quinta-feira, 31 de julho de 2025

𝐍𝐀̃𝐎 𝐀̀ 𝐓𝐄𝐑𝐑𝐀𝐏𝐋𝐀𝐍𝐀𝐆𝐄𝐌 𝐃𝐀𝐒 𝐀𝐑𝐓𝐄𝐒 𝐄 𝐃𝐀𝐒 𝐇𝐔𝐌𝐀𝐍𝐈𝐃𝐀𝐃𝐄𝐒


O articulista António Carlos Cortez publicou no Diário de Notícias (7 de julho) um artigo intitulado "A Filosofia e as Humanidades: o ataque ao pensamento na educação portuguesa", onde se lia:

"... o que se está a fazer na educação em Portugal é, por via de uma verdadeira política de terraplanagem das artes e das humanidades a preparar a sociedade futura portuguesa para um modo acrítico de ser e de estar neste país. O que vemos é mesmo uma política de terraplanagem em relação à língua portuguesa.

Os exames digitais anunciam o óbvio: a dominação do Poder sobre as gerações desmemoriadas nascidas já no século XXI. Depois de 12 anos sem terem de ler nada de nada, nem de saber escrever seja o que for, é da mais leviana falsidade dizer-se que, pelo facto de serem exames digitais, os alunos estão a ser preparados para um mundo cada vez mais competitivo.

O que acontece é justamente o contrário: as nossas crianças e adolescentes estão embrutecidas a um ponto tal que mais ecrãs só significa mais estupidez, mais banalidade e divórcio total com a cultura, o pensamento, a liberdade."

Embora se lhe possa apontar algum exagero em determinados pontos da sua argumentação, no geral, não há como discordar.

Este artigo passou-me no feed do Facebook há umas semanas. Recentemente recordaram-mo. Procurei-o, reli-o e percebi que nos Açores há que multiplicá-lo por dois, tal tem sido a urgência e o desnorte na introdução da tecnologia no âmbito da educação. Uma pressa que “não lembra o diabo”.

Não obstante as provas de Português sejam agora um tesouro escondido de todos (vá lá entender-se porquê), consegui analisar uma realizada digitalmente que, por hipótese, era composta por trinta questões, sendo que dessas havia apenas duas (!) de produção escrita: uma de resposta muito restrita e outra de construção! Os demais exercícios quedavam-se por ligar a coluna A à coluna B, ordenação de sequências, completamento espaços, frases para classificação de V e F, escolhas múltiplas, um autêntico disparate. Estas provas já não exigem redação, nem leituras prévias, nem pensamento abstrato ou crítico. Estas provas limitam-se a pedir que os alunos retirem do texto uma ou outra palavra e as reescrevam no espaço correto numa qualquer frase lacunar!

Há um exemplo extraordinário que ilustra muito bem a qualidade destas provas/exames, e refere-se a uma aluna que, fruto de diversas circunstâncias, nunca conseguiu nível positivo nos seus elementos de avaliação, ao longo de todo o Ciclo. Ora, na referida prova, esta menina obteve uma classificação no intervalo do Bom, e quando questionada sobre como conseguira, respondeu calmante:

“- Ah, senhor! Cá sei! Fiz tudo foi à sorte!”

Sim, nestes termos e com toda a veracidade inscrita num sorriso envergonhado.

A propósito da “terraplanagem das humanidades”, no fundo a terraplanagem do pensamento, foi pena o articulista não se referir mais profundamente aos programas, essa autêntica velharia, documentação bafienta a carecer de uma revisão profunda e urgente. No 2.º Ciclo, por exemplo, os alunos passam grande parte dos semestres (no plural, porque acontece no 5.º ano e, como se já não fosse coisa pouca, repetem no 6.º) em torno de textos não literários (notícias, panfletos, roteiros, e o diabo!). A saber das suas dificuldades, do seu ritmo de aprendizagem cada vez mais lento, mais a inevitabilidade da lecionação da gramática, assim como todos os condicionalismos paralelos, que tempo lhes resta para que leiam, problematizem, pensem, escrevam e resolvam? Estamos a criar uma geração que não sabe pensar, nem escrever nem ler. Tudo o que vá além do concreto é sinónimo de insucesso! Quando se pede mais tempo letivo para tentar minorar a situação, cai o Carmo e a Trindade!

