Embora seja uma conceção quase generalizada de que o conto é um género literário em franco declínio por não ser vendável, por já não se mostrar atrativo ao gosto da maioria dos leitores, cada vez mais voltados para o romance ficcional ou histórico, com o passar dos anos e com a multiplicidade de edições de sucesso, torna-se inevitável reconhecer o vigor que este tem vindo a readquirir no mundo literário português. Arriscar-se-ia até a afirmação de que o género está viçoso e que tem vivenciado dias de alguma glória, considerando as obras de grande qualidade que continuam a chegar às livrarias nacionais. Relanceando esta temporada e circunscrevendo-nos somente ao universo literário micaelense, rememoremos o sucesso das antologias de contos Avenida Marginal e Calipso ou então a obra Nariz de Santo e Outros Momentos, da autoria de Tomaz Borba Vieira. Para além destes, e um ou outro que, inadvertidamente, teremos esquecido, torna-se inevitável destacarmos, também, a obra Casos Que Não Vêm Ao Acaso, da autoria de Mário Roberto, sendo a responsabilidade editorial da Artes e Letras.
Mário Roberto é um multifacetado (e não menos talentoso) artista micaelense, que aprecia “vagabundear pelas artes”. A sua reconhecida inquietude cultural e artística condu-lo da escrita à fotografia, da pintura à representação, do desenho ao cinema e a tantas outras áreas de interesse. No que se refere concretamente à escrita, e depois de algumas incursões pela poesia e texto dramático, depois de participações em volumes coletivos, apresenta-nos este Casos Que Não Vêm Ao Acaso, que se assume como o seu terceiro livro de contos, sucedendo a (A)casos da Alma e Luzsombra, ambos comercialmente esgotados. A apresentação da obra ocorreu recentemente na Igreja da Graça, em Ponta Delgada e ficou a cargo do próprio autor e da sua editora, Maria Helena Frias. Para além da apresentação do livro, dos contornos da sua conceção e dos objetivos que lhe serviram de base, houve também uma mostra de dois microfilmes, gravados durante o período de confinamento pandémico, baseados em dois dos contos presentes na obra. Digna de registo foi também a apresentação, ao piano, de uma obra de Tchaikovsky – Maio, por Amélia Vieira, jovem aluna do Conservatório Regional de Ponta Delgada, que tanto abrilhantou aquele momento.
Servindo-se de uma multiplicidade de registos, Mário Roberto reúne nesta obra mais de três dezenas de textos, cujas temáticas são amplamente diversificadas, alargando-se da acérrima crítica social e política à desfaçatez do próprio vizinho do lado, da crítica aos usos e costumes até à incompetência de diversos agentes profissionais. Há também espaço para a amizade e para o amor, há lugar para a sedução, para a mendicidade, para o direito dos animais, no fundo, o que vamos deslindando a cada texto são os principais focos de interesse do próprio autor. Uma amplitude temática assinalável que vem atestar, de certa forma, a irreverência do escritor. Curiosamente, há entre quase todos os contos um chão urbano que os perpassa e agrega: é, no fundo, retratada a vida citadina que tanto parece influenciar o modo de pensar e de agir do autor. Aliás, serão as suas vivências quotidianas e citadinas a centelha que o motiva para a escrita: não nos custa crer que grande parte dos textos presentes nesta obra terão como génese o movimento que, a cada dia, se experimenta na Rua Pedro Homem, local de eleição e de trabalho do autor.
Valendo-se de uma linguagem clara e uma escrita escorreita, Mário Roberto varia o tom de narração a cada texto volvido, apresentando-se ora mordaz, satírico, excessivo, ora melancólico, contemplativo ou surreal. Numa ótica muito própria, certamente turvada pelo gosto individual, parece-nos que a exploração do absurdo se encontra muito bem desenvolvida em alguns destes textos, dos quais se destacam “De Como Eça de Queirós Se Encontrou Com Andy Warhol”, ou “A Cracker”. Embora possamos encontrar as raízes deste movimento no século XIX, conquanto seja um campo explorado também por Luís Rego, outro virtuoso escritor açoriano, nesses textos, Mário Roberto transporta-nos por uma espécie de nonsense à inglesa, salpicado por um humor inteligente e mordaz, o que confere um enorme regozijo, ao mesmo tempo que empresta novidade à leitura.
Este é um conjunto de contos deveras interessante, de leitura bastante agradável, alegre, viva, e que facilmente nos arranca um sorriso. Todavia, não deixa de se assumir também como palco de uma voz irreverente, avisada e cáustica, bem à imagem de Mário Roberto, o artista da cidade!
Mário Roberto, Casos Que Não Vêm Ao Acaso, Artes e Letras editora, 2022
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