domingo, 5 de fevereiro de 2023

Entrevista à Agenda Açores


Afirmou em entrevista ao Diário dos Açores, de 22 de Janeiro, que o livro O Lugar da Trindade e Outras Narrativas procura resgatar do esquecimento algumas memórias dos seus 20 anos insulares e doutros marcos importantes da sua vida. Qual das narrativas lhe deu mais prazer e nostalgia em escrever e qual foi a mais penosa?

É verdade, procuro transportar nestas narrativas diversas memórias, sejam as vivenciadas por mim, sejam aquelas que construí a partir de conversas ou leituras que fui fazendo. Quando, numa das narrativas me refiro ao Jorge Piuza, e embora haja nesse texto grande componente ficcional, o enredo foi vivido comigo por perto. Estive lado-a-lado dos factos que ali vêm descritos e lamento profundamente o desfecho da história daquele “menino de ouro”. Por outro lado, numa outra narrativa é aflorada a temática da baleação a que, naturalmente, já não assisti. Não tinha ainda dez anos quando se apanhou o último cachalote nos Açores, o que não impediu de me apaixonar pela temática, sobretudo, depois de ler Dias de Melo e outros, que tão bem escreveram aquela importante atividade para a região e mormente para a ilha do Pico. Criaram em mim imagens do que terá sido a baleação, imagens essas que procurei, de alguma forma, corporizar nessa narrativa. O texto que mais prazer me deu escrever foi o que abre a obra – O Comodato – não apenas pelo móbil que esteve na sua origem, mas também porque nele agrego de uma forma mais ou menos harmoniosa, muito do que vejo ser a existência açoriana. Eu vivo num centro urbano, mas trabalho num espaço rural, e essa dicotomia garante-me uma abrangência de vivências muito interessante, ao ponto de perceber que há ainda um fosso muito grande entre o espaço urbano e o espaço rural, sobretudo em termos de acesso à cultura, o que influi, definitivamente, na forma como as pessoas olham a vida e sobre as expetativas que têm sobre ela. Em termos de nostalgia e pesar, reporto-me, naturalmente, às narrativas que têm a toxicodependência como pano de fundo: Jorge Salimo Piuza, Fórmula C21H23NO5, porque cada uma veicula a história desgraçada de uma pessoa amiga que se perdeu, irremediavelmente, nesse mundo intrujão, dominado pela droga e suas consequências nefastas. 

 O Telmo costuma opinar acerca dos livros que vão sendo publicados nos Açores e afirma, inclusive, que a nossa literatura “está bem e recomenda-se”. Como espera que este seu livro seja recebido pelo público e pela crítica?
A nossa literatura açoriana vive um momento muito bom. Não tendo quaisquer dados que o garantam, creio que nunca se terão publicado tantos autores e com tanta qualidade. Acredito que, pelo menos para os anos vindouros, teremos o futuro assegurado; note-se o labor e virtuosismo de autores como Paula de Sousa Lima, Nuno Costa Santos, Joel Neto, Diogo Ourique, Leonardo, Maria João Ruivo, Henrique Levy, João Pedro Porto, Maria Brandão, Pedro Almeida Maia, Leonor Sampaio Silva e tantos outros. Recordemos, também, os mais experientes e que tão bons desempenhos têm mantido: Urbano Bettencourt, Tomaz Vieira, Onésimo T. Almeida, Vamberto Freitas, Vasco Pereira da Costa... Tenhamos, pois, confiança no futuro, ele será sorridente! Relativamente à forma como as pessoas irão receber este O Lugar da Trindade e Outras Narrativas, é uma perfeita incógnita. Estou ciente de que já não publico em nome próprio desde 2012, pelo que tudo pode acontecer. As críticas que me chegaram das últimas participações em volumes coletivos foram muito agradáveis, pelo que parto com alguma confiança. Naturalmente, é meu grande desejo que as pessoas leiam o livro e o apreciem. Gosto, inclusivamente, de solicitar o feedback ao leitor, porque sei que a sua opinião é fundamental para quem escreve. Neste caso, são dez narrativas, umas inéditas outras em reedição, mas são, antes de tudo mais, dez histórias que quis partilhar com os leitores, combinando a realidade com a ficção, tudo em doses aceitáveis. Espero que gostem, pelo menos de algumas! J

