O
Outro Lado do Mundo -
Prémio
de Humanidades Daniel de Sá
“Aqui,
onde as águas têm o apelo da quietude,
o
meu pensamento contraria-as”
in, O Outro Lado do Mundo,
Paula de Sousa Lima
Paula de Sousa Lima
Por imposição laboral, vi-me
obrigado a faltar à chamada de apresentação das obras galardoadas com o “Prémio
de Humanidades Daniel de Sá”, referente ao ano de 2016. Tive pena! Gostaria de
lá ter estado para, condignamente, homenagear os autores premiados: no Ensaio,
Pierluigi Bragaglia, e na Criação Literária, Paula de Sousa Lima.
Relativamente ao Ensaio Novas Luzes sobre Povoamento e Topónimos das
Flores e Corvo: João da Fonseca e António Carneiro no Reino, em São Tomé e
Príncipe, em Cabo Verde e nos Açores (sécs. XV-XVI), de Bragaglia, confesso
que não li, muito embora, considerando a exigência imposta neste “Prémio de Humanidades
Daniel de Sá”, presuma tratar-se de uma obra de qualidade superior, pelo que a
sua leitura não há de atrasar.
Relativamente a O Outro Lado do Mundo, da autoria da
professora e escritora Paula de Sousa Lima, encetei a leitura logo que me foi
possível - a curiosidade a isso obrigou, e ainda bem que assim foi!
Surge-nos um texto requintado quer
na forma, quer pelo conteúdo que nos é oferecido. N´O Outro Lado do Mundo, nem tudo são rosas e contentamentos! Por se
tratar de uma narrativa localizada, essencialmente, na ilha de São Miguel, não nos
fiquemos pela elementar presunção de que leremos somente sobre agradáveis
passeios em tardes soalheiras ao longo das verdejantes cumeeiras que, do alto,
entreveem e protegem a lagoa de todos os amores. Como fica expresso no derradeiro
texto deste livro, e em jeito de epílogo, há que considerar o «desassossego» da
própria autora, o seu afastamento da «quietude» propagada pelo suave andamento
do mar que a todos nos confina. Não! Aqui reproduz-se o outro lado desse mundo
lisonjeiro, polido e mavioso; nele encontraremos o reverso do luzente buliço
citadino, «Um lado onde nada se acerta pelas certezas que foram instituídas
pela boa sociedade, aquela que só peca se o pecado puder ficar escondido numa
conchinha (…).» É-nos arremessada a
vida tal como ela é: sem recurso a eufemismos, adornos ou embelezamentos falaciosos.
Por aqui deambulam viciados em cocaína com tendências suicidas, uns sem-abrigoque
todos conhecem e para os quais nunca há tempo, mendigos acompanhados por cães
esqueléticos que também são lazarentos; convivem homens e mulheres que «bebem
vinho manhoso pela garrafa ou pelo pacote», e cujos dentes são «escuros da podridão vinda das entranhas
carcomidas pelo álcool»; vagueiam
ex-reclusos que não arranjam trabalho por terem lavado a honra em águas
manchadas pelo adultério; descreve-se friamente a sujidade de «indigentes,
tomados pelo vício», ou as rotinas atrozes de uma «puta fina» caída em desgraça e
tomada pela idade. Aqui assume-se «A condição humana desencarnada daquilo que a
torna aceitável (…)». O ‘ultraje’ é desenhado capítulo após capítulo, afinal,
somos colocados diante a «cloaca social da cidade».
A cada trecho, a autora – que domina
com mestria a arte de bem escrever – consegue que o leitor sorva cada vez mais
este outro lado da vida. Por via do relato veiculado pelo narrador – um mudo
que se assume como observador de episódios vários, e os narra com uma subtileza
rara – vemo-nos impelidos a, interiormente, mapear as diferentes dimensões da
vida que coexistem no mesmo espaço físico. A obra assume-se como um claro
convite à análise a esta dicotomia entre o lado benigno e aceitável da vida e
esse outro escuso que, por conveniência, procuramos sempre ocultar nos
recônditos do esquecimento.
Apesar do distanciamento que a
ficção impõe, a autora localiza todos estes episódios na cidade de Ponta
Delgada. Neste particular, poderão os leitores locais afigurar-se como
favorecidos por lhes ser mais acessível situar in loco a ação narrada, dado o recurso à toponímia atual da maior
cidade do arquipélago. Como o fizera o ‘poeta da cidade’, Emanuel Jorge
Botelho, na obra 30 Crónicas, também
Paula de Sousa Lima manifestou neste O
Outro Lado do Mundo um verdadeiro ato de amor pela urbe, «Conheço-lhe o
espaço: cada rua, cada travessa, cada passeio, cada esquina, cada recanto, cada
jardim, cada contorno de sombra que se enrosca no corpo das casas».
O
Outro Lado do Mundo é
também e ainda um notável hino ao Humanismo. Aliás, esta será, certamente, a
característica mais arreigada a toda a obra. Encontramo-lo bem patente na forma
como a autora - pelos olhos do narrador - vê o meio que a envolve, condiciona
e, em certa medida, protege. É colocado em evidência o modo como a «boa
sociedade» olha para os mais desfavorecidos, cujos trajetos de vida divergiram
dos tidos como exemplares. Para aqueles, dar uma esmola não é mais do que «alimentar
vícios» de quem «precisa é de trabalho». Em pleno Convento da Esperança, senhoras
e senhores distintos insistem em reclamar para si a misericórdia divina,
clamando pelos favores do Senhor Santo Cristo dos Milagres, mas, uma vez no
exterior, são incapazes de perceber porque «não limpam o Campo» daqueles que a
sociedade sacode «como moscas inoportunas». Por oposição, onde a maioria
vislumbra apenas a escória social, o narrador (que é da mesma forma um vizinho
extremoso, um prudente sobrinho e um verdadeiro amigo do seu amigo) vê «gente»,
gente que age apenas como gente. «Não é bonito, não é edificante. É humano». Renega-se
a altivez e o pretensiosismo e, em contraste, enaltece-se a condição humana do Ser.
Os méritos desta obra recaem,
ainda, no que ao aspeto formal concerne e, reservas existissem sobre o
virtuosismo da autora finalista do Prémio
Leya 2016, pode afirmar-se que estamos perante uma obra que será, no
mínimo, uma referência da literatura contemporânea produzida nos Açores. O
leitor é constantemente surpreendido: o expectável não acontecerá. Recordo com
agrado as situações dialogais, na sua forma pouco convencional, assim como o
recurso a mecanismos de narração de difícil manejo, mas que, em larga medida, dotam
o texto de um ritmo energético, que tão bem lhe assenta.
A terminar, uma palavra de apreço
e alento a todos os promotores e intervenientes neste prémio. Depois da obra Mau Tempo e Má Sorte - Contos Pouco
Exemplares, em 2014, da autoria da professora Leonor Sampaio Silva, surge-nos
este O Outro Lado do Mundo, como seu
digníssimo sucessor, elevando a fasquia da qualidade a níveis que, em larga
medida, dignificam o patrono que empresta nome a este Prémio Literário!
A todos, mas especialmente aos
galardoados, muitos parabéns!
Telmo
R. Nunes
a 23
de novembro de 2017
1 comentário:
Obrigado, Telmo.
Uma belíssima e muito bem construída "chamada de atenção" para os mais distraídos, como eu.
Como sempre, a tua sensibilidade transparece nas entrelinhas!...
Parabéns!
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