terça-feira, 8 de outubro de 2024

A Voz da Ilha: uma voz que convoca!


“Levanto-me e espreito pela janela. O céu está azul. Uma ou outra nuvem branca arrasta-se preguiçosamente, só para arreliar aquele azul tão intenso. Vou levantar-me. Quero sair para ver este mar de verdade. […] vou perguntar tudo. Vou saber esta Ilha como sei as minhas mãos.” (p. 18)

                                                    In. «A Voz da Ilha»

A apresentação de um livro é sempre um momento especial e de grande responsabilidade. Embora nunca queiramos desvendar em demasia, é sempre uma tentação levantar o véu e dar a conhecer as peripécias mais interessantes da narrativa, para que o potencial leitor possa também ser enlaçado de imediato pelo universo do autor.

Neste caso em particular, essa tentação chega em dobro, primeiro porque a autora é a Anabela Freitas, uma escritora que já por bastas vezes provou estar entre as vozes mais proeminentes da literatura portuguesa, com especial enfoque - e permitam-me - naquela dedicada à infância e juventude, e depois porque o imaginário trazido até «A Voz da Ilha» é-nos a todos muito caro, já que se debruça sobre os Açores, os açorianos, a história do arquipélago e, sobretudo, sobre a identidade açoriana.

Conquanto «A Voz da Ilha» venha a ser catalogada como uma obra infantojuvenil, ajustada, essencialmente, aos jovens adolescentes, parece-nos que não deverá ser também olvidada pelos mais velhos, pelo público em geral e pelos açorianos, em particular, e isto, porque temos diante de nós um texto que consolida, sobremodo, a ideia do que foi e do que é ser-se açoriano nas ilhas e na diáspora. Este é um contributo precioso para se perceber as mutações que se operam na mentalidade das pessoas que vivem a condição da emigração por necessidade. É um livro sobre nós!

Em concreto, Anabela Freitas serve-nos não uma, mas várias perspetivas da mentalidade açoriana, valendo-se para tal do pensamento e da forma de estar e interagir de três gerações de uma mesma família de emigrantes, marcada de forma indelével pela pobreza ilhoa, e que, nos frios canadianos busca melhores condições de vida, aliás, como sabemos, percurso tomado por milhares de portugueses açorianos e não só.

Ao longo da leitura é notório o profundo conhecimento que a autora detém sobre o arquipélago, para além de muitas das suas especificidades, encontrando-se detalhes assinaláveis não apenas de índole histórica, como também cultural, ambiental, as rotinas ou as festividades da Ilha (sempre escrita com inicial maiúscula), curiosamente uma ilha nunca nomeada, mas que arriscaríamos ser uma das mais pequenas do arquipélago: pouco povoada; muito rural; com uma vila e algumas freguesias. Esta talvez...

Embora não haja muitas referências temporais ao longo do texto, inferimos que o início desta aventura canadiana se situe em meados do século XX, quando muitas centenas de ilhéus se viram atirados ao desespero, se sentiram mergulhados na miséria mais profunda, numa penúria que não chegava para forrar o estômago e tiveram de partir, carregando tristezas, memórias e saudades, mas também esperança numa vida melhor, mais folgada, e que culminasse no regresso então já tão desejado. Partiam rumo ao incerto, com a certeza de que ficar não era solução. Por tudo isto e mais, esta é uma obra que imerge nas raízes culturais, sociais e históricas dos Açores e dos açorianos, que explora a dicotomia entre a necessidade do ir, do partir em busca e o apelo incessante da ilha, do regresso a casa. Ganha voz o telurismo, o chamamento das raízes. Em concreto, Anabela Freitas recria a emigração de um casal que, com uma filha ainda adolescente, parte rumo ao Canadá e lá trabalha arduamente, procurando poupar o máximo para, logo que possível, regressar à terra. Vivem lá melhor do que nos Açores, mas trabalham muito e poupam o que podem, sendo frequentemente apontados por isso mesmo:  

“- Éramos nós que tratávamos do jardinzito. Plantávamos alfaces e couves, em vez de flores, o que fazia com que se rissem de nós. Nunca nos importámos com isso, porque poupámos muito assim. Nunca fomos de férias.” (p. 40)


Só aquando da entrada da segunda geração no mundo do trabalho, as coisas começaram a mudar. Com mais dois braços a contribuir para as despesas da casa, as condições de vida melhoraram significativamente.

