Este
ano ficará enodoado por razões que, de forma sobeja, todos reconhecemos, mas
ficará também inscrito na história da Literatura portuguesa como um período
fértil em publicações literárias, algumas, creio, em vias de ascenderem ao
“Olimpo da Literatura”. Fruto de uma disponibilidade temporária conferida pelo
confinamento a que todos nos vimos sujeitos, têm sido trazidas a público
grandes histórias, narradas com uma pujança inusitada, e que se perfilam agora
para, de forma robusta, engrandecer o corpus literário do país. Ainda bem! Ganhamos
todos!
Dentre
estas, torna-se inevitável referir Ilha-América, o mais recente romance de Almeida
Maia, recentemente publicado pela Letras Lavadas e apresentado por dois
incontornáveis vultos da literatura, especialmente daquela produzida a partir dos
Açores. Autor de obras premiadas e de reconhecida qualidade como Bom Tempo No
Canal: A Conspiração da Energia, Capítulo 41: A Redescoberta da Atlântida ou A Viagem de Juno, Pedro Almeida Maia presenteia agora os seus leitores com um
empolgante romance urdido com base numa história verídica, robusta e de
contornos surpreendentes. Não me aturdiria se esta ardente viagem de “Mané”,
personagem central da narrativa, elevasse, uma vez mais, o autor até ao Plano
Regional de Leitura. Com Ilha-América, Almeida Maia reclama, em definitivo, a
sua posição junto dos melhores escritores portugueses contemporâneos.
Resgatando
as temáticas da emigração açoriana e da busca pelo sonho americano, situando-as
sensivelmente em meados do século passado, Almeida Maia dá-nos conta da arriscada
história de um moço imberbe e sonhador que, por ambicionar fugir a “(…) um
lugar ermo onde até às vezes a água falta (…)”, em direção às “califórnias de
abundância” enceta “(…) talvez o episódio mais caricato da história da
emigração.”, não olvidando neste rol a inusitada viagem descrita em O Barco e
o Sonho, da autoria de Manuel Ferreira. Aliás, torna-se impossível não
estabelecer paralelismos formidáveis entre estas duas narrativas já que, tanto
numa como em outra, os protagonistas arriscam a vida colocando à prova a
perigosidade da travessia transatlântica: uns enfrentando a fúria do mar, embarcados
numa “casca de noz” de construção doméstica, outro desafiando a escassez de ar
respirável a 24000 pés, oculto no vão da roda de um trem de aterragem dianteiro
de um Lockheed Super Constellation. Com efeito, as possíveis similitudes
e comparações que se possam efetuar entre obras, apenas virão confirmar a
grandeza deste Ilha-América, ou “Ilhamérica”, como mais gostou o crítico
literário e professor Vamberto Freitas que, a par do professor Onésimo Teotónio Almeida, foram
os oradores convidados para a apresentação pública desta obra.
Cedo
na leitura se percebe o cuidado e o rigor histórico e científico com que o
autor quis alicerçar o seu novo romance, buscando, com minúcia, descrições
rigorosas de cada detalhe, fossem estes de índole técnica, mormente no âmbito
da aeronáutica, ou então de cariz histórico, referindo-se às vicissitudes
socioeconómicas vivenciadas no país e no arquipélago nas décadas de cinquenta e
sessenta do século passado. Decorrente da leitura, facilmente se perceciona uma
aturada documentação por parte de Almeida Maia, confirmada no final da obra
numa extensa nota de agradecimentos, o que bem revela a humildade do próprio
autor. Ademais, segundo o próprio, foram dois anos a reunir informação
fidedigna, de forma a que a história agora narrada fizesse jus à grande
aventura do micaelense que partiu de Santa Maria rumo ao “País dos sonhos”,
encafuado no bojo de um avião ao serviço de uma companhia aérea venezuelana.
Almeida
Maia, servindo-se uma típica família micaelense residente no Vale das Furnas,
em meados do século XX, consegue retratar uma grande porção da sociedade
açoriana (e portuguesa) da época. Pobres, dominados pela autoridade paterna e sob
o castrador jugo de liberdades ditado pela Ditadura salazarista buscam melhores
condições de vida e partem em condições difíceis rumo à “ilha do sol”, para a
designada “Little America”, ou “América emprestada aos ilhéus”, que
recrudescia em torno do Aeroporto Internacional de Santa Maria, e que havia
ganho grande vitalidade após o termo da 2.ª Guerra Mundial. A este propósito, e
pelas mesmas razões, não é difícil trazer à memória o fluxo migratório dos
pobres continentais, dirigindo-se estes para Este, com destino a países como
França, Bélgica ou Luxemburgo, fugindo à fome, à pobreza, à Guerra do Ultramar
e aos espartilhos instalados pela tirania nacionalista do governo de Salazar. Ainda
que de forma ténue, Almeida Maia não deixa de lançar um olhar crítico sobre a
sociedade política que sustinha o regime ditatorial. Expõe as atrocidades que
se praticavam impunemente em prol dos desígnios da PIDE, incidindo
especialmente naquelas perpetradas nas salas do Aljube, a bem da nação…
Amigo
íntimo da melhor Literatura, Almeida Maia domina técnicas de escrita capazes de
suster a atenção dos leitores; usa uma linguagem apurada e um discurso fluente,
sobremodo cativante e apto a agarrar o leitor até à última página. Finais de
capítulo em suspenso, analepses que se revelam sagazes e pertinazes são
colocados ao serviço do ritmo, conferindo ao enredo a cadência desejada. Por
outro lado, torna-se bastante agradável a referência a diversos temas musicais,
assim como a inclusão de versos das referidas letras. O leitor regozija-se!
Não
tenho dúvidas que esta será uma obra de referência para todos quantos queiram
perceber o arquipélago, os açorianos, as suas vontades e ânsias mais profundas,
a sua história e impulsos migratórios.
Numa
troca de correspondência recente, confessava-me o autor, ainda que timidamente,
julgar que crescera desde o lançamento do seu anterior romance. Não lhe
respondi embora, porque lhe lera grande parte da sua já vasta obra, cri ser
verdade. Neste momento e finda a leitura deste «Ilha-América», posso finalmente
dizer que sim, é verdade: cresceu e ofereceu-nos um livro brilhante!
Pedro
Almeida Maia, Ilha-América, Letras Lavadas, Setembro de 2020
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