«Para mim, o que nos acontecia era a confirmação do enorme
fracasso do Homem como ser criado para a vida»
In Um Deus À Beira Da Loucura
Por
altura do aniversário natalício de Daniel de Sá (2 de março de 1944) calhei
retirar à estante uma das suas obras. O acaso trouxe-me Um Deus À Beira Da
Loucura, novela publicada em 1990, e vencedora do Prémio “Nunes da Rosa”,
daquele mesmo ano. Para o intento que me movera, aquele pequeno volume era
perfeito. Subtraído o trecho pretendido, fotografei-lhe a capa – aliás,
lindíssima, da autoria de Álamo de Oliveira –, e, ao devolvê-la, cuidei que
seria da mais elementar justeza conceder-lhe um pouco mais de tempo e atenção,
pelo que encetei uma nova leitura.
Embora
não muito extenso, falamos de um texto robusto, gerado a partir de situações
factuais e de reconhecido valor histórico, como é o caso do Holocausto ou
“Shoa”, palavra hebraica usada pelos Judeus para designar aquele período,
combinadas com outras de génese ficcional, mas igualmente significativas e que,
em conjunto e num equilíbrio notável entre factos e ficção, sustêm uma
narrativa bem representativa dos ideais de humanismo e religiosidade que todos
reconhecemos em Daniel de Sá e na sua obra.
Lera-a
havia já alguns anos, mas lembrava-me, ainda, com alguma clareza das categorias
que a suportam: a Segunda Guerra Mundial como pano de fundo, a inominável
inópia distintiva dos Campos de Concentração e, depois, a vivência pungente de
dois condenados ao padecimento nazi. Imbuído pela aspereza do tempo retratado,
ao que se juntou a recordação das anormalidades ali perpetradas, confesso que o
reencontro com aquelas personagens me comoveu particularmente. Talvez a
colossal ignomínia que, por estes dias, volta a assolar o Leste do velho
continente europeu não seja alheia a esse sentimento. Por outro lado,
convenhamos que é sempre muito custoso afastar da retina da memória a aflição
daqueles seis milhões de pessoas que tombaram ante a loucura desmedida de uns
desprezíveis nacionalistas.
«A
primeira vez que o vi claramente perturbado foi num dia em que nos obrigaram a
trabalhar nos fornos crematórios. Era uma experiência a que não sei como se
podia resistir. A visão daqueles corpos torturados, em que parecia que a morte
não cumprira mais do que uma acção de misericórdia, apavorava. Era como se
tivessem morrido muito tempo antes de pararem de respirar».
Não
fiquemos, todavia, com a impressão de que o texto se esvazia com descrições
aterradoras do que terá sido o tempo naqueles campos de morte. Embora também as
haja, e de grande qualidade literária, o leitor é exortado a caminhar também
por um percurso paralelo ao da narrativa da maldade e do ódio. Para tal, e como
acontece um pouco por toda a sua obra, ora de forma mais velada, ora de forma
mais explícita, Daniel de Sá socorre-se de referências bíblicas, dos
ideais de Fé em Cristo e da confiança em Deus, no fundo, serve-se da sua
própria religiosidade, enfatizando relações de proximidade e/ou afastamento
entre Deus e o homem, para, dessa forma, procurar explicações plausíveis que
justifiquem tamanha barbárie ali praticada.
«Se
Deus serve para permitir que isto aconteça, mais valia não existir Deus nem
homens.»
Valendo-se
de um discurso expressamente filosófico, e numa análise à condição humana e às
suas crenças mais elementares, Daniel de Sá idealiza um personagem místico, que
afirma ser o próprio filho de Deus, Cristo feito homem e regressado para junto destes
(o que se viria a reproduzir, mais tarde, na novela E Deus Teve Medo De Ser
Homem), para, através da sua argumentação e atitude, explorar comportamentos
humanos, ali pautados, fundamentalmente, pela fraqueza e pela descrença:
«(…)
acusava ainda Deus, como sempre, da Sua culpa de não existir, e revoltava-me
inutilmente contra os homens, que nos torturavam na mais absurda matança
programada que o seu Deus inexistente consentira.»
Tenhamos
presente ainda as interrogações lançadas sobre a origem dos seres, assim como a
cuidada exploração da causalidade filosófica, numa tentativa clara de
justificar o incompreensível:
«É
fácil imaginar quantos pormenores tiveram de coincidir para que sobreviesse tal
tragédia ao meu amigo. Bastava ter falhado um (…)»
Hoje, todos reconhecemos e nos indignamos com
as constantes polémicas e, sobretudo, com os deploráveis oportunismos
literários que envolvem a Segunda Guerra Mundial e o Holocausto, em particular.
Ao contrário de tantos, Daniel de Sá consegue, de uma forma muito realista e
precisa, retratar aquele período sem conceder espaço a cambiantes que
derivem em deformações históricas ou suavizações convenientes. O seu discurso é
perfeitamente capaz de conduzir o leitor na viagem ao interior daqueles espaços
funestos por demais, sem permitir, todavia, brechas por onde se adentrem
equívocos ou medrem ambiguidades e imprecisões. Este é um tema onde a
parcialidade não pode florescer. Como nos alertou Simone Veil, ela própria
prisioneira em Birkenau, «(…) não temos o direito de reescrever a História».
Nesta novela, Daniel de Sá mostra-nos apenas como a tentou compreender.
Daniel de Sá, Um Deus À Beira Da Loucura, Secretaria
Regional de Educação e Cultura, 1990
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