Sendo um livro que narra uma viagem física, aquela que se dá entre Vancouver e a Ilha, há também aqui lugar a outras viagens, muito mais pessoais e que ocorrem no íntimo de cada um, viagens bem arreigadas aos traços que, em uníssono, formam a personalidade de cada personagem. Viagens demoradas, interiores e com transformações de carácter; há aqui lugar ao abalar de certezas, pela descoberta de novas realidades e pelo alargamento de velhos horizontes; ruem convicções e crenças ante o despertar de novas consciências. Há aqui personagens que, ao longo do mês de estada na Ilha, experimentam tais transformações psicológicas que dir-se-ia que, à data do regresso aos frios canadianos, partem “novas pessoas”, completamente transfiguradas pela Ilha, pelos seus usos e costumes, pelas gentes da Ilha…

Se os mais velhos sentiam constantemente o apelo telúrico, o chamamento da Ilha, se estes eram continuadamente assolados pela saudade e vontade de regressar, esse sentimento vai-se esbatendo nas gerações seguintes e, salvo raras exceções, das quais Ana – a protagonista – faz parte, gradativamente, chamamento ilhéu vai-se esfumando, até que, já numa terceira geração de família emigrante, acaba mesmo por desaparecer. Anabela Freitas explora muito bem esta viagem, que diríamos identitária, onde, pela natural aculturação, se vão perdendo os traços comuns, os costumes e as tradições, “deixando assim de se demarcar” vincadamente diferenças e especificidades, no fundo, “o que alavanca aquilo a que comummente designamos por identidade!”, como outros a designaram.

Com efeito, se os avós almejam o regresso pleno às raízes, os pais já procuravam deliberadamente abandonar usos e costumes (nomeadamente a prática religiosa e a língua) buscando a integração plena e rápida, procurando combater, dessa forma, estigmas e preconceitos raciais e cito:

“Não sei porquê, mas ser filha de portugueses não me parece ser muito popular nesta cidade […]” (p. 5)

Há aqui também lugar à reflexão sobre a forma como eram (ou como são ainda?) recebidos os imigrantes e as diferenças de postura dos locais mediante a proveniência daqueles. Veja-se:

“Parece que os pais dele são de origem inglesa. Também imigraram para Vancouver, mas esses eram de outra espécie de imigrantes: os bem recebidos.” (p. 14)

Como muito bem escreve a autora, e cito:

“Não se é melhor ou pior por os pais terem nascido num sítio ou noutro.” (p.6)

Curiosa frase que se reporta aos comportamentos tidos na segunda metade do Século XX, e que, infelizmente, granjeia ainda hoje tanto significado. Devíamo-nos sentir envergonhados!

No livro, magnificamente ilustrado pelo artista plástico Rui Paiva, e como foi já dito, relata-se uma viagem até à Ilha, e explora-se o impacto que esse reencontro para uns e novidade para outros tem no íntimo de cada personagem. Torna-se, por isso, muito interessante acompanhar as diferenças psicológicas das diferentes personagens, à medida que se vão avolumando as vivências num espaço de onde, efetivamente, vêm as raízes de todos. É particularmente encantador ver como os elementos naturais da ilha produzem efeito na personalidade e comportamentos das personagens: o mar, o azul do céu e do mar, a dureza da terra, a humidade…

“Vou saber esta ilha como sei as minhas mão.” (p.18)

E cito novamente:

“Junto à costa formavam-se cordões brancos de ondas. De vez em quando, uma brisa mais fria vinha levantar-lhe fiapos: pareciam cabelos! Serão os cabelos das sereias? Sim, isto sim: isto é o Mar! Só para vê-lo valeu a pena ter vindo. A avó tinha razão.” (p. 22)

