domingo, 9 de janeiro de 2022

CINEMA AO DOMINGO DE MANHÃ


Talvez por hoje ser domingo e eu ter sido roubado ao sono pelo cacarejar inclemente dos vinte mil galos que o nosso bom vizinho da frente mantém soltos no palco em que se tornou a nossa rua, ou simplesmente por ter sido assaltado pelas saudades da minha infância, lembrei-me das manhãs de domingo dos meus cinco, seis e sete anos de idade. Sem esforço sou atirado ao passado e passo a habitar novamente a casa da rua da Bela Rosa, contribuindo sobremaneira para o frenesim que a distância de trinta e muitos anos não conseguiu silenciar. Era o dia de Missa para os meus pais, e, mais do que tudo o resto, era o dia do cinema para nós os três.

Em movimentações que enchiam a casa, o meu pai buscava na paciência da minha mãe o último aprumo no nó da gravata ou a vitória sobre aquele vinco que teimava conspurcar a alvura da camisa, enquanto ela, num corrupio, se arranjava e ultimava o almoço que a R.M. deixara adiantado de véspera, antes de abalar de fim de semana. Ao Cláudio, ao Filipe e a mim cabia-nos deixar a mesa posta. Normalmente, com a presença dos meus avós eram sete os pratos que preenchiam a mesa de alegria e sorrisos. Hoje já não são tantos!

- Vamos embora, que está na hora, meninos! – advertia o meu pai.

Era já em transe que entrávamos naquele Renault 4L que o meu pai manteve a brilhar durante mais de vinte anos. O que eu gostava daquele carro! Entre os três, lutávamos para saber quem ocupava o lugar das pontas, junto aos vidros e quem seguia sentado no lugar do meio, muito menos confortável e sem grande visibilidade para o exterior. Talvez por ser o mais novo e, por isso, desprovido de grande argúcia, era normalmente eu quem perdia a contenda e me via arrumado entre os meus irmãos. A minha mãe era sempre a última a chegar. De todas as vezes, tínhamos de a esperar e, não raras ocasiões, o meu pai via-se obrigado a soar o cláxon do Renault, o que a deixava furiosa! Seja como for, a espera valia sempre a pena. Assim que batia com a porta de casa e nos captava a atenção, era vê-la chegar deslumbrante, dando corpo à finura e ao bom-gosto, e quando se adentrava no veículo, o seu perfume inebriava-nos os sentidos.

Da rua da Bela Rosa até à avenida Antero de Chaves - homem importante e da família -, a viagem não demorava mais do que cinco minutos de recomendações e alertas: «Se o filme terminar antes da Missa, não saiam da frente da porta»; «Nada de tratantadas»; «Juízo», eram algumas das advertências gastas a cada semana.  A sala de cinema ficava no antigo quartel dos Bombeiros Voluntários de Paços de Ferreira, e, chegados, era um gosto ver a criançada a lançar-se dos carros (alguns ainda em movimento) em direção à bilheteira, procurando garantir um lugar no balcão, onde a visibilidade sobre a sala era muito melhor e a elevação lhes conferia a falaciosa ideia de superioridade sobre os espetadores que se sentavam na plateia. Por norma, era o meu pai que nos pagava o bilhete da sessão, por isso, vexados que ficávamos por lhe pedir mais dinheiro, era a minha mãe que nos adocicava o palato, dando-nos vinte ou trinta escudos para comprarmos as pipocas mais doces de que tenho memória.

Encontrados os lugares certos, sentia-se a efervescência da amizade, ao mesmo tempo que se travavam as guerrilhas mais atrozes que se possam imaginar: sobre as nossas cabeças, nuvens de milho estourado voavam de um lado para outro, pelo menos até as luzes se apagarem e reclamarem assim a atenção de todos para a exibição que, em segundos, teria início.

Que saudades dos domingos de manhã da minha infância, que saudade daquelas sessões de cinema que começavam assim que o meu pai entreabria a porta do meu quarto e, com a doçura da sua voz, anunciava que estava na hora de acordar.  

 

fotografia: https://www.jornaldosclassicos.com



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