(Por ocasião do recente falecimento de Eduardo Lourenço, prefaciador desta obra singular de Antero de Quental, recuperei o texto com que o açoriano abriu as Conferências do Casino, decorria, então, o ano de 1871).
Um
grande filósofo, pensador e professor incentivou-me certa vez a leitura do
texto «Causas da Decadência dos Povos
Peninsulares Nos Três Últimos Séculos», redigido por Antero de Quental: «É fundamental! Devemos primeiro perceber o
passado do nosso país, para melhor perspetivarmos o seu futuro» -, aconselhou.
Adquiri
a obra, encetei a leitura e percebi por que motivo me fora recomendada, por que
razão sobrevivera este texto não apenas ao constante passar do tempo, como
também ao encerramento das próprias Conferências de onde brotara. Embora tido
agora como atemporal, foi redigido a propósito do dia 27 de maio de 1871, por
ocasião da abertura das “Conferências do Casino”, as tais dos grandes vultos do
“Grupo do Cenáculo”, os da “Geração de 70”, as mesmas proibidas por Portaria do
Ministério do Reino, em junho desse mesmo ano!
O
texto – maravilhoso – agradou-me sobremodo, não apenas pelo retrato da
sociedade civil de então, (com a qual ainda se podem estabelecer paralelos
formidáveis) mas também, e essencialmente, porque me inculcou no espírito umas
tantas questões às quais não consegui dar resposta imediata e me consumiram a quietude
durante largo período.
Segundo
Antero, as causas que estariam na base da decadência dos povos peninsulares
passariam pelos Descobrimentos de novos mundos, pelo Absolutismo régio e pela
transformação do Catolicismo, por via do Concílio de Trento.
As
duas primeiras razões apontadas, embora inegavelmente complexas, são de clara perceção;
a explanação sugerida é elucidativa e, corroborando-a ou não, ali ficam demonstrados
possíveis fundamentos para o atraso no desenvolvimento da Península,
comparativamente com os países europeus. A terceira e última razão aludida foi
a que me suscitou grande desassossego e me conduziu a uma jornada ao âmago das
minhas certezas.
Atente-se:
“Ora,
a liberdade moral, apelando para o
exame e a consciência individual, é rigorosamente o oposto do Catolicismo do
concílio de Trento, para quem a razão humana e o pensamento livre são um crime
contra Deus…”
ou ainda:
“Na
sessão 14ª de Trento é a consciência cristã definitivamente encerrada. Sem
confissão não há remissão de pecados! A alma é incapaz de comunicar com Deus,
senão por intermédio do padre!”
É
um texto farto em frases duras, pelo menos, para quem cresceu e foi educado no
seio de uma família que se reja sob os preceitos do Catolicismo.
Então,
Cristianismo ou Catolicismo? Haverá ou não lugar a ‘um Cristianismo’ fora dos ditames do Catolicismo? Este amordaça e amedronta
os seguidores, os crentes? Inibe-os ou não de viver em pleno o Cristianismo;
inibe-lhes ou não a vivência em Cristo?
Não será já o Catolicismo uma adulteração humana daquilo que deveria ter sido a
fé Cristã, pura e simples, individual e, ao mesmo tempo, coletiva?
A
noção genérica em que creio passa pelo Cristianismo como a génese da religião,
a base de sustentação, o pilar que conduz à crença em Deus – Pai, Jesus Cristo –
Filho, acompanhados pela força de um Espírito Santo. Tenho como certa a base em
Jesus Cristo e que se trata, sobretudo, de sentimento. No que ao Catolicismo
concerne, instigaram-me a crença de que “caminhava
lado a lado” com o Cristianismo, numa demanda que dura há já mais de dois
milénios. Transmitiram-nos que uma completava a outra, mas, ponderando, necessitará
o Cristianismo de qualquer complemento?
Hoje
percebo mais facilmente aqueles que encaram o Catolicismo com algum
distanciamento, que o veem como uma forma ou instituição, e que o reduzem a uma
norma que modela a forma de viver e de sentir o Cristianismo. Percebo que o
encarem como uma mera disciplina a seguir, que será (ou não) dispensável. Percebo
que questionem se serão necessários estes preceitos concebidos pelos homens que
nos antecederam para que se consiga viver em plenitude o Cristianismo…
Com
efeito, ao olhar para todos os cerimoniais que se nos apresentam
quotidianamente, o que se vê para além de encenações quase teatralizadas, e, em
alguns casos, até idolatrias? Por que razão há cerimoniais e datas rigidamente
estabelecidas para que se possa cumprir plenamente a vivência em Cristo? – bem
sei que a qualquer altura se pode fazer a remissão dos pecados, mas naquelas
datas específicas deve-se fazê-lo, sob pena de se cometer um “pecado maior”. E
por que razão é necessário um intermediário para fazê-lo? Não será este um
caminho de inibição? E recordemos,
também, as atrocidades cometidas pelo Santo Ofício ao serviço destes preceitos
católicos…
Que
lugar deixa o Catolicismo às liberdades individuais? Tudo é regido por
preceitos estritamente definidos: aquele que se rebele será herege, o que hoje
não carregará o peso de outros tempos, é certo, mas, ainda assim, será apontado
como diferente, pelo menos!
Não
terá ido o Catolicismo um pouco longe de mais, adulterando as aspirações
despretensiosas, simples, mas, ao mesmo tempo, plenas e sacras do Cristianismo?
Esta igreja assim estruturada, que lugar deixa ao sentimento simples, espontâneo
e sincero?
Naturalmente, o disserto anteriano é
substancialmente mais vasto, rico e prodigioso do que aquilo que alguma vez
poderia aqui deixar apontado. Na edição da obra que possuo, prefaciada pelo recentemente
falecido professor Eduardo Lourenço, usam-se expressões como «memorável
intervenção» ou «referência mítica» e, aludindo a ideia inicial deste escrito,
creio que cumpre religiosamente a sua
função maior: impelir questões, exigindo respostas!
Não
será este o intento final de todo e qualquer texto de referência?
Antero de Quental, Causas da Decadência dos Povos
Peninsulares nos Últimos Três Séculos, Edições Tinta da China, 2008
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