Embora revestida de forte carga subjetiva, a linha narrativa que mais interesse desperta ao longo de todo o texto, é o confronto de opiniões entre as irmãs Ana, a mais nova e Eva, a mais velha. Aliás, é na constatação dessas diferenças de pensamento, sequente evolução e aproximação final das mesmas que reside o âmago de toda esta viagem. Inicialmente em polos diametralmente opostos, Ana mostrava-se entusiasmada, procurando sorver o máximo de informação que pudesse sobre a terra dos pais e dos avós. Por outro lado, Eva sentia aborrecimento em tudo quanto vivenciava, chegou contrariada e a todos respondia com má cara e reparos vários, desdenhava de tudo, por se sentir canadiana, e por ter consciência de que não pertencia àquela “selva” – palavra da autora. Todavia, com o desenrolar da narrativa, há mutações e, enquanto em Ana estas se operam em termos de desenvolvimento da religiosidade, culto e crença, em Eva essas chegam por via do amor, esse sentimento que a todos transforma, e que a fazem relativizar tudo quanto tinha como fundamental na sua vida ainda adolescente.

Este é um escrito rico, e será sempre um texto de viagem, ou de viagens, não apenas ao íntimo de cada personagem, mas também ao pensamento de cada leitor. Chega-nos num registo mais ou menos híbrido, já que combina a diarística com a narrativa de ficção mais tradicional, originando essa alternância de géneros uma vivacidade muito interessante, permitindo, ao mesmo tempo, jogos temporais de grande subtileza, usando-se para tal analepses e/ou prolepses particularmente expressivas.

A «A Voz da Ilha» é, por tudo isto, uma voz que convoca; é uma voz forte que abre fendas na linha do tempo e traz à montra do presente uma estória que, afinal é a nossa História. Esta é uma voz que merece ser lida com o aprumo de todos os sentidos.

 

Anabela Freitas, «A Voz da lha», Letras Lavadas, 2024


(Gazeta de Paços de Ferreira, a 9 de outubro de 2024.)


#livrosecoisasdessas

segunda-feira, 8 de julho de 2024

LADY BOBS, O SEU IRMÃO E EU – U M ROMANCE DOS AÇORES



Apresentar um livro encerra sempre uma forte carga emocional e é um momento de grande responsabilidade. Penetrar o universo de quem produz a obra e procurar entender os motivos que levaram à sua saída para o prelo nunca é tarefa fácil, especialmente quando falamos de uma obra escrita e publicada nos anos inaugurais do século XX, há mais de um século, portanto.

Em concreto, trata-se de um texto com cerca de cento e vinte anos de idade, escrito por Jean Chamblin, uma mulher americana, com ascendência em França, nascida no Outono de 1876, e cuja vida dedicou às artes e ao ativismo. No teatro, por exemplo, desempenhou alguns papéis de relevo e alcançou algum sucesso junto da crítica da especialidade, assumindo, todavia, alguma falta de talento, o que terá originado esta viagem que sustenta toda esta narrativa romanceada.

 

“Em resumo, não tenho talento suficiente para o sucesso, nem vaidade suficiente para o fracasso. E quero ar para lutar e expulsar isto de mim.” (p. 41)

 

Por serem inúmeras as semelhanças entre factos biográficos relevantes e comuns muitos traços entre a Jean Chamblin – a autora – e Kate – a protagonista e narradora da obra – torna-se consensual considerar o livro como autobiográfico, sendo que este nasce a partir de uma viagem marítima efetuada pela autora (e pela protagonista) desde Nova Iorque até ao arquipélago dos Açores, viajando a bordo do Santa Maria, com os desígnios de encontrar descanso e um pouco de diversão, fugindo dessa forma à obscuridade em que se tornara a vida profissional. Isso mesmo é afirmado na imprensa da época, aquando da primeira publicação do romance:

 

The present story is the result of a trip to the Azores in search of rest and diversion. Having found these she proposed that others sould share her diversion if not her rest” (p. 24)

 

A autora, depois de se dedicar de forma empenhada ao estudo da educação para a infância, redireciona, então, o seu percurso profissional para a representação e para a escrita, tendo, todavia, publicado apenas este texto agora apresentado, na altura com vinte e nove anos de idade, o que em boa verdade levanta um certo mistério ainda por desvendar.

O texto é primeiramente publicado em série mensal, na revista The Critic e só posteriormente, já em finais de 1905, é publicado em livro, pela G.P. Putnam’s Sons, hoje do grupo Penguin.

Maioritariamente epistolar, o texto baseia-se no enredo criado a partir das relações estabelecidas entre um reduzido grupo de pessoas que, de forma inusitada – ou não – se reencontra nos Açores, em São Miguel, mais concretamente, e se aloja no Hotel Brown, um hotel citadino, onde hoje de situa a Pousada de Juventude de Ponta Delgada, fundado por George Brown, um jardineiro inglês contratado e trazido para a ilha por José do Canto, em 1845.

Recuperando da memória ambientes urbanos, mas também aqueles outros bucólicos e campestres onde nobres e/ou burgueses se entretinham alegremente, é-nos constantemente oferecido um panorama fidedigno da realidade ilhoa daqueles primeiros anos do século XX, seja da vida que pulsava pelas artérias da cidade, mais especificamente na Rua do Beco, hoje Rua São Francisco Xavier, seja aquela que corria pacatamente na cratera das Sete Cidades ou mesmo no pacífico vale das Furnas, onde se desenrola parte significativa da trama.

A viagem aos Açores, cuja duração se estima em cerca de três meses, desde a segunda metade de abril de 1902 até ao regresso aos Estados Unidos em julho do mesmo ano, inicia-se em Nova Iorque a bordo do Santa Maria, tendo a embarcação passado pelo Faial, São Jorge, Terceira e São Miguel.

Valendo-se de uma escrita simples, escorreita, ora em harmonia com a simpleza dos ambientes descritos, ora um pouco mais intensa e até revestida de uma comicidade em conformidade com as interações entre personagens, este é um bom exemplo de literatura de viagem, e embora se possa lamentar a ausência de referência a algumas das ilhas do arquipélago, o que nos traz imediatamente à memória a incompletude da obra «Ilhas do Infante», de Guilherme de Morais, também o reduzido destaque conferido àquelas ilhas além de São Miguel é motivo de anotação, todavia, retenhamos o que diz a autora sobre o arquipélago:

 

“Estão aqui todas, as nove ilhas dos Açores. Pequenas ilhas cheias de orações e santuários e sinos vespertinos, enfiadas num fio de água, como as dezenas nas voltas de um Rosário do Mar. […]

Acontece-nos apenas uma vez na vida sermos mesmo levantados do chão.” (p. 51)

 

 Não obstante, o que poderá, eventualmente, pecar pela curta extensão, redime-se fazendo vingar uma enorme qualidade literária, assim como uma brilhante combinação de géneros de que a autora se vai servindo ao longo da obra. Grande porção destes relatos conduz os leitores a uma narrativa de viagem verdadeiramente extraordinária, abrindo-lhes possíveis perspetivas de integração ou, pelo menos, fazendo-os apaixonar-se irremediavelmente pela realidade ilhoa:

 

Caminhámos ao longo de uma rua estreita, com casas de pedra pintadas em tons suaves de amarelos, azul e rosa, vermelho e verde, e de então em diante nunca mais os meus pés tocaram o chão, e a minha memória regista apenas o badalar dos sinos das igrejas, a passagem silenciosa de homens descalços e o misterioso capote e capelo, ou o barulho das pequenas galochas de madeira; o gincho do velho carro de madeira, com as suas rodas de madeira maciça e a sua junta de bois; o burro com a sua carga, e o rapaz pequeno com o seu cigarro; pequenas cruzes e grandes cruzes, grande igrejas e pequenas capelas – e as pessoas bondosas, à sua sombra, a saudarem-nos com simplicidade; e acima de tudo um céu tão azul como papel mata-borrão, e abaixo de tudo o estrondo do mar a bater contra o paredão de pedra negra.” (pp. 53-54)

 

A leitura que conseguir penetrar além do ato meramente descritivo e contemplativo, pese embora, este, per se, seja já digno de assentamento, resultará numa enorme tela, onde foi pintada a traço fino e delicado muito que seriam os Açores e os açorianos no início do século XX. Mas, convenhamos, nem tudo eram rosas…

 

“Há momentos em que trocaria todas as nove ilhas dos Açores por uma boa chávena de café.” (p. 102)

 

Servindo-se muitas vezes de uma linguagem luxuriante, mas nem por isso menos lúcida, Jean Chamblin dá-nos conta das belezas naturais do arquipélago, não olvidando de, a trechos, lançar o seu olhar expositivo e, subliminarmente, crítico sobre a vivência social, económica, no fundo, sociológica, nos Açores, nesses primeiros anos do século XX, servindo-se, para tal, de Lady Bobs, uma personagem inglesa, de bom coração, mas revestida por uma personalidade altiva, marcadamente aristocrática, e levemente afetada pela rudeza das ilhas e particularmente pela incultura de algum do povo açoriano:

“- Pergunto-me por que não morrem todas estas crianças. Olha para elas! Vê aqueles bebés vestidos com uma só peça de roupa, amarrada sob os braços, enquanto se sentam nestes frios chãos de pedra. É chocante. Surpreende-me que uma só delas sobreviva.” (p. 128)

 

Esta é uma obra que precisa de ser lida com calma, (re)construindo mentalmente cada imagem, saboreando cada descrição, para assim conseguir trazer à memória cada recanto, cada visão, cada ângulo ou ponto de vista descritos. Mesmo considerando a incompletude em termos de ilhas visitadas, assim como as diferentes “profundidades” consignadas a cada ilha (fruto, sobretudo, do tempo de estada do Santa Maria em cada porto) este relato propicia uma visão distinta do arquipélago e, mesmo os afortunados que já calcorrearam as nove ilhas que o compõem, terão aqui uma oportunidade de se apropriar de uma outra visão que lhes é oferecida a partir do longínquo ano de 1902. Para aqueles outros que se encontram em processo de “ilharização”, esta obra reveste-se, então, de uma valia redobrada, dando-lhes a conhecer uma visão do passado que sustenta hoje a realidade que todos reconhecemos, assente não apenas numa trama viva e extremamente interessante, mas também num conjunto de fotografias, que, em uníssono possibilitam novas camadas percetivas, muitas vezes, inalcançáveis, seja pela acentuada lonjura geográfica, ou pela falta de acesso à eternização destes rasgos históricos temporalmente distantes, como é o caso aqui hoje referido.

Como posteriormente o fizeram Raul Brandão, Guilherme de Morais e outros, esta é mais uma das muitas vozes (açorianas ou não açorianas) que tão bem soube engrandecer as nossas ilhas, descrevendo-as com os melhores adjetivos, captando-lhe os mais exuberantes espaços, mas sem nunca cair na tentação de uma condescendência bacoca e ilusória, tornando-se por isso em um dos expoentes que tanto enobrece a cada vez mais robusta literatura de viagens que tem os Açores como palco. Foi, portanto, em boa hora que Manuel Menezes de Sequeira, lisboeta radicado e encantado na ilha das Flores, decidiu dá-lo a conhecer aos leitores portugueses, traduzindo e apontando esta edição com preciosas notas de contexto geográfico e temporal, e que em tanto favorecem a compreensão da narrativa, pelos seus leitores contemporâneos.

Por isto mesmo, a ele, a minha vénia e o meu agradecimento pela coragem e labor tidos na publicação deste texto que, de outra forma, muito provavelmente, acabaria por desaparecer nas profundezas mais escuras do esquecimento.


Jean Chamblin, «Lady Bobs, o Seu Irmão e Eu, Um Romance dos Açores», Letras Lavadas, junho 2024


 

sábado, 6 de janeiro de 2024

A Força das Sentenças



«Estar doente sem direito a cura é algemar a esperança, decapitar a fé. 

Um homem pode adoecer de qualquer coisa, mas não lhe roubem a luz ao fundo.»

in A Força das Sentenças, Pedro Almeida Maia

 

O último mês de 2023 revelou-se excecional para o mundo literário açoriano. Encerrámos o ano a festejar a vitória de Pedro Almeida Maia, que arrecadou o Prémio Literário Manuel Teixeira Gomes 2023, com a sua mais recente obra, A Força das Sentenças.

Os jurados Idalina Rodrigues, Mila Mariano e Carlos Café decidiram, por unanimidade, distinguir esta novela de entre cento e vinte obras a concurso «[…] pela atualidade do tema, pela originalidade e pela criatividade […]». Foi ainda destacada a «[…] linguagem metafórica evidente na preocupação do autor em causar impacto no leitor […]» traço aliás distintivo da escrita de Almeida Maia, tendo sido já colocada em evidência em outros trabalhos seus. A obra vencedora deste prémio, atribuído pela Câmara Municipal de Portimão, «[…] com o objetivo de promover e estimular a criação literária.», foi editadapela On y va e já se encontra disponível para comercialização.

Dividida em vinte e cinco capítulos, esta novela traz à luz do presente a condição final de um doente de Alzheimer, assim como todas as adaptações familiares e logísticas que o avançar da doença acarreta. Repetidas falhas de memória de acontecimentos recentes (a contrastar com a nitidez de um passado vivido há muito), confusões constantes, desorientações geográficas, dificuldades no cumprimento das rotinas de higiene, vestuário e outras ditam o diagnóstico e o destino de um homem viúvo que, em busca de um acompanhamento mais eficaz, se vê obrigado a trocar o seu Alentejo de quarenta anos por uma nova moradia na cidade de Coimbra

Almeida Maia redigiu um texto marcadamente realista, decerto assente em vasta informação recolhida, o que lhe conferiu a oportunidade de manter um discurso coerente, firme e objetivo do princípio ao fim da novela, mesmo considerando a progressão da doença, que redundou numa expetável gradação crescente de angústia e sofrimento. Por outras palavras, há uma progressão natural do discursoque surge paralelamente ao desenvolvimento da própria doença da personagem.

O autor de A Escrava Açoriana optou por abordar um tema substancialmente diferente daqueles sobre os quais tem escrito, todavia, fê-lo com o rigor a que já habituou os seus leitores. A preferência pela narração autodiegética, portanto em primeira pessoa gramatical, faz aqui toda a diferença, já que acentua o realismo da própria doença, abrindo ao leitor janelas pelas quais pode visualizar aforma como um cérebro cansado e em fase de demência se comporta, quando afetado pela doença. Esta será, seguramente, a maior riqueza deste texto, sendo, ao mesmo tempo, sintomático do virtuosismo do autor, por ele próprio se ter emprestado essa posição tão delicada e especial. 

A Força das Sentenças, escrita em memória de Hélder Corrêa Melo, é, em muitos momentos, um texto pesaroso, sobretudo, quando o próprio doente atravessamomentos de pálida lucidez e se apercebe, ainda que vagamente, da sua situação clínica e de como ela condiciona a vida dos que o rodeiam: «Não tenho conseguido agradar à minha filha e não sei o porquê de isto estar a acontecer. Continuo a tentar ser eu mesmo, apesar da doença.»; «Esta doença veio rasgar-me a vida e destroçar a felicidade da minha filha. Sou maior empecilho do que ajuda, maior entrave do que facilitador. O melhor é mesmo desaparecer.»

Típicos desta forma de demência (cada vez mais prevalente na população mundial), são os sintomas comportamentais obsessivo-compulsivos, e Almeida Maia teve o cuidado de os incluir nesta narrativa: a intransigência ante a mudança de local de determinados objetos, os diversos episódios com o pudim de coalhada ou com a rede esticada no jardim exterior da moradia são exemplos disso mesmo.

Aqui são amplamente honrados todos os doentes de Alzheimer e até outros que padecem de outros tipos de demências. Almeida Maia oferece-nos um texto muito bem estruturado, conferindo o tempo certo a cada estádio da própria doença, e sempre em direção ao inevitável, numa cadência equilibrada, que envolve o leitor, retendo-o na leitura. Nunca revela uma atitude paternalista, e expõe ao leitor a doença em toda a sua severidade. Digna de referência é também a visão sobre o cuidador do doente, dando nota da exigência requerida para que o acompanhamento seja o mais eficaz possível.

A obra culmina com o brilhantismo de um Epílogo que terá, forçosamente, de inculcar diversas questões sobre a nossa própria existência, sobre a nossa condição humana e sobre a forma como nos movemos enquanto membros integrantes de uma comunidade. Temos entre mãos um livro que espelha fielmente as vicissitudes de uma temática muito atual, muito angustiante e sempre demasiado dolorosa. Foi escrito numa linguagem pertinenteajustada e assente no estilo próprio a que o autor nos habituou. Convenhamos que não foi por mero acaso que Almeida Maia se destacou de entre os cento e vinte trabalhos levados a concurso e ganhou mais este prémio, que tão bem reconhece o excelente percurso que o autor tem vindo a trilhar.

 

Pedro Almeida Maia, A Força das Sentenças, On Y Va, dezembro de 2023