Talvez por hoje ser domingo e eu ter sido roubado ao sono pelo cacarejar inclemente dos vinte mil galos que o nosso bom vizinho da frente mantém soltos no palco em que se tornou a nossa rua, ou simplesmente por ter sido assaltado pelas saudades da minha infância, lembrei-me das manhãs de domingo dos meus cinco, seis e sete anos de idade. Sem esforço sou atirado ao passado e passo a habitar novamente a casa da rua da Bela Rosa, contribuindo sobremaneira para o frenesim que a distância de trinta e muitos anos não conseguiu silenciar. Era o dia de Missa para os meus pais, e, mais do que tudo o resto, era o dia do cinema para nós os três.
Em movimentações
que enchiam a casa, o meu pai buscava na paciência da minha mãe o último aprumo
no nó da gravata ou a vitória sobre aquele vinco que teimava conspurcar a
alvura da camisa, enquanto ela, num corrupio, se arranjava e ultimava o almoço
que a R.M. deixara adiantado de véspera, antes de abalar de fim de semana. Ao
Cláudio, ao Filipe e a mim cabia-nos deixar a mesa posta. Normalmente, com a
presença dos meus avós eram sete os pratos que preenchiam a mesa de alegria e
sorrisos. Hoje já não são tantos!
- Vamos embora,
que está na hora, meninos! – advertia o meu pai.
Era já em transe
que entrávamos naquele Renault 4L que o meu pai manteve a brilhar
durante mais de vinte anos. O que eu gostava daquele carro! Entre os três,
lutávamos para saber quem ocupava o lugar das pontas, junto aos vidros e quem
seguia sentado no lugar do meio, muito menos confortável e sem grande
visibilidade para o exterior. Talvez por ser o mais novo e, por isso,
desprovido de grande argúcia, era normalmente eu quem perdia a contenda e me via
arrumado entre os meus irmãos. A minha mãe era sempre a última a chegar. De
todas as vezes, tínhamos de a esperar e, não raras ocasiões, o meu pai via-se
obrigado a soar o cláxon do Renault, o que a deixava furiosa! Seja como
for, a espera valia sempre a pena. Assim que batia com a porta de casa e nos
captava a atenção, era vê-la chegar deslumbrante, dando corpo à finura e ao
bom-gosto, e quando se adentrava no veículo, o seu perfume inebriava-nos os
sentidos.
Da rua da Bela
Rosa até à avenida Antero de Chaves - homem importante e da família -, a viagem
não demorava mais do que cinco minutos de recomendações e alertas: «Se o filme
terminar antes da Missa, não saiam da frente da porta»; «Nada de tratantadas»;
«Juízo», eram algumas das advertências gastas a cada semana. A sala de cinema ficava no antigo quartel dos
Bombeiros Voluntários de Paços de Ferreira, e, chegados, era um gosto ver a criançada
a lançar-se dos carros (alguns ainda em movimento) em direção à bilheteira,
procurando garantir um lugar no balcão, onde a visibilidade sobre a sala era
muito melhor e a elevação lhes conferia a falaciosa ideia de superioridade
sobre os espetadores que se sentavam na plateia. Por norma, era o meu pai que
nos pagava o bilhete da sessão, por isso, vexados que ficávamos por lhe pedir
mais dinheiro, era a minha mãe que nos adocicava o palato, dando-nos vinte ou
trinta escudos para comprarmos as pipocas mais doces de que tenho memória.
Encontrados os
lugares certos, sentia-se a efervescência da amizade, ao mesmo tempo que se
travavam as guerrilhas mais atrozes que se possam imaginar: sobre as nossas
cabeças, nuvens de milho estourado voavam de um lado para outro, pelo menos até
as luzes se apagarem e reclamarem assim a atenção de todos para a exibição que,
em segundos, teria início.
Que saudades dos
domingos de manhã da minha infância, que saudade daquelas sessões de cinema que
começavam assim que o meu pai entreabria a porta do meu quarto e, com a doçura
da sua voz, anunciava que estava na hora de acordar.
fotografia: https://www.jornaldosclassicos.com
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