Andávamos nisto há anos, mas, surpreendentemente, conseguimos piorar as coisas, permitindo todo este assalto da tecnologia às salas de aula. Não obstante – ingénuos –, continuamos à espera de que o milagre aconteça e que o pensamento crítico nasça “de geração espontânea” na cabecinha daqueles a quem ninguém exige que leiam ou escrevam; na cabecinha daqueles a quem não se pode pedir que decorem ou que tentem perceber o porquê das coisas. Pedimos-lhes apenas que preencham umas lacunas com umas palavras que até estão na tabela ao lado, mas depois ficamos à espera de que sejam indivíduos pensantes e capazes de enriquecer a sociedade onde se inserem.

Todos conhecemos o caminho para o sucesso, e todos sabemos que não é este que estamos a trilhar. Dar um passo atrás pode, muitas vezes, significar dar um grande salto para a frente, mas há que ter coragem.  “[…] as nossas crianças e adolescentes estão embrutecidas a um ponto tal que mais ecrãs só significa mais estupidez, mais banalidade e divórcio total com a cultura, o pensamento, a liberdade."

Ainda não é tarde!

Diário dos Açores, 24 de julho, 2025

terça-feira, 1 de julho de 2025

A Matéria das Estrelas

«Quem não voltava não informava os que tinham ficado, e o perigo permanecia inteiro para os próximos que tentassem o mesmo caminho.»

(p. 42)

O último romance de Isabel Rio Novo (IRN) A Matéria das Estrelas (2025) surge nas bancas das nossas livrarias ostentando o Prémio Literário Cidade de Almada, 2024. O percurso ficcional da autora tem sido marcado por diversas edições de sucesso, distinguidas com prémios literários, o que demonstra bem a qualidade imprimida nas suas obras, fruto, sobretudo, de um notório labor investigativo, de uma capacidade inusitada de subverter a realidade (tornando-a, talvez, mais interessante aos olhos do leitor), e de um natural virtuosismo que acompanha a autora portuense e lhe confere há muito um lugar destacado entre os melhores ficcionistas portugueses contemporâneos. Recordemos, por exemplo, Rio do Esquecimento (2016) e A Febre das Almas Sensíveis (2018), ambos finalistas do Prémio LeYa, ou Rua de Paris em Dia de Chuva (2020), finalista do Prémio da União Europeia para a Literatura e do Prémio de Narrativa do PEN Club ou ainda Madalena (2022), com o Prémio Literário João Gaspar Simões.

Na obra em apreço, IRN volta a explorar a condição humana: lança um olhar atento sobre as fragilidades físicas e/ou psicológicas do Homem, procurando dar conta delas, integrando-as num meio plausível, onde a descrição cuidada de espaços e ambientes ganha enorme relevo, criando, dessa forma, no leitor uma imagem mental de uma realidade em tudo verosímil. O cuidado na escolha dos nomes das personagens; o uso de vocabulário expressivo; o detalhe descritivo da decoração e dos ambientes; o tipo de atividades realizadas, tudo foi devidamente pensado e, em conjunto, estas escolhas formam um todo credível, estruturado e que facilmente é recriado pelo leitor. O domínio sobre o pormenor físico e psicológico é claramente um dos traços que nos permite reconhecer, de imediato, o estilo da autora, já tão vincado e desigual de todos os outros.

A matéria falível do Homem, os seus defeitos físicos e/ou deformidades psicológicas constituem um paradigma que tem sido recorrentemente observado por IRN. Recordemos os malfadados pacientes dos sanatórios portugueses, em particular aqueles internados no Grande Sanatório do Caramulo, em A Febre das Almas Sensíveis, lembremos as personagens em Rio do Esquecimento, vítimas das suas próprias fraquezas psicológicas ou de amarguradas vinganças por parte de outrem, ou revivamos o suplício de Madalena, na obra homónima, e todas as tribulações a que a vida a submeteu. Invariavelmente, há sempre quem padeça.

Em A Matéria das Estrelas, não é diferente e são várias as temáticas exploradas. Para tal, a autora serve-se uma família de classe média baixa, onde grassavam as dificuldades financeiras. É-nos caracterizada uma família onde “[…] cada escudo contava […]”. Em pleno Estado Novo, o pai – funcionário público de carreira – dava explicações, procurando equilibrar o orçamento familiar e a mãe dona de casa, como todas as outras mães da época costurava, cerzindo roupa, conferindo-lhe dessa forma uma segunda e às vezes uma terceira vida. Embora não pagassem renda, a casa onde habitavam era pertença dos avós, não havia possibilidade de um arrendamento e, mais difícil ainda, de uma aquisição. Viviam, por isso, sete pessoas na Vivenda Silva (avô materno, avó paterna, os pais Julieta e Narciso e três filhos do casal, Margarida, Jacinto e Dália), sita no Lugar: assim designada a toponímia do local onde se situava a residência da família. O pão da merenda (curiosa escolha de vocábulo, muito mais em voga em meios mais rurais e recuados no tempo. Talvez hoje se optasse pelo “lanche”) era seco e os manuais escolares transitavam de irmãos mais velhos para os mais novos.  Tenhamos presente que o 25 de Abril estava por acontecer e, reiteramos, “[…] cada escudo contava […]”. No foro familiar, «Não era habitual nessa época que os homens dedicassem tempo aos filhos […]», todavia, ali os mais novos eram educados numa rigidez paterna, que assentava sobretudo no cumprimento de preceitos religiosos. Decorrente da educação recebida em casa e moldado também pelos princípios pré-revolução, é notório o perfil psicológico de Jacinto, o protagonista: acanhado, algo ensimesmado, de pensamento comezinho e rural. Elevavam-lhe o espírito os livros que lia e talvez a proximidade que mantinha com o avô materno – antigo oficial da Marinha, homem de robustez física e de grandeza de carácter.

São exploradas aqui temáticas como a viuvez precoce e o casamento por conveniência, especialmente, entre nubentes que mantêm laços de sangue entre si; é vista a questão da deficiência física e todas as limitações e dificuldades a ela inerentes; aborda-se a complexidade do abuso de crianças e jovens, assim como a sexualidade e a homossexualidade, em particular. Parece-nos importante sublinhar o tempo da ação. Viviam-se os anos do fim do Estado Novo e os primeiros anos de Democracia, tempos bafientos onde ainda se perpetravam injustiças, a misoginia e se impunham ainda alguns normativos ditatoriais. Assim, cremos ser muito ajustado destacar o modo como a autora conseguiu tratar estes últimos temas, enquadrando-os à luz dos preceitos vividos à época. Por exemplo, na obra, embora descritos abusos sexuais, nunca são utilizadas as palavras “pedófilo, pedofilia” ou mesmo a palavra “crime” associada a tal comportamento, o que representaria, certamente, um anacronismo de difícil compreensão, mas também nunca se fala em denunciar e julgar o prevaricador, já que essa prática era inexistente na época retratada. Relembremos que, embora criticável e moralmente vergonhosa, essa não era uma prática do âmbito criminal. Estes detalhes são sintomáticos do cuidado que IRN procura impor na sua narrativa, tornando-a muito mais verosímil e próxima de uma realidade, felizmente, há muito distante.

Todavia, A Matéria das Estrelas está longe de se esgotar no que fica supradito. Num tom novelesco, que muitos associam já ao da prosa camiliana, a autora ousa ficcionar parte significativa da história de Portugal, procurando percebê-la, quiçá melhorá-la ou até mesmo aproximá-la do que terá sido a realidade dos Descobrimentos Portugueses, nos finais do século XV e início do século XVI. Subvertendo ditames da narrativa histórica, recorrendo a saltos cronológicos: analepses, prolepses são disso exemplos, e num exercício de grande valia, mas de difícil execução, IRN intercala, cria paralelismos, sugere associação de factos, enuncia distanciamentos entre a vida de marinharia dos próprios Infante D. Henrique, Pedro Álvares Cabral, Vasco da Gama, mas, sobretudo, Bartolomeu Dias com a vida de Jacinto, o protagonista, um guarda-marinho do navio patrulha Flamínio, um jovem oficial nascido e criado em Lisboa, e colocado em missão no arquipélago dos Açores, servindo a Pátria, como fora desde sempre vontade de Francisco, seu avô materno e grande referência familiar.

Embora possamos recuperar nesta obra as características de um romance psicológico, não são por isso menos percetíveis as particularidades do romance policial. Ao longo de grande parte da narrativa é possível acompanhar a investigação encetada por Dr. Eduardo, médico e membro da família alargada dos Silva Fernandes, que procura deslindar todo o mistério criado em torno de um acidente que vitimou Jacinto e que o diminuiu substancialmente. É essa busca pela verdade o fio condutor que une todas as pontas desta interessantíssima narrativa, enquanto escancara ao leitor o retrato social do que eram as famílias e, no fundo, do que era Portugal nas décadas de 60 e 70 do século passado.

A par de toda a qualidade de linguagem a que IRN já nos habituou, o recurso a diferentes expedientes estilísticos, assim como o cuidado com as estratégias de produção escrita tornam a leitura deste livro no ato muito prazeroso e de regalo pessoal. Se a esse deleite lhe associarmos o mar, cenário que percorre em constância toda a obra, temos então reunidas as condições para uma leitura fresca e deleitosa, à qual ninguém se deve excluir.

Isabel Rio Novo, A Matéria das Estrelas, D. Quixote, 2025