Para si, um bom livro tem de ter uma boa história, assente na verossimilidade de um tempo e de um espaço e servida por personagens fortes e credíveis. Quais livros mais lhe enchem a alma, preenchendo todos estes requisitos?
Quando há esmero na concretização das categorias da narrativa, por norma, o resultado é promissor. Há outras condicionantes de igual importância, mas referi-me a essas por serem as que mais relevo na leitura recreativa. Nesse sentido, e sabendo que qualquer lista pecará sempre por defeito, permitam-me escudar-me nos grandes títulos universais: O Grande Gatsby, de F. Scott Fitzgerald, Cem Anos de Solidão, de Gabriel García Márquez, O Retrato de Dorian Gray, de Oscar Wilde ou Se Isto É Um Homem, de Primo Levi. No entanto, reportando-me à literatura portuguesa, muito recentemente, o talento deu ao mundo dois romances fabulosos que, com toda a legitimidade, integrarão as listas de grandes sucessos literários: Rua de Paris em Dia de Chuva, de Isabel Rio Novo e A Escrava Açoriana, de Pedro Almeida Maia.

  Há um autor, açoriano ou não, que admire particularmente?
Claro que sim. É natural que a sensibilidade do leitor se aproxime mais de um ou de outro autor, até pelas diferentes formas de abordagem a determinadas temáticas. Pessoalmente, e no que se refere à literatura açoriana, não faço qualquer questão de encobrir a minha admiração profunda pela obra de Daniel de Sá, não apenas por ter sido o autor que me abriu as portas à “ilharização” literária, mas também, e sobretudo, pelas temáticas recorrentes na sua obra: a religiosidade ou o repetido padecimento do povo Judeu, por representarem dois temas que me marcam profundamente.
Sei que há mais projectos de escrita em cima da mesa, mas ainda há algum que sonha em realizar?

Tenho concluído um projeto completamente diferente deste, mas que me conferiu especial gozo e encetei já a escrita do que poderá vir a ser um conjunto de contos. No âmbito do texto narrativo, já experimentei a crónica, o conto, a novela. Dir-me-ão que me falta o romance. Todavia, o que gosto mesmo é de contar histórias, sendo que a forma como elas chegam não é o mais importante. Gosto de experimentar, por isso, num futuro ainda distante, talvez enverede pelo romance
Na sua opinião, quais são as maiores qualidades da literatura açoriana e que a fazem distanciar-se das demais, e como se deveria fomentar a sua leitura? 
Esta é uma pergunta perigosa, mas muito interessante e arrojada. As maiores qualidades da literatura açoriana têm de ser exatamente as mesmas daquelas reconhecidas em literaturas de outras geografias. Paradoxalmente, são essas que a afasta e diferencia das demais, assumindo-se com uma voz própria e diferenciadora. Não devemos deixar de escrever aquilo que é nosso, mas temos de revelar a capacidade (e talvez seja esse o maior desafio) de integrar todas estas realidades, que nos são próximas e familiares, num contexto mais lato e que se quer universal! O Joel Neto granjeou amplamente esse feito com o seu Meridiano 28, uma obra singular, muito apreciada por todos os leitores. Foi também por isso que esse livro se tornou num marco da literatura portuguesa! No que se refere ao fomento da leitura de literatura açoriana, penso que está reservado aos professores de português um papel determinante: têm de ter a coragem de pegar nestes autores, lê-los e depois trabalhar os respetivos trechos em contexto de sala de aula. Bem sei que há um rol de autores e textos a ler a cada ano letivo e o tempo não estica, nem os alunos pedem mais e mais, por isso, julgo que há, neste particular, a necessidade de intervenção da Tutela: houvesse um contributo mais esclarecido da Secretaria Regional da Educação e Assuntos Culturais, talvez fôssemos um pouco mais longe e, melhor do que tudo, um pouco mais seguros.
A todos boas leituras e o desejo quei possam apreciar este O Lugar da Trindade e Outras Narrativas.

Obrigado.

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