«Acossados pela necessidade e pelo amor da
aventura, emigram. Metem toda a quimera numa saca de retalhos, e lá vão eles.
Os que ficam, cavam a vida inteira. E, quando se cansam, deitam-se no caixão
com a serenidade de quem chega honradamente ao fim de um longo e trabalhoso
dia.»
Miguel Torga, Um Reino Maravilhoso,
1941
O
público-leitor exigia e Almeida Maia não desapontou. Depois do sucesso de Ilha-América
(Letras Lavadas edições, 2020), o autor dá agora a conhecer A Escrava
Açoriana, um extraordinário romance, alicerçado em factos verídicos,
minuciosamente documentados e adornado com um expediente ficcional extremamente
atrativo e, em tudo, verossímil. É recuperada a temática da emigração açoriana
– presente também no seu último trabalho de grande fôlego –, mas, desta vez, a
ocorrida no último quartel do século XIX, e que teve como destinos o Havai e,
sobretudo, o Brasil.
Antes
de tudo o resto, importa saber que A Escrava Açoriana retrata uma
história de vida difícil, de superação e de resistência; dá-nos conta de como o
arrojo no feminino (em tempos brutos e másculos) pode desafiar e vencer a força
das imposições sociais. É uma história de suplantação de barreiras, de
preconceitos e crendices, mas é também o retrato fiel de uma sociedade misógina,
entregue à miséria, à fome e ao cinzentismo, matizada assim mormente pelo
distanciamento geográfico e pela negligência absoluta de um reino em luta árdua
pela manutenção do poder estabelecido. Era a penúria e a indigência a
escorraçarem os açorianos das suas próprias ilhas.
Rosário
– a protagonista – é a representação clara da vontade e da tenacidade daqueles
que almejam ser um pouco melhor, dos que procuram mais além, dos que não se
resignam e ousam partir em busca da quimera. Rosário pertence ao grupo daqueles
corajosos que alicerçam o progresso e a mudança social, mesmo quando essa
transição não se perspetiva harmoniosa. Ela será a prova de que a evolução de
uma sociedade e de um país, em geral, é tangível, somente, através da vontade
das próprias pessoas. Não subsista, porém, a ideia de que estaremos ante uma
mulher impoluta e de alma imaculada. Toda a heroína trava os seus combates,
pelo que se pode esperar também um carácter determinado, capaz das grandes
atrocidades, em busca dos objetivos a que se propôs.
A
obra arranca numa Ponta Delgada campesina, a feder a peixe e a sofrer com a
quebra dos rendimentos provindos da transação comercial da laranja, atividade
comercial que durante anos sustentou a economia micaelense. Os morgados
ressentem-se e o povo vive na penúria. Os que ousam o sonho, veem na travessia
para o Brasil uma possibilidade de enriquecimento mais ou menos rápido, mais ou
menos certo. Entram em cena os engajadores, trafulhas que nada mais fazem do
que ludibriar pobres diabos que, depois de se empenharem no pagamento do seu
bilhete ou assinarem contratos fraudulentos, se veem reféns de uma dívida paga exclusivamente
através de trabalho escravo, prostituição ou outras atividades de índole
similar. Após as peripécias da longa travessia até à costa brasileira, chegam todas
as vicissitudes de uma emigração nas condições já descritas.
Aquando
da apresentação da obra em Ponta Delgada, sugeria a Professora Susana Goulart
Costa algo que conservei na retina da memória, e que se relaciona com uma
possível visão da temática aqui ficcionada abandonando aquele tempo e aquele
espaço. Abstraindo-nos de datas, factos e locais marcantes que sustentam a
diegese, torna-se possível percecionar toda uma visão muito mais abrangente,
com paralelos por toda a humanidade, e desde o início dos tempos: está aqui
subjacente a ideia primária da busca incessante por melhores condições de vida,
e até a adaptação do individuo às condições que o envolvem. No que se refere ao
caso específico da emigração açoriana, é certo que, mesmo naquele fluxo que
rumou “às califórnias de abundância” anos mais tarde, também se encontrarão
bastos exemplos de viagens mais ou menos falhadas e sonhos amplamente gorados.
