quinta-feira, 3 de março de 2022

Um Deus À Beira Da Loucura

 


«Para mim, o que nos acontecia era a confirmação do enorme fracasso do Homem como ser criado para a vida»

In Um Deus À Beira Da Loucura

 

Por altura do aniversário natalício de Daniel de Sá (2 de março de 1944) calhei retirar à estante uma das suas obras. O acaso trouxe-me Um Deus À Beira Da Loucura, novela publicada em 1990, e vencedora do Prémio “Nunes da Rosa”, daquele mesmo ano. Para o intento que me movera, aquele pequeno volume era perfeito. Subtraído o trecho pretendido, fotografei-lhe a capa – aliás, lindíssima, da autoria de Álamo de Oliveira –, e, ao devolvê-la, cuidei que seria da mais elementar justeza conceder-lhe um pouco mais de tempo e atenção, pelo que encetei uma nova leitura.

Embora não muito extenso, falamos de um texto robusto, gerado a partir de situações factuais e de reconhecido valor histórico, como é o caso do Holocausto ou “Shoa”, palavra hebraica usada pelos Judeus para designar aquele período, combinadas com outras de génese ficcional, mas igualmente significativas e que, em conjunto e num equilíbrio notável entre factos e ficção, sustêm uma narrativa bem representativa dos ideais de humanismo e religiosidade que todos reconhecemos em Daniel de Sá e na sua obra.

Lera-a havia já alguns anos, mas lembrava-me, ainda, com alguma clareza das categorias que a suportam: a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo, a inominável inópia distintiva dos Campos de Concentração e, depois, a vivência pungente de dois condenados ao padecimento nazi. Imbuído pela aspereza do tempo retratado, ao que se juntou a recordação das anormalidades ali perpetradas, confesso que o reencontro com aquelas personagens me comoveu particularmente. Talvez a colossal ignomínia que, por estes dias, volta a assolar o Leste do velho continente europeu não seja alheia a esse sentimento. Por outro lado, convenhamos que é sempre muito custoso afastar da retina da memória a aflição daqueles seis milhões de pessoas que tombaram ante a loucura desmedida de uns desprezíveis nacionalistas.

            «A primeira vez que o vi claramente perturbado foi num dia em que nos obrigaram a trabalhar nos fornos crematórios. Era uma experiência a que não sei como se podia resistir. A visão daqueles corpos torturados, em que parecia que a morte não cumprira mais do que uma acção de misericórdia, apavorava. Era como se tivessem morrido muito tempo antes de pararem de respirar».

Não fiquemos, todavia, com a impressão de que o texto se esvazia com descrições aterradoras do que terá sido o tempo naqueles campos de morte. Embora também as haja, e de grande qualidade literária, o leitor é exortado a caminhar também por um percurso paralelo ao da narrativa da maldade e do ódio. Para tal, e como acontece um pouco por toda a sua obra, ora de forma mais velada, ora de forma mais explícita, Daniel de Sá socorre-se de referências bíblicas, dos ideais de Fé em Cristo e da confiança em Deus, no fundo, serve-se da sua própria religiosidade, enfatizando relações de proximidade e/ou afastamento entre Deus e o homem, para, dessa forma, procurar explicações plausíveis que justifiquem tamanha barbárie ali praticada.

«Se Deus serve para permitir que isto aconteça, mais valia não existir Deus nem homens.»

Valendo-se de um discurso expressamente filosófico, e numa análise à condição humana e às suas crenças mais elementares, Daniel de Sá idealiza um personagem místico, que afirma ser o próprio filho de Deus, Cristo feito homem e regressado para junto destes (o que se viria a reproduzir, mais tarde, na novela E Deus Teve Medo De Ser Homem), para, através da sua argumentação e atitude, explorar comportamentos humanos, ali pautados, fundamentalmente, pela fraqueza e pela descrença:

«(…) acusava ainda Deus, como sempre, da Sua culpa de não existir, e revoltava-me inutilmente contra os homens, que nos torturavam na mais absurda matança programada que o seu Deus inexistente consentira.»

Tenhamos presente ainda as interrogações lançadas sobre a origem dos seres, assim como a cuidada exploração da causalidade filosófica, numa tentativa clara de justificar o incompreensível:

«É fácil imaginar quantos pormenores tiveram de coincidir para que sobreviesse tal tragédia ao meu amigo. Bastava ter falhado um (…)»

Hoje, todos reconhecemos e nos indignamos com as constantes polémicas e, sobretudo, com os deploráveis oportunismos literários que envolvem a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, em particular. Ao contrário de tantos, Daniel de Sá consegue, de uma forma muito realista e precisa, retratar aquele período sem conceder espaço a cambiantes que derivem em deformações históricas ou suavizações convenientes. O seu discurso é perfeitamente capaz de conduzir o leitor na viagem ao interior daqueles espaços funestos por demais, sem permitir, todavia, brechas por onde se adentrem equívocos ou medrem ambiguidades e imprecisões. Este é um tema onde a parcialidade não pode florescer. Como nos alertou Simone Veil, ela própria prisioneira em Birkenau, «(…) não temos o direito de reescrever a História». Nesta novela, Daniel de Sá mostra-nos apenas como a tentou compreender.

 

 

Daniel de Sá, Um Deus À Beira Da Loucura, Secretaria Regional de Educação e Cultura, 1990

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