domingo, 13 de novembro de 2022

O Quarto do Pai

 

Maria Brandão publicou recentemente O Quarto do Pai, uma obra muito original que sustenta o seu expediente ficcional nas inter-relações de um núcleo familiar, durante um período de doença de um dos seus elementos – o pai.

Sucedendo a Corpo Triplicado (2018) e a Enlouquecer é Morrer Numa Ilha (2020), ambos editados pela Companhia das Ilhas, O Quarto do Pai é o terceiro livro da autora, sendo, claramente, aquele onde melhor desenvolve a sua narrativa, seja pelo brilhantismo com que manuseia a linha temporal, entremeando pretérito e presente narrativo com uma inusitada subtileza (aliás, com uma finura que merece todos os aplausos), seja pelo aprimorado realismo a que recorre e que coloca ao serviço em toda a narrativa. Não há amarras a inibir a diegese, sendo a progressão contínua e muito consistente, gerando um relato coeso e sobretudo bastante aprazível.

Este poderia ser um livro sobre a desumanização do Homem, sobre a indiferença e o asco com que, cada vez mais, se olha a velhice e a enfermidade, afinal, basta um olhar sério sobre a sociedade atual para percebermos que «Mais depressa se acode a um cão do que a um velho, mesmo que seja família.» Recordemos, por exemplo, o romance Os Velhos (Letras Lavadas edições, 2022), de Paula de Sousa Lima, onde a autora expõe abertamente a forma como alguns idosos são maltratados e critica atitude e comportamentos displicentes face aos mais velhos. Por oposição, Maria Brandão, em O Quarto do Pai, demonstra que há ainda uma réstia de esperança, que há ainda quem reja os seus comportamentos pelos preceitos mais humanos e que a dimensão familiar mantém hoje algum do seu valor de sempreTalvez seja mais fácil acudir quando “[…] se tem dinheiro para gastar e civilidade de berço para esbanjar”, mas não rareiam os casos em que os idosos e enfermos são atirados e abandonados em hospitais ou outros, independentemente dos números que possam assear a sua conta bancária.

Tal como em outras obras, também em O Quarto do Pai, Maria Brandão mantém uma relação especial com a ilha, o seu espaço natural, embora desta vez a nomeie e explicitamente localize a ação principal em São Miguel, numa casa de campo, inserida num ambiente rural, mas bem perto do mar. Não obstante, poder-se-ia deslocalizar a trama para qualquer parte do país ou do mundo, sem que a narrativa sofresse com tal mutaçãoEmbora o discurso surja matizado por uma sensação telúrica, é evidente que Maria Brandão se serve da ilha, mas não se atem a elamesclando-a num mundo mais amplo e complexoAs fronteiras marítimas são apenas exercícios psicológicos, e autora parece materializar a mónita lançada por Daniel de Sá aos escritores açorianos, onde apelava a que não cedessem aos lugares-comuns, quando se tratava de “cantar a terra”.

Aqui assiste-se ao relato de um homem octogenário em crescente decadência física, vítima de severosproblemas de saúde, que o limitam a tal ponto de o remeter para uma cama, deixando-o numa posição dedependência total do outro. Chega escrito em primeira pessoa gramatical, e essa feliz opção influi sobejamente no sentimento de empatia que o leitor vai desenvolvendo pela personagem, à medida que avança na leitura. As constantes viragens entre um passado sadio, de causas, robusto e vivido intensamente com os amigos e famíliacom a matilha, de arma ao ombro e em busca de caça ou ao volante de potentes automóveis, contrastam pesarosamente com um presente doentio, recluso e triste, onde apenas as memórias vão atenuando a morosidade das horas. Todavia, é neste contexto que toda a riqueza humana se manifesta, ao percebermos como toda a família se mobiliza e readapta, no sentido de minimizar o sofrimento do patriarca, um homem que, mesmo débil, se mostra capaz de agir em prol do bem comum e familiar: aceita com elevada dignidade as prescrições médicas, mesmo aquelas mais dolorosas, mantém o característico sentido de humor, reconhece o esforço que todos fazem para que se sinta bem, particularmente os três filhos e a esposa, e mesmo em condições muito adversas como é a sua, sabe como agir conservando o bem-estar e a união familiares.

Ler O Quarto do Pai é estar próximo da morte, é confrontar-se continuadamente com as acritudes da vida e com a dureza da sua finitude. Num simples exercício mental, tenhamos presente que o personagem que ali definha facilmente poderia assumir o papel de um qualquer pai, de um tio, ou até de um avô, pelo que esta leitura terá de impelir o leitor a que faça o seu próprio exame de capacidades e consciência. 

Este é um livro muito bonito, com uma imagem de capa impactante (Burialde Jennifer B. Thoreson), mas é sobretudo um livro marcante, um dos melhores lidos no ano corrente, pelo que a sua leitura se torna indispensável a todos quantos apreciem um bom exemplo de literatura de qualidade.

Maria Brandão, O Quarto do Pai, Companhia das Ilhas, 2022

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