Curiosamente, tanto neste caso agora descrito na obra em apreço, como noutros
que se busquem na diáspora açoriana residente nos EUA ou no Canadá, não
faltarão exemplos da saudade do “pio do milhafre”, assim como do aceno lançado
pela ilha e sentido lá longe, a Oeste de “ilha-mãe”. O regresso futuro que
domina a condição presente.
A
Escrava Açoriana é o sexto romance do autor e aquele que
melhor representa a sua maturidade literária, alicerçada em dez anos de vida
dedicada à escrita. Desta vez, e fruto da sua consistência e qualidade
ficcional, conta com a chancela da Cultura, uma editora de âmbito nacional que,
certamente, o ajudará a cativar um público mais vasto e diversificado.
Apercebamo-nos ou não, a insularidade e sequente distanciamento dos polos
culturais portugueses são ainda um claro entrave àqueles açorianos que procurem
transpor a barreira arquipelágica, mesmo para aqueles que pautem o seu trabalho
pelo rigor, empenho e seriedade, como é o caso do autor em causa.
Este
é um romance marcado pela força do feminino, desde logo pela confessa vontade
do autor de eleger uma mulher como protagonista, aliás, um desígnio seu, como
poderemos comprovar no texto de agradecimento com que encerra a obra. Depois,
contemos também com a voz do narrador, que chega, uma vez mais, no feminino, o que
se revela uma vantagem, já que carrega um pouco mais de sensibilidade e torna
mais reais e credíveis todas as descrições de uma sociedade marcadamente
patriarcal e machista, com todas as amorfias que tal condição acarreta. O
“impulso decisivo” para esta escolha chegou com a leitura da poesia de Marianna
Belmira de Andrade, assim como pela inspiração na vida de Alice Moderno, como
confessou o autor no dia de apresentação da obra.
Este
é um romance soberbo e bastante original, sobre uma temática amplamente ignorada
por grande parte da sociedade portuguesa. Chega redigido numa prosa elegante,
escorreita, mas também muito precisa, rica e minuciosa, plenamente capaz de conduzir
o leitor através daquelas que foram as mutações sociais, económicas e até mesmo
políticas operadas em Portugal e no Brasil, na transição do século XIX, para o
século XX.
Com
um olhar atento e um cuidado extremo com o detalhe histórico, mas também com
uma veia criativa muito ativa, não há como deixar de aplaudir a forma brilhante
como o autor traz à narrativa a peça Emigrantes, quadro icónico do
pintor micaelense, Domingos Rebêlo, o que é também sintomático da enorme
sensibilidade cultural do autor.
Esta
é uma história dura, talvez das mais marcantes de toda a emigração açoriana e
portuguesa; uma história que tinha de ser contada e, mais do que tudo, uma
história que não devia repetir-se. No entanto, e permitindo-me a partilha do
título de uma notícia veiculada em dezembro de 2021, por um dos meios de
comunicação social mais influentes em Portugal, terei de assumir que o problema
não ficou sepultado com o peso dos anos, e que ainda se encontra entre nós, não
exclusivamente no Brasil ou no Havai, mas em Portugal, em nossa casa, mesmo ao
nosso lado!
«O trabalho escravo continua em explorações agrícolas no
Alentejo (…)». *
*in:https://cnnportugal.iol.pt/videos/trabalho-escravo-continua-no-alentejo-a-lei-existe-mas-faltam-as-condenacoes/61ca20160cf21847f0a197ef , consultado a 05 de julho de 2022
Pedro Almeida Maia, A Escrava Açoriana, Cultura Editora, 2022
#livrosecoisasdessas
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