como as diferentes “profundidades” consignadas a cada ilha (fruto, sobretudo, do tempo de estada do Santa Maria em cada porto) este relato propicia uma visão distinta do arquipélago e, mesmo os afortunados que já calcorrearam as nove ilhas que o compõem, terão aqui uma oportunidade de se apropriar de uma outra visão que lhes é oferecida a partir do longínquo ano de 1902. Para aqueles outros que se encontram em processo de “ilharização”, esta obra reveste-se, então, de uma valia redobrada, dando-lhes a conhecer uma visão do passado que sustenta hoje a realidade que todos reconhecemos, assente não apenas numa trama viva e extremamente interessante, mas também num conjunto de fotografias, que, em uníssono possibilitam novas camadas percetivas, muitas vezes, inalcançáveis, seja pela acentuada lonjura geográfica, ou pela falta de acesso à eternização destes rasgos históricos temporalmente distantes, como é o caso aqui hoje referido.

Como posteriormente o fizeram Raul Brandão, Guilherme de Morais e outros, esta é mais uma das muitas vozes (açorianas ou não açorianas) que tão bem soube engrandecer as nossas ilhas, descrevendo-as com os melhores adjetivos, captando-lhe os mais exuberantes espaços, mas sem nunca cair na tentação de uma condescendência bacoca e ilusória, tornando-se por isso em um dos expoentes que tanto enobrece a cada vez mais robusta literatura de viagens que tem os Açores como palco. Foi, portanto, em boa hora que Manuel Menezes de Sequeira, lisboeta radicado e encantado na ilha das Flores, decidiu dá-lo a conhecer aos leitores portugueses, traduzindo e apontando esta edição com preciosas notas de contexto geográfico e temporal, e que em tanto favorecem a compreensão da narrativa, pelos seus leitores contemporâneos.

Por isto mesmo, a ele, a minha vénia e o meu agradecimento pela coragem e labor tidos na publicação deste texto que, de outra forma, muito provavelmente, acabaria por desaparecer nas profundezas mais escuras do esquecimento.


Jean Chamblin, «Lady Bobs, o Seu Irmão e Eu, Um Romance dos Açores», Letras Lavadas, junho 2024


 

sábado, 6 de janeiro de 2024

A Força das Sentenças



«Estar doente sem direito a cura é algemar a esperança, decapitar a fé. 

Um homem pode adoecer de qualquer coisa, mas não lhe roubem a luz ao fundo.»

in A Força das Sentenças, Pedro Almeida Maia

 

O último mês de 2023 revelou-se excecional para o mundo literário açoriano. Encerrámos o ano a festejar a vitória de Pedro Almeida Maia, que arrecadou o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes 2023, com a sua mais recente obra, A Força das Sentenças.

Os jurados Idalina Rodrigues, Mila Mariano e Carlos Café decidiram, por unanimidade, distinguir esta novela de entre cento e vinte obras a concurso «[…] pela atualidade do tema, pela originalidade e pela criatividade […]». Foi ainda destacada a «[…] linguagem metafórica evidente na preocupação do autor em causar impacto no leitor […]» traço aliás distintivo da escrita de Almeida Maia, tendo sido já colocada em evidência em outros trabalhos seus. A obra vencedora deste prémio, atribuído pela Câmara Municipal de Portimão, «[…] com o objetivo de promover e estimular a criação literária.», foi editadapela On y va e já se encontra disponível para comercialização.

Dividida em vinte e cinco capítulos, esta novela traz à luz do presente a condição final de um doente de Alzheimer, assim como todas as adaptações familiares e logísticas que o avançar da doença acarreta. Repetidas falhas de memória de acontecimentos recentes (a contrastar com a nitidez de um passado vivido há muito), confusões constantes, desorientações geográficas, dificuldades no cumprimento das rotinas de higiene, vestuário e outras ditam o diagnóstico e o destino de um homem viúvo que, em busca de um acompanhamento mais eficaz, se vê obrigado a trocar o seu Alentejo de quarenta anos por uma nova moradia na cidade de Coimbra

Almeida Maia redigiu um texto marcadamente realista, decerto assente em vasta informação recolhida, o que lhe conferiu a oportunidade de manter um discurso coerente, firme e objetivo do princípio ao fim da novela, mesmo considerando a progressão da doença, que redundou numa expetável gradação crescente de angústia e sofrimento. Por outras palavras, há uma progressão natural do discursoque surge paralelamente ao desenvolvimento da própria doença da personagem.

O autor de A Escrava Açoriana optou por abordar um tema substancialmente diferente daqueles sobre os quais tem escrito, todavia, fê-lo com o rigor a que já habituou os seus leitores. A preferência pela narração autodiegética, portanto em primeira pessoa gramatical, faz aqui toda a diferença, já que acentua o realismo da própria doença, abrindo ao leitor janelas pelas quais pode visualizar aforma como um cérebro cansado e em fase de demência se comporta, quando afetado pela doença. Esta será, seguramente, a maior riqueza deste texto, sendo, ao mesmo tempo, sintomático do virtuosismo do autor, por ele próprio se ter emprestado essa posição tão delicada e especial. 

A Força das Sentenças, escrita em memória de Hélder Corrêa Melo, é, em muitos momentos, um texto pesaroso, sobretudo, quando o próprio doente atravessamomentos de pálida lucidez e se apercebe, ainda que vagamente, da sua situação clínica e de como ela condiciona a vida dos que o rodeiam: «Não tenho conseguido agradar à minha filha e não sei o porquê de isto estar a acontecer. Continuo a tentar ser eu mesmo, apesar da doença.»; «Esta doença veio rasgar-me a vida e destroçar a felicidade da minha filha. Sou maior empecilho do que ajuda, maior entrave do que facilitador. O melhor é mesmo desaparecer.»

Típicos desta forma de demência (cada vez mais prevalente na população mundial), são os sintomas comportamentais obsessivo-compulsivos, e Almeida Maia teve o cuidado de os incluir nesta narrativa: a intransigência ante a mudança de local de determinados objetos, os diversos episódios com o pudim de coalhada ou com a rede esticada no jardim exterior da moradia são exemplos disso mesmo.

Aqui são amplamente honrados todos os doentes de Alzheimer e até outros que padecem de outros tipos de demências. Almeida Maia oferece-nos um texto muito bem estruturado, conferindo o tempo certo a cada estádio da própria doença, e sempre em direção ao inevitável, numa cadência equilibrada, que envolve o leitor, retendo-o na leitura. Nunca revela uma atitude paternalista, e expõe ao leitor a doença em toda a sua severidade. Digna de referência é também a visão sobre o cuidador do doente, dando nota da exigência requerida para que o acompanhamento seja o mais eficaz possível.

A obra culmina com o brilhantismo de um Epílogo que terá, forçosamente, de inculcar diversas questões sobre a nossa própria existência, sobre a nossa condição humana e sobre a forma como nos movemos enquanto membros integrantes de uma comunidade. Temos entre mãos um livro que espelha fielmente as vicissitudes de uma temática muito atual, muito angustiante e sempre demasiado dolorosa. Foi escrito numa linguagem pertinenteajustada e assente no estilo próprio a que o autor nos habituou. Convenhamos que não foi por mero acaso que Almeida Maia se destacou de entre os cento e vinte trabalhos levados a concurso e ganhou mais este prémio, que tão bem reconhece o excelente percurso que o autor tem vindo a trilhar.

 

Pedro Almeida Maia, A Força das Sentenças, On Y Va, dezembro de 2023