domingo, 20 de dezembro de 2020

«Causas da Decadência dos Povos Peninsulares Nos Três Últimos Séculos», por Antero de Quental

 


(Por ocasião do recente falecimento de Eduardo Lourenço, prefaciador desta obra singular de Antero de Quental, recuperei o texto com que o açoriano abriu as Conferências do Casino, decorria, então, o ano de 1871).

Um grande filósofo, pensador e professor incentivou-me certa vez a leitura do texto «Causas da Decadência dos Povos Peninsulares Nos Três Últimos Séculos», redigido por Antero de Quental: «É fundamental! Devemos primeiro perceber o passado do nosso país, para melhor perspetivarmos o seu futuro» -, aconselhou.

Adquiri a obra, encetei a leitura e percebi por que motivo me fora recomendada, por que razão sobrevivera este texto não apenas ao constante passar do tempo, como também ao encerramento das próprias Conferências de onde brotara. Embora tido agora como atemporal, foi redigido a propósito do dia 27 de maio de 1871, por ocasião da abertura das “Conferências do Casino”, as tais dos grandes vultos do “Grupo do Cenáculo”, os da “Geração de 70”, as mesmas proibidas por Portaria do Ministério do Reino, em junho desse mesmo ano!

O texto – maravilhoso – agradou-me sobremodo, não apenas pelo retrato da sociedade civil de então, (com a qual ainda se podem estabelecer paralelos formidáveis) mas também, e essencialmente, porque me inculcou no espírito umas tantas questões às quais não consegui dar resposta imediata e me consumiram a quietude durante largo período.

Segundo Antero, as causas que estariam na base da decadência dos povos peninsulares passariam pelos Descobrimentos de novos mundos, pelo Absolutismo régio e pela transformação do Catolicismo, por via do Concílio de Trento.

As duas primeiras razões apontadas, embora inegavelmente complexas, são de clara perceção; a explanação sugerida é elucidativa e, corroborando-a ou não, ali ficam demonstrados possíveis fundamentos para o atraso no desenvolvimento da Península, comparativamente com os países europeus. A terceira e última razão aludida foi a que me suscitou grande desassossego e me conduziu a uma jornada ao âmago das minhas certezas.

Atente-se:

Ora, a liberdade moral, apelando para o exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do Catolicismo do concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime contra Deus…”

ou ainda:

Na sessão 14ª de Trento é a consciência cristã definitivamente encerrada. Sem confissão não há remissão de pecados! A alma é incapaz de comunicar com Deus, senão por intermédio do padre!”

É um texto farto em frases duras, pelo menos, para quem cresceu e foi educado no seio de uma família que se reja sob os preceitos do Catolicismo.

Então, Cristianismo ou Catolicismo? Haverá ou não lugar a ‘um Cristianismo’ fora dos ditames do Catolicismo? Este amordaça e amedronta os seguidores, os crentes? Inibe-os ou não de viver em pleno o Cristianismo; inibe-lhes ou não a vivência em Cristo? Não será já o Catolicismo uma adulteração humana daquilo que deveria ter sido a fé Cristã, pura e simples, individual e, ao mesmo tempo, coletiva?

A noção genérica em que creio passa pelo Cristianismo como a génese da religião, a base de sustentação, o pilar que conduz à crença em Deus – Pai, Jesus Cristo – Filho, acompanhados pela força de um Espírito Santo. Tenho como certa a base em Jesus Cristo e que se trata, sobretudo, de sentimento. No que ao Catolicismo concerne, instigaram-me a crença de que “caminhava lado a lado” com o Cristianismo, numa demanda que dura há já mais de dois milénios. Transmitiram-nos que uma completava a outra, mas, ponderando, necessitará o Cristianismo de qualquer complemento?

Hoje percebo mais facilmente aqueles que encaram o Catolicismo com algum distanciamento, que o veem como uma forma ou instituição, e que o reduzem a uma norma que modela a forma de viver e de sentir o Cristianismo. Percebo que o encarem como uma mera disciplina a seguir, que será (ou não) dispensável. Percebo que questionem se serão necessários estes preceitos concebidos pelos homens que nos antecederam para que se consiga viver em plenitude o Cristianismo…

Com efeito, ao olhar para todos os cerimoniais que se nos apresentam quotidianamente, o que se vê para além de encenações quase teatralizadas, e, em alguns casos, até idolatrias? Por que razão há cerimoniais e datas rigidamente estabelecidas para que se possa cumprir plenamente a vivência em Cristo? – bem sei que a qualquer altura se pode fazer a remissão dos pecados, mas naquelas datas específicas deve-se fazê-lo, sob pena de se cometer um “pecado maior”. E por que razão é necessário um intermediário para fazê-lo? Não será este um caminho de inibição? E recordemos, também, as atrocidades cometidas pelo Santo Ofício ao serviço destes preceitos católicos…

Que lugar deixa o Catolicismo às liberdades individuais? Tudo é regido por preceitos estritamente definidos: aquele que se rebele será herege, o que hoje não carregará o peso de outros tempos, é certo, mas, ainda assim, será apontado como diferente, pelo menos!

Não terá ido o Catolicismo um pouco longe de mais, adulterando as aspirações despretensiosas, simples, mas, ao mesmo tempo, plenas e sacras do Cristianismo? Esta igreja assim estruturada, que lugar deixa ao sentimento simples, espontâneo e sincero?

Naturalmente, o disserto anteriano é substancialmente mais vasto, rico e prodigioso do que aquilo que alguma vez poderia aqui deixar apontado. Na edição da obra que possuo, prefaciada pelo recentemente falecido professor Eduardo Lourenço, usam-se expressões como «memorável intervenção» ou «referência mítica» e, aludindo a ideia inicial deste escrito, creio que cumpre religiosamente a sua função maior: impelir questões, exigindo respostas!

Não será este o intento final de todo e qualquer texto de referência?

Antero de Quental, Causas da Decadência dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos, Edições Tinta da China, 2008


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