«Sim, pode
amar-se uma casa como se ama uma pessoa»
Joel Neto, in Arquipélago
Nestes
dias de maior calmaria laboral, providenciada pelo Estio que tarda em
assumir-se, revisitei O Pastor das Casas
Mortas, novela última escrita pela mão do professor Daniel de Sá. Devo,
aliás, confessar que foi a primeira leitura em português, dado que
anteriormente apenas lera a tradução, em inglês.
A
obra, revestida de uma opulência textual, retrata de forma ímpar o abandono de
um “Portugal ultrapassado” que muitos desconhecem e que outros tantos tudo
fazem por esquecer, assim como contrapõe a desertificação desse interior
continental, com a crescente centralidade litoral. Para tal, Daniel de Sá recria
a quietude de uma pequena povoação serrana afetada pelo progressivo êxodo dos
seus habitantes, erigindo-a na segunda metade do século passado.
Recorrendo
a uma dolorosa enumeração que se
estende ao longo de todo o texto, Daniel de Sá dá conta da partida das pessoas
da Aldeia Nova da Serra. Uma após outra, é relatada a viagem de cada habitante desta
pequena povoação, erguida nos pináculos
do mundo: não só daqueles que buscaram, longe, melhores condições
económicas, como também dos outros que fizeram a travessia última de toda uma
vida. Com o tempo, restou apenas Manuel, o pastor que chamou a si a
responsabilidade de manter dignas todas as casas da aldeia, preservando a
lembrança daqueles que nela viveram; perpetuando a memória de um tempo ido, de
um tempo feliz! “Foi pela casa da Rita que Manuel Cordovão começou a tentar
manter a aldeia com ar de estar ainda viva, ou pelo menos em condições de
receber a vida, se a vida voltasse algum dia a precisar de abrigar-se nela.”.
Na
novela há também espaço aos sentimentos, concedendo-se especial enfoque à
saudade e ao amor. Este é, aliás, o sentimento dominante e que instiga toda a
trama. Ele existe não apenas entre homem e mulher mas, sobretudo, entre o
pastor e a sua própria origem. Se por um lado há uma relação afetuosa, ainda
que contemplativa, entre Manuel e Graça, por outro é notório o sentimento que Manuel
nutre pela sua aldeia de sempre! Ele que não ousou partir; ele não quis alancar
e decidiu, por amores, ficar a “guardar-lhe as memórias”. Não será a abnegação
de Manuel uma forma sã de amar?
Os
capítulos que alinham a novela - trinta e um, no total - são de uma riqueza eminente!
Pequenas histórias revestidas por uma mescla temática, ainda que todas assentem
numa ruralidade beirã que tão bem as une e distingue. Nelas são descritos objetos,
lançados cheiros e criados ambientes, vive-se uma sucessão de personagens e
espaços, numa fusão exímia de perspetivas que colocam em confronto, ainda que
ténue, a quietude da ruralidade e a azáfama da urbanidade, almeja-se o “(…) câmbio
entre o Purgatório e o Paraíso.” Se por um lado a vivência no alto da serra, pejada
pela rudeza do pastoreio, com “(…) chuva grossa, basta, anunciada por
relâmpagos e trovões (…)” é tida como aspeto telúrico fundamental na criação da
personagem protagonista, Manuel Cordovão, por outro, a ‘incerteza’ de uma vida
melhor reside numa emigração bem sucedida para a França, Suíça, Luxemburgo, ou,
pelo menos, numa partida mais ou menos definitiva para a capital da metrópole.
Como
em Ilha Grande Fechada, por exemplo,
também nesta obra Daniel de Sá consegue matizar todo um retrato nacional de
época partindo de um conjunto de textos que, encadeados, não só conferem uma
singular robustez à novela, como também adquirem uma capacidade ilustrativa
muito pouco usual. Facilmente se visualiza nestas linhas a fuga dos milhares de
portugueses, em meados do século passado, desde o medo na raia fronteiriça, até
ao alívio nos países europeus mais desenvolvidos da época. Saliente-se também a
crítica de costumes, assim como a sátira refinada à mesquinhez e à maledicência
humanas, presente por todo o texto e materializada, sobretudo, na voz do povo, tribunal temível que brada em surdina:
“Apesar (…) não haver provas de ter sido posta à prova a resistência das
muralhas do seu pudor, a fama era ruim, tão ruim como a sua beleza. E, se
alguma voz (…) se dispunha a defendê-la, logo havia uma boca a garantir que se
Laura era honesta não o seria por vontade própria mas porque os homens da serra
tinham o juízo no seu perfeito lugar.”
Do
ponto de vista do leitor tradicional, com esta novela, dedicada “Às mulheres e
aos homens que ainda acendem o lume nas últimas aldeias de Portugal”, Daniel de
Sá demonstrou, uma vez mais, a sua efetiva mundividência, a sua enorme
capacidade de absorver e assumir realidades que habitualmente não eram próximas,
de as filtrar através de uma enorme sensibilidade e humanismo, e de as
reinventar, valendo-se, para tal, de uma invejável e escorreita capacidade
discursiva. Por outro lado, e segundo a opinião de um restrito número de
estudiosos da obra de Daniel de Sá, esta terá sido uma narrativa desenrolada
geograficamente bem longe da Beira Alta. Para estes, O Pastor das Casas Mortas, terá sido, sobretudo, uma viagem à
infância e memórias do autor, uma navegação rumo à sua “Ilha-Mãe”, a ilha de Santa
Maria, à qual Daniel de Sá declarou o seu amor: “Foi meu pai São Miguel, minha
mãe, Santa Maria, e se se pode ter dupla nacionalidade, por certo poderá ter-se
dupla “insularidade””.
Por
tudo quanto fica supramencionado, e tal como afirmou Francisco Cota Fagundes, e
tantos outros, Daniel de Sá foi “um dos grandes escritores portugueses dos
últimos 50 anos e um dos maiores da literatura açoriana de sempre”.
Vale
a pena ler autores açorianos!
Telmo
R. Nunes
a
3 de julho de 2015
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