- Se eu fosse Deus, não teria feito o Mundo assim.
(in E
Deus Teve Medo de Ser Homem)
Escrita pelo
professor Daniel de Sá, esta novela apresenta-se como um documento singular, factualmente
rico, e de tributo a um povo perseguido, humilhado e, repetidamente, dizimado! A
história do povo judeu é-nos aqui descrita em dois planos temporais distintos.
São relatados dois momentos históricos de persecução, de aniquilamento, de
subjugação.
Resistindo a
um arranjo cronológico fácil, Daniel de Sá intercala o seu relato,dando-nos
conta quer do extermínio judeu levado a efeito pelos alemães Nazis de Hitler,
em pleno Holocausto, ou «[…]“Shoa”, a
palavra hebraica que os Judeus, mais propriamente do que nós, usam para
designar o “Holocausto”, e que significa “Catástrofe”.», quer do
aniquilamento exercido pelos romanos, quase dois mil anos antes de II Grande
Guerra Mundial.
O autor centra
a ação da novela nas atrocidades cometidas no Campo de Concentração de
Auschwitz, e brinda-nos com um relato emocionado, vivo, comprometido com o
descrito, o que não deixa de ser revelador da sua enorme sensibilidade e
humanismo. Como referiu Joaquim Matos numa recensão à obra «Ele fala-nos das coisas como se as tivesse
vivido, como se as tivesse sentido em situações concretas, com as feridas delas
decorrentes ainda abertas, no corpo e na alma.».
Por outro
lado, Daniel de Sá consegue, de forma singular, intercalar factos de enorme
relevância histórica para a Humanidade, com a ficção que vai, paulatinamente,
imprimindo no seu discurso: «[…] o que
acontece na novela de Daniel de Sá é o equilíbrio perfeito entre o historiador
e os factos históricos e entre o ficcionista e a ficção.*».
Pela voz de
Aharon Csánady Halévy, ou melhor dito, pelas memórias do padecimento deste sobrevivente
ao Holocausto, Daniel de Sá parte para uma profunda análise sobre a
condição humana, sobre os limites de sofrimento que poderá um homem experienciar
no limite da sua vida, e sobre a implicação dos mesmos na sua existência posterior:
«A minha debilidade era tão grande que
julgava que morria a qualquer momento.».
O autor conduz-nos,
então, à reflexão sobre este padecimento através de um conjunto de memórias
escritas pelo próprio Aharon. Paradoxalmente, a personagem tê-las-á escrito
para delas se esquecer e, de alguma forma, se libertar de um passado medonho,
aceitando-o, irremediavelmente: «Um homem
não pode nunca esquecer voluntariamente. No entanto, eu quis fazê-lo, como quem
apaga umas páginas mal escritas, mas quanto mais tenta o esquecimento por
refúgio mais recorda o que não queria recordar.».
É notória na
personagem uma certa resiliência, uma aceitação de um passado que foi hediondo, e
uma consciência de que o mesmo lhe moldará sobremodo a existência, nos anos subsequentes
ao cativeiro. Percebe-se, ainda, que, só a aceitação imperativa desse passado,
permitirá uma vivência digna, ditosa e, de uma forma muito otimista, até,
feliz! «E, depois disto, talvez eu
consiga tocar violino novamente.».
Ademais, em E Deus Teve Medo de Ser Homem, Daniel de
Sá eterniza um extraordinário paralelo entre a humanidade separada por quase
dois milénios.
Valendo-se de
uma personagem mística – que afirma ser o próprio Filho de Deus – , o autor
produz um relato pautado ora pelo rigor, ora pela ficção, sobre o período de
pregação e morte do próprio Jesus Cristo. Se, nessa altura, os romanos foram
capazes das maiores crueldades, passados quase dois mil anos, os alemães Nazis
não se mostraram mais humanos do que os primeiros; se aqueles não revelaram
grande pudor em maltratar, perseguir e, até, crucificar judeus, sem quaisquer
evidências que o justificassem, estes mostraram-se completamente impiedosos,
frios e inumanos ao assassinarem mais de um milhão de judeus, só em Auschwitz. Uns mataram
pela cruz, outros valeram-se dos crematórios!
E Deus Teve Medo de Ser Homem é uma
novela absolutamente avassaladora, um retrato cru de dois períodos particularmente
negros desta humanidade em evolução. Decorrente da sua leitura, é
percetível o grotesco retrocesso civilizacional a que uma
mente brilhante, mas completamente perturbada, nos sujeitou, em meados do
século passado.
Contudo, e à custa
do padecimento brutal de todo um povo, desses já recuperámos, mas, até quando?
A terminar, deixo-vos
transcrita a INVOCAÇÃO que o próprio autor nos oferece:
«Nenhum livro fica completo sem o leitor. Dos
que já escrevi, este será, sem dúvida, o que mais há-de depender da maneira
como for lido para que tenha valido a pena escrevê-lo.»
*[1] Antunes,
Susana L. M. “E Deus Teve Medo de Ser Homem: Memória, Dor e Música em Daniel de
Sá.” Rememorando Daniel de Sá: Escritor
dos Açores e do Mundo Ver Açor, Lda. Ponta Delgada 2016
Telmo
R. Nunes
a 9
de novembro de